Concluímos esta viagem pelo Itinerário XVI com algumas notas sobre a sua passagem por Cale, estação seguramente associada à travessia do Rio Douro, apesar de permanecer a dúvida na sua exacta localização, oscilando entre os dois povoados proto-históricos que dominavam esta passagem, ou seja, o Morro da Pena Ventosa (Sé) e o Castelo de Gaia, problema que, no entanto, não afecta a contagem miliária que segundo o Itinerário era a seguinte:
Langobriga Cale m.p. XIII Bracara m.p. XXXV
Como referido no artigo anterior, a distância de 13 milhas de Langobriga a Cale é coerente com o percurso entre Vendas Novas (Fiães/Castro Redondo) e o Douro, seguindo paralela ou coincidente com a EN1, que em muitas tramos ainda é designada por Rua da Via Romana. O trajecto fazia-se (e faz-se) por Vergada, Picoto, Vendas de Grijó (8 m.p.), Carvalhos (6 m.p.), Canelas (4 m.p.), Santo Ovídio (2 m.p.), Jardim de Soares dos Reis (1 m.p.) e finalmente, descendo talvez pela Rua Direita, atingia o cais de Gaia.
Depois de cruzar o rio, a via dirigia-se para Bracara, seguindo aproximadamente a rota da EN14, percorrendo cerca de 35 milhas, tal como indicado no Itinerário, trajecto já analisado em artigo anterior. A parte inicial do percurso continua em utilização como ruas da cidade. Partindo da Porta do Olival, junto do Jardim da Cordoaria, seguia pela lateral do edifício da Universidade do Porto, antiga «Calçada dos Órfans» e actual Rua Dr. Ferreira da Silva, cortava a Praça dos Leões em direcção ao Largo do Moinho de Vento, continuava pela Rua Mártires da Liberdade até à Praça da República e daqui pela Rua Antero de Quental rumo à travessia do Rio Leça na Ponte da Pedra (São Mamede de Infesta), e daqui rumo à travessia do Rio Ave na Trofa, passando em Pinta (Maia) e Forca (8 m.p.), percurso recentemente (re)confirmado pelo descoberta de um miliário numa casa do lugar da Barca, indicando precisamente 27 milhas a Braga, ou seja, oito milhas a Cale.
Do mesmo modo, os trajectos das outras vias que partiam de Cale continuam em utilização pelos séculos seguintes, sendo progressivamente absorvidos pela expansão urbana da cidade. Apesar de estas vias não serem mencionados nos Itinerários de Antonino e da ausência de miliários, não há qualquer dúvida sobre a sua utilização já nesse período (e mesmo em períodos anteriores), formando a rede principal de estradas que partiam de Cale.
Uma destas vias é designada na documentação medieval por «karraria vetera», «via publica» e «estrada mourisca» em diferentes pontos do seu percurso e que hoje está assinalado como «Caminho de Santiago». Partindo do mesmo local da estrada para Braga, Campo do Olival, seguia pela Rua de Cedofeita (antiga «Cacarreira») até ao Padrão da Légua (4 m.p.), e daqui à Ponte Romana de Barreiros sobre o Leça (Maia).
Daqui poderia ligar por uma ramal ao nó viário da Forca (8 m.p.) na via para Bracara (onde apareceu miliário), mas é provável que a «karraria» seguisse para noroeste por Vilar do Pinheiro e pela base do Castro de Boi (15 m.p.), rumo à travessia do Rio Ave junto do Castro de Santagões.
Daqui seguia para a Igreja de São Pedro de Rates (23 m.p.), provável estação viária onde a via bifurcava em dois trajectos, um seguindo para noroeste rumo à travessia do Rio Cávado na Barca do Lago (ligando a Viana do Castelo), e outro seguia para nordeste rumo à travessia do mesmo rio em Barcelos (o chamado «Caminho de Santiago Central»), continuando depois até Ponte de Lima. (ver https://viasromanas.pt/#porto_barcelos).
Admite-se uma variante a este trajecto mais próxima do litoral, desviando da «karraria vetera» no Padrão da Légua, seguindo na direcção do Castro de São João em Vila do Conde, local de cruzamento do Rio Ave. Daqui seguia próximo dos castros de Terroso e Laúndos rumo à travessia do Rio Cávado na Barca do Lago, reunindo com a «karraria» cerca de três milhas antes de atingir esta passagem. (ver viasromanas.pt/#porto_caminha).
As restantes vias seguiam na direcção nordeste. A primeira delas partia de Cale rumo a Guimarães, seguindo junto do Castro de Águas Santas (6 m.p.), Castro do Monte Padrão (18 m.p.), Citânia de Sanfins (22 m.p.) e Castro da Polvoreira/ Santo Amaro (30 m.p.). (ver viasromanas.pt/#via_vimaranes).
A segunda via para nordeste, ligava Cale a Tongóbriga, seguindo próximo do Castro de Vandoma (15 m.p.) e do Castro de Quires (26 m.p.), de onde descia à travessia do Rio Tâmega, a trinta milhas de Cale. Daqui ascendia por Marco de Canaveses à cidade romana de Tongóbriga, da qual subsistem importantes vestígios, mas como vimos ao longo do Itinerário XVI, assenta ela própria sobre um antigo povoado da Idade do Ferro do qual teria herdado o nome.
A parte inicial do trajecto desta via subsiste ainda hoje, partindo da antiga Porta de Vandoma e seguindo pela Rua Cimo de Vila, percursos que mantém a tipologia antiga, ascendendo a ladeira por patamares suaves até à actual Praça da Batalha. Daqui seguia por St. Ildefonso, Bonfim (1 m.p.), Corujeira/ Campanhã (2 m.p.), São Roque da Lameira (3 m.p.), continuando pelos topónimos viários, Cavada, Ferraria, Carreira e Vale de Ferreiro até Valongo, provável estação viária a oito milhas de Cale, relacionada com a exploração mineira identificada nas proximidades. (ver viasromanas.pt/#porto_freixo)
Notar que esta distância de oito milhas à primeira estação já tinha sido identificada nas outras vias que partiam de Cale, nomeadamente em Vendas de Grijó e Barca, sugerindo que o seu estabelecimento não foi arbitrário. Notar também a grande resiliência destes trajectos apesar das enormes transformações sofridas pela cidade nos últimos séculos.
Vias antigas na actual área urbana da cidade do Porto.
Na ausência de factores externos como terramotos ou grandes planos urbanísticos (felizmente) as principais vias que partiam da cidade do Porto acabaram por permanecer em utilização até aos nossos dias. Seria interessante um dia fazer um roteiro destas vias pela cidade.
Com este artigo sobre Cale termina esta série de seis artigos sobre o itinerário de Olisipo a Bracara ou Itinerário XVI. Na próxima semana abordaremos a questão das alterações da orla costeira e as suas implicações na rede viária antiga.
Neste percurso pelo Itinerário XVI chegamos agora a uma das questões mais discutidas na historiografia nacional, a problemática localização de Talábriga. Pela sequência de estações não há qualquer dúvida que esta se deveria localizar nas proximidades do Rio Vouga que constitui o maior obstáculo entre Aeminium e Cale. No entanto, o seu exacto posicionamento é alvo de grande controvérsia entre investigadores.
Segundo o Itinerário XVI, teríamos: Aeminium m.p. X Talabriga m.p. XL Langobriga m.p. XVIII Cale m.p. XIII
Como é habitual, as primeiras tentativas de localização surgem no século XVI, tendo os iluministas portugueses proposto a sua identificação com Cacia (Barreiros, 1561) e até Aveiro (Brito, 1597). A hipótese Cacia devia-se ao achado de vestígios romanos na Torre da Marinha Baixa. No entanto, a passagem neste local é inviável dado que aqui era a antiga linha de costa em período romano, podendo corresponder a um vicus portuário. Aliás, toda a área de Aveiro estaria submersa, inviabilizando portanto a sua associação a um povoado romano.
A questão só é retomada no início do século XX, com diversos autores tentando compatibilizar as distâncias medidas no terreno com a informação contida no Itinerário. Entre eles, destaca-se Félix Alves Pereira que publica em 1907 um seminal artigo intitulado “Situação Conjectural de Talábriga”, onde alerta para a necessidade de posicionar Talábriga a norte do Vouga, dado que as 40 milhas indicadas são superiores à distância entre o Mondego e o Vouga (c. 34 milhas).
Com base na distância indicada a Langobriga (18 m.p.), equaciona a hipótese de Talabriga estar na área da povoação de Branca, apontando como possíveis localizações o Castro de São Julião e o vicus de Cristelo, hipótese seguida por autores posteriores (Souto, 1941; Vaz, 1983: 32-38).
Esboço do trajecto entre Coimbra e o Porto elaborado em 1941 por Alberto Souto
O problema desta proposta é que não acerta com o Itinerário dado que este local não está a 40 milhas de Aeminium. De facto a distância deste local ao Vouga é de cerca de 10 milhas perfazendo um total de 44 milhas a Aeminium (34+10) quando o Itinerário indica 40.
Admitindo que está distância está correcta (não havendo razões objectivas para duvidar deste valor), então Talabriga teria de estar 6 milhas a norte do Vouga, distância que permite associar este povoado ao Castro da Ns. do Socorro em Albergaria a Velha.
Aliás, esta hipótese não é nova sendo referida num artigo publicado pelo Padre Miguel Oliveira em 1943, dando notícia da opinião do Tenente-Coronel Costa Veiga (veiculada numa comunicação pública), onde este contestava Félix Pereira e a sua proposta de localização na área de Branca, propondo em alternativa a sua localização na povoado castrejo do Monte da Ns. do Socorro dada a concordância das distâncias. No entanto, prudentemente, este autor reconhece que o problema da localização de Talábriga permanecia tal como Félix Pereira o tinha deixado, ou seja, por resolver (Oliveira, 1943: 61-62).
Entretanto, uma segunda hipótese foi lançada por Amorim Girão no início do século XX, a sua identificação com as ruínas que emergiam no chamado Cabeço do Vouga (Girão, 1922) , proposta entretanto reforçada pelos sucessivos achados arqueológicos no topo deste outeiro sobranceiro ao local de travessia do Vouga, levando autores posteriores, como Jorge de Alarcão e Seabra Lopes, a subscreverem esta proposta (Alarcão, 1988; Lopes, 1995, 2000), apesar do evidente desacerto com a informação do Itinerário (Mantas, 2018: 44).
Apesar do seu relativo esquecimento, a hipótese de identificação de Talabriga com o povoado fortificado da Ns. do Socorro, tem vindo a ser recuperada (Mantas, 2014: 247) atendendo à concordância com a distância indicada de 40 milhas a Coimbra. Apesar da notícia de achados arqueológicos no local (que foram enquadrados no Bronze Final), pouco sabemos sobre a ocupação deste povoado dado que este foi totalmente arrasado com a construção do actual santuário.
Seguindo esta hipótese, foi criado um percurso alterativo à “Estrada Real” (que passa no vale, junto a Branca e Albergaria-a-Nova), o verdadeiro percurso da via poderia ser pelo alto da serra, em altitude, tocando nos referidos povoados proto-históricos e que está representado no mapa abaixo (linha azul).
Nova proposta de traçado da via entre Albergaria-a-Velha e Oliveira de Azeméis seguindo junto dos povoados castrejos de Ns. do Socorro, São Julião e Lações.
Esta proposta de trajecto apresenta pouca variação de cota e acerta a marcação miliária com os referidos povoados, com Ns. do Socorro na milha 6, São Julião na milha 10 e Lações a 17 milhas do Vouga, outro povoado fortificado que daria origem a Oliveira de Azeméis e que foi destruído com a construção do Santuário de Ns. de La Salete.
A etapa seguinte ligava Talábriga a Langóbriga que tem sido identificada com o Castro do Monte Redondo em Fiães com base no vasto espólio recolhido no local (Corrêa, 1925; Almeida e Santos, 1971). De facto, a sua posição é compatível com as 13 milhas indicadas a Cale. No entanto, as 18 milhas indicadas são claramente insuficientes para cumprir a distância entre Monte Redondo e o Castro da Ns. Socorro, percurso que ronda as 23 milhas. Poderá tratar-se de um erro do copista medieval pois não seria difícil haver confundir os numerais “XXIII” e “XVIII”, bastando a troca do segundo “X” por um “V”, explicando deste modo, o diferencial de 5 milhas encontrado no trajecto até Cale.
Corrigindo este valor obtemos acerto da marcação miliária, isto é, somando as distâncias intermédias entre o Vouga e o Douro (6 + 23 + 13) obtemos um total de 42 milhas que é a distância que separa os dois rios. Esta divisão pouco usual entre etapas resulta do posicionamento dos povoados indígenas ao longo da via. No entanto, verifica-se que as estações romanas viriam a instalar-se num módulo mais regular de 4 milhas (1 légua) com Albergaria-a-Velha (a 4 milhas do Vouga), a Albergaria de Souto Redondo (a 16 milhas de Cale), com outra estação a meio percurso, ou seja na oitava milha, o nó viário de Vendas de Grijó, local de onde partia a via para Viseu, na base do povoado fortificado do Monte Murado (c. Carvalhos).
Assim o Itinerário corrigido seria o seguinte: AEMINIUM X TALABRIGA XL LANGOBRIGA XXIII CALEM XIII
Naturalmente de que não dispomos de provas conclusivas, nomeadamente de ordem epigráfica, que possam fechar a discussão, mas a concordância com as distâncias medidas no terreno pelo percurso proposto constitui um forte argumento para a sua validação.
Os dados arqueológicos conhecidos também parecem apontar para esta hipótese com a via a passar junto dos principais povoados castrejos, denunciando mais uma vez a origem pré-romana destas rotas.
Por último, admitindo que Talabriga corresponde ao assentamento da Ns. do Socorro, então o Cabeço do Vouga teria outra designação, o que obriga a reconsiderar a antiga hipótese lançada por Brito de que ali se encontrava o antigo Oppidum Vacca (Brito, 1597). De facto, Plínio refere o flumen Vacca (NH, IV, 113) , mas segundo Gaspar Barreiros, num manuscrito de Toledo podia ler-se oppidum et flumen Vacca, do mesmo modo que no mesmo trecho Plínio menciona o oppidum et flumen Aeminium (Barreiros, 1561).
A ser assim, a existir o povoado de Vacca(Vacua em Estrabão; Geo. I, 3, 4), este poderia corresponder ao Cabeço do Vouga, explicando o miliário que Brito refere junto do Castro de S. Julião (S. Gião no original), indicando 12 milhas a VAC, abreviatura que desdobrou em VACCA ou VACUA.Em suporte à veracidade desta notícia, notar que tanto o miliário da Vimieira (Mealhada) como de Úl (Oliveira de Azeméis) indicam também 12 milhas, valor típico entre estações viárias romanas.
Contra esta proposta de traçado pode-se invocar o achamento do miliário em Úl, algo deslocado da trajecto proposto, apesar de haver concordância com a distância a Langóbriga. No entanto, este miliário poderia ter um carácter mais territorial, definindo o limite sul da Civitas Langobrigensis, aliás, em concordância com o terminus augustalis, actualmente encastrado na parede traseira da Igreja Paroquial de Úl.
Como se pode ver pelos argumentos apresentados, apesar dos avanços no nosso conhecimento sobre os locais de passagem da via, estamos ainda longe de ter o problema resolvido, subsistindo dúvidas importantes por esclarecer. A ausência de provas epigráficas torna o Itinerário a única fonte primária para a localização destas estações apesar de eventuais erros e omissões. O que não podemos é pura e simplesmente descartar a informação nele contida quando esta não se adequa a uma outra proposta de localização.
O sexto e último artigo desta série abordará a travessia do Douro e as vias que daqui partiam de Cale.
Continuando a descrição do Itinerário XVI, vamos agora analisar a sua passagem por Conimbriga, seguramente localizada nas ruínas romanas junto de Condeixa-a-Velha, subsistem ainda dúvidas sobre qual seria o trajecto da via. A indicação de 10 milhas a Aeminium, actual Coimbra, é também coerente com esta identificação.
Itinerário XVI Seilium Conimbriga m.p. XXXIIII Aeminium m.p. X Talabriga m.p. XL
A aproximação à cidade fazia-se sem dúvida pelo lugar de Tamazinhos, onde apareceu um miliário indicando oito milhas, valor compatível com a distância a Conímbriga, no entanto, subsistem dúvidas sobre o trajecto seguido até à cidade romana que, tal como as restantes estações deste itinerário, assenta sobre um povoado anterior pré-romano (Correia, 1993).
O primeiro traçado proposto seguia um trajecto directo à cidade, passando por Fonte Coberta e lugar do Poço. No entanto, este percurso era suspeito e avesso à normal tipologia da viação antiga dado que obriga a uma dupla travessia do Rio de Mouros.
Tentou-se assim uma alternativa que evitasse esse obstáculo, fazendo seguir a via mais a nascente, por Alcabideque, local onde subsiste o sistema romano de captação da água que alimentava a cidade por um aqueduto. Se por um lado, esta hipótese permitia um trajecto menos acidentado e mais directo Coimbra, por outro lado, não havia maneira de acertar a marcação miliária com as 10 milhas indicadas a Coimbra nem com as 8 milhas indicadas no miliário de Tamazinhos.
Fig. 1 – A vermelho as anteriores propostas e a azul o nova proposta de traçado da via cortando por Castelo/Ns. da Piedade (8 m.p), Ponte de Atadôa (9 m.p.) e Portela de Alfarda (10 m.p.).
Deste modo, procuramos uma alternativa que cumprisse com esses critérios. Depois de vários hipóteses, consideramos que o traçado mais provável seria aquele que vinha de Coimbra pela Venda do Cego, Eira Pedrinha e Ponte de Atadôa. Aliás, Gaspar Barreiros (com base num manuscrito de Acurcio) refere a existência de inscrições junto desta ponte, uma das quais mencionando um tal Valerius Avitus nascido em Conimbrica, o que permitiu associar este topónimo às ruínas junto a Condeixa-a-Velha (Barreiros, 1565: fl. 49-50; CIL II 391).
Fig. 2 – O nó viário de Conímbriga, cruzamento da Itinerário Olisipo-Bracara com o itinerário transversal de Collipo a Bobadela.
Ora, esta hipótese é reforçada pelo facto de Eira Pedrinha se encontrar a oito milhas de Coimbra, apontando para a existência de uma mutatio neste local. De facto, em torno da Capela da Sra. da Piedade apareceram vestígios romanos, nomeadamente tijolos de coluna e um pavimento de opus signinum. Por outro lado, no morro adjacente regista-se o topónimo “Castelo” que corresponde a um povoado do Bronze Final (Vilaça, 2012: 21). Apareceram também algumas pedras visigóticas, actualmente no Museu Machado de Castro, tendo uma delas sido reutilizada no arco cruzeiro (Gaspar, 1983: 189).
Continuando o percurso para sul, a nona milha era vencida junto da Capela de Atadôa, de onde partiria um ramal de acesso a Conímbriga perfazendo as 10 milhas indicadas no Itinerário. No entanto, para quem seguia para Olisipo poderia evitar a cidade seguindo em direcção à Portela da Mata da Alfarda, ponto que por sua vez está a 10 milhas de Coimbra e a 34 de Ceras como indicado no Itinerário (ver post anterior) .
O restante trajecto rumo à travessia do Rio Mondego não oferece grandes dificuldades, sendo a marcação miliária assinalada por vários sítios romanos que seguramente teriam uma função viária.
Fig. 3 – A via para Aeminium indicando a sequência de sítios romanos de acordo com a marcação miliária – Portela das Alfarda (10 m.p.), Atadôa (9 m.p.),Castelo (8 m.p.),Orelhudo (7 m.p.), Escoural (6 m.p.), Picoto/Malga (5 m.p.), Antanhol (4 m.p.), Ladeira da Paula (3 m.p.), Cruz dos Morouços (2 m.p.) e Carrascal (1 m.p.).
A meio percurso entre Eira Pedrinha e o Mondego viria a estabelecer-se um acampamento romano em Antanhol (destruído pela construção do aeródromo), permitindo exercer controlo sobre esta importante passagem. Depois de cruzar o rio, a via continuava para norte em direcção à povoação da Vimieira (Mealhada), local onde apareceu um miliário indicando doze milhas, ou seja, a distância ao Mondego, indiciando a possível existência de uma estação viária neste local, possivelmente no sítio romano conhecido por «Cidade das Areias».
A via seguia depois por Anadia e Águeda rumo a Talabriga, estação que deverá estar relacionada com a travessia do Rio Vouga. No entanto, a sua localização continua a dividir os investigadores dado que o Itinerário indica 40 milhas entre Aeminium e Talabriga quando a distância entre o Mondego e o Vouga não ultrapassa as 34 milhas, problema que será abordado no próximo artigo centrado em Talabriga.
Continuando a série de artigos sobre a rota de Lisboa a Braga, chegamos agora à terceira estação mencionada no Itinerário XVI que, na maioria dos códices medievais é designada por «SELLIUM» ou «CELLIUM». A descoberta de duas inscrições de emigrantes Seilienses, uma encontrada perto de Porto do Son, Galiza (CIL II 2562) e outra dentro do Mosteiro de Lorvão (HEp 9, 1999, 743), sugere que a grafia correcta seria «SEILIUM». Estas divergências resultam muito provavelmente do facto do Itinerário que conhecemos hoje é o resultado de sucessivas cópias medievais produzidas desde a Alta Idade Média sobre o título de Itinerarium Antonini Augusti, acrescentando distorções ao documento original quer nos topónimos quer nas distâncias assinaladas. A sua identificação com Tomar reúne actualmente um grande consenso entre investigadores, no entanto, esta localização apresenta ainda algumas questões por resolver como veremos a seguir.
A primeira tentativa de localização desta estação deve-se a Gaspar Barreiros que no século XVI propunha a sua identificação com “a vila de Ceice, junto a Tomar” (Barreiros, 1561: fl. 48; actualmente designada por Seiça, Ourém) seguindo a similitude fonética com Ceilium. Esta proposta foi seguida por André de Resende quando publica no seu “Antiguidades…”, acabando por cristalizar na historiografia portuguesa. Só nos alvores do século XX é que alguns autores retomariam a questão, em particular o trabalho pioneiro de Vieira de Guimarães, alertando para os inúmeros vestígios romanos que iam aparecendo na cidade de Tomar, assim como a provável passagem da via romana nesta importante travessia do Rio Nabão (Guimarães, 1927: 13-27). Vieira de Guimarães combatia assim os mitos e lendas que vinham associando esta povoação à antiga Nabância e ao martírio de Santa Iria (seguramente “guiados” pelo hidrónimo Nabão), teses que viriam a revelar-se infundadas (Amendoeira e Martins, 2020: 109).
Do pouco que sabemos sobre este povoado, supõe-se que teria atingido estatuto municipal com base numa inscrição votiva dedicada ao Genio / municipi(i) que apareceu reutilizada na construção da torre de menagem do castelo templário (AE 1993, 881; RAP 256). Em concordância com esta hipótese, a marca de oficina “R. p. S.” registada em dois tijolos (HEp 11, 2001, 703 e 704) que apareceram próximo da cidade foi desdobrada em R(es) p(ublica) S(eiliensis) (Fernandes e Ferreira, 2002). Este estatuto administrativo parece ter continuidade na Alta Idade Média com base no Paroquial Suevo que menciona Selio como uma das sete paróquias que integravam a diocese Conimbricensis. Segundo um documento de 1317, transcrito por Pedro Alvares Seco da Ordem de Cristo, «Santa Maria de Thomar» (possivelmente a actual igreja templária de Santa Maria do Olival) seria anteriormente designada por «Santa Maria de Selio» (Guimarães, 1927: 103-107), mas a partir daí o topónimo entra na penumbra.
Apesar da escassez de informação é muito provável que toda esta área integrasse o território da Civitas Seilienis durante o período romano. A posterior identificação de estruturas romanas nas traseiras do quartel dos bombeiros, associadas a um possível forum, parecia vir confirmar esta localização (Ponte, 1995). No entanto, continuam a existir dúvidas entre os investigadores quanto à tipologia e funcionalidade dos edifícios que ali existiam. Nesse sentido, também seria possível associar estes vestígios à estação viária que aqui certamente existia, atendendo à importância desta travessia e ao achados de miliários (ver viasromanas.pt#tomar).
As dúvidas na identificação de Seilium com Tomar estão são também relacionadas com a aparente incompatibilidade desta localização com a informação constante no Itinerário. De facto, é impossível ir de Tomar a Conímbriga percorrendo apenas as 34 milhas indicadas no Itinerário, seja qual for o percurso escolhido, dado que no terreno contam-se cerca de 42 milhas, havendo portanto um défice de oito milhas.
Na maioria das edições esta parte do Itinerário XVI é transcrita da seguinte maneira: SCALLABIN SEILIUM XXXII (32) CONIMBRIGA XXXIIII (34)
Percorrendo estas oito milhas de Tomar para norte seguindo o trajecto proposto por Vieira de Guimarães por Calçadas, Freixo, Ceras, Portela de Vila Verde e Rego da Murta, etc, rumo a Conímbriga (Guimarães, 1927: 13-27; Mantas, 1996), verifica-se que o local a 34 milhas de Conímbriga e a oito de Tomar corresponde à travessia da Ribeira de Ceras. Junto da ponte que ainda ali existe, Guimarães fotografou um possível miliário, actualmente desaparecido, o que permite equacionar a existência de uma estação viária neste local, no entanto, a sua identificação com Seilium revela-se muito problemática.
Vieira chamou-o de “castrum romano” mas até hoje não apareceram vestígios significativos desse período (nem anteriores) na área de Ceras. A própria localização do “Castelo de Ceras” referido na documentação medieval é incerta. Em 1542, Pedro Álvares Seco refere a existência de vestígios desta fortificação, mas em 1799, Viterbo já nada viu de relevante (Barroca, 1997: 178) . Para Salete Ponte esta fortificação estaria no Monte do Alqueidão, seguindo aliás uma anterior proposta de Amorim Rosa (Ponte, 1995: 292). Por seu lado, João Romão apontou para o monte das Castelhanas, onde identificou um possível recinto amuralhado, ainda bem visível nas fotografias de satélite (Romão, 2012: 99). No entanto, para Carlos Batata, que coordenou a Carta Arqueológica da região, não há evidências materiais que suportem qualquer uma destas propostas (Batata, 1997). Como nenhum dos locais foi até agora escavado, a questão mantém-se por resolver, apesar da sua relevância histórica.
Fig. 1 – Trajecto da via romana na área de Ceras e a possível localização de Seilium no Monte das Castelhanas (representando o eventual recinto amuralhado)
Com efeito, em diploma régio de 1159 D. Afonso Henriques faz a doação do Termo de Ceras aos templários, com a obrigação destes reconstruirem a antiga fortaleza que é designada no documento por “castrum quod dicitur Cera” (DMP, DR I, doc. 271). Esta acção do primeiro rei de Portugal visava restabelecer o controlo do território recentemente conquistado aos “mouros” através de doações à ordem do templo com a obrigação destes reconstruirem as fortalezas entretanto arrasadas pelo conflito. Para isso escolhe pontos estratégicos da rede viária que permitiam consolidar o poder cristão nestes territórios. Porém, no caso do Castelo de Ceras isso não viria a acontecer, dado que cerca de um ano depois, Gualdim Pais abandona o projecto de reconstrução do castrum Cera e inicia a construção do Castelo de Tomar, futura sede templária em Portugal, por ter “melhor cabeço e melhores águas” (Barroca, 1997: 178).
Fig 2 – Limites aproximados do Termo de Ceras e o possível traçado da via Aeminium-Scallabis com estações em Rego da Murta, Ceras, Tomar e Paialvo.
Assim, Ceras e Tomar integravam o Termo de Ceras (e muito provavelmente também a antiga CivitasSeiliensis romana), viabilizando, portanto, a sua identificação com Seilium. No entanto, notar que Ceras é referida como «castrum» enquanto Tomar surge como «porto de Thomar“, sugerindo que essa seria a sua principal função, dizendo explicitamente “qui est in strata de colimbria que uadit ad sanctaren”, ou seja, que está na estrada de Coimbra que vai para Santarém (in DMP, DR I, doc. 271).
Apesar de não haver dúvida de que o núcleo urbano romano viria a desenvolver-se em Tomar, local de cruzamento do Nabão, nada obsta a que o Itinerário refira a antiga cabeça de território, eventualmente localizada em Ceras. De resto, todas as estações do Itinerário XVI correspondem a povoados proto-históricos, muitas vezes remontando às antigas “chefaturas” do Bronze Final, o que é bem revelador da ancestralidade desta rota. O facto de o Monte das Castelhanas assentar sobre o actual quadrifinio que divide as freguesias de Areias, Chãos, Casais e Alviobeira (sendo que Ceras integra esta última), é outro indicador da antiguidade deste local como referência geográfica.
Analisando as duas possibilidades, Ceras ou Tomar, haveria que corrigir as distâncias indicadas no Itinerário XVI, eventualmente resultantes de um erro de transcrição dos copistas medievais. Se admitirmos a sua localização em Ceras, haveria conformidade com as 34 milhas indicadas a Conímbriga, mas teríamos de corrigir a distância de Seilium a Scallabis das 32 indicadas para as cerca de 42 milhas medidas no terreno entre Ceras e Santarém. Um possível explicação seria uma eventual troca entre os numerais “XXXXII” por “XXXII”, omitindo o primeiro “X” (no I.A. o número 42 surge também nesse forma em vez de XLII).
Se por outro lado posicionarmos esta estação em Tomar, haveria que corrigir a distância de Seilium a Conimbriga, passando neste caso de 34 para 42 milhas, adicionando as oito milhas em falta para atingir Tomar, o que poderia ser explicado por eventual troca entre os numerais “XXXXII” (42) e “XXXIIII” (34), o que também é bastante plausível, confundindo o terceiro “X” por dois traços verticais “II”.
Assim, haveria duas hipóteses de correcção: Correção com Seilium em Ceras SCALLABIN SEILIUM XXXXII (42) CONIMBRIGA XXXIIII (34)
Correção com Seilium em Tomar SCALLABIN SEILIUM XXXIIII (34) CONIMBRIGA XXXXII (42)
Em síntese, a localização de Seilium em Tomar está longe de estar fechada e nada nos dados disponíveis permite descartar a hipótese da sua identificação com a arruinada fortificação referida na Carta de Doação do Termo de Ceras à Ordem de Cristo. Acima de tudo, mais que resolver a questão, pretendemos alertar para as incertezas que ainda rodeiam a identificação de muitos destes topónimos, cujas localizações são por vezes dadas como seguras, quando na verdade estamos bem longe dessas supostas certezas. No próximo artigo analisaremos a passagem da via por Conímbriga.
Continuando a série de posts sobre o Itinerário XVI vamos agora analisar a sua passagem por Santarém rumo a Tomar. Não restam muitas dúvidas sobre a associação do povoado que ocupava o morro de Santarém a Scallabis. Segundo o Itinerário, esta estação estava a 32 milhas de Ierabriga, distância compatível com o percurso entre o Povoado dos Castelinhos e a base do morro de Santarém junto à margem direita do Tejo (ver post anterior).
Fig. 1 – Traçado da Via Ierabriga Scallabis passando por Alenquer (miliários) e Ota (castro). m.p. XXXII
De Scallabis a via continuava até Seilium percorrendo, segundo o Itinerário, 32 milhas. Ora, este valor parece insuficiente para cobrir o percurso entre Santarém e Tomar dado que a distância em linha recta se aproxima já das 31 milhas, obrigando a traçar um trajecto praticamente em linha recta até Tomar. Deste modo, é provável que a via seguisse pela margem do rio e não uma rota mais interior passando por Torres Novas como tem sido proposto (Mantas, 1996; Romão, 2012). Aliás, este corresponde ao trajecto descrito pelo Padre Castro no seu Roteiro Terrestre para a Estrada Real de Santarém a Tomar.
A partir de Santarém a via seguia por quatro milhas (uma légua) até à “Cruz da Entrada”, também designada por Cruz da Légua , havendo vestígios romanos nas proximidades (Cirne). Logo depois fazia a travessia o rio Alviela para daí cruzar a antiga Ilha de Alvisquer por Azinhaga rumo à Golegã (Figura 2). Inicialmente fizemos passar a via próximo do importante povoado fortificado de Chões de Alpompé (a 8 milhas a norte de Santarém) e do povoado de Pombalinho (vestígios de ocupação que remonta à Idade do Bronze).
Fig. 2 – Novo traçado da via a norte de Santarém (azul), seguindo pela antiga Ilha de Alvisquer. A marcação miliária coloca a milha XII em Azinhaga, possível mutatio.
No entanto, a marcação miliária aponta para um traçado mais recto seguindo em direcção a Azinhaga, a 12 milhas a Santarém, sugerindo que neste local haveria estação viária, provavelmente uma mutatio. Aliás, o topónimo Azinhaga remete para a existência da via (do árabe, “o-caminho”). O troço em causa começa na Cruz da Légua (4 m.p. a Santarém), onde há vestígios romanos (Cirne) e segue pela antiga Ilha de Alvisquer até Azinhaga (Figura 2).
Cruzava depois o Rio Almonda em direcção à Golegã, mas a partir daqui as dúvidas acentuam-se, dado que não foi ainda possível determinar o local onde se fazia a travessia da Ribeira de Beselga. Existem várias possibilidades que reduzimos a três hipóteses. A primeira hipótese seguia mais a ocidente por Paialvo, trajecto mais de acordo com a viação antiga pois cruza a Ribeira da Beselga mais a montante . A segunda hipótese (cor rosa) seguia um percurso mais recto a Tomar cruzando a Ribeira de Beselga junto do miliário dos Santos Mártires. Por fim, existe ainda a hipótese da via seguir o percurso da antiga “Estrada Real” Santarém-Tomar passando em Atalaia e Asseiceira e Santa Cita, seguindo depois a margem direita do Nabão até Tomar.
Fig. 3 – Possíveis variantes entre a Golegã e Tomar. A actual proposta faz passar a via por Paialvo. A rosa o traçado por Atalaia, bifurcando em duas variantes, uma passando junto do miliário de Santos Mártires e outro por Asseiceira.
Em 1159, na Carta de Doação do Termo de Ceras é referido o ‘portum de thomar qui est in strata de colimbria que uadit ad sanctaren’. ou seja, a estrada para Santarém passava no ‘Porto de Tomar’ que deverá corresponder ao local da actual povoação (DMP DR Doc 271). A via volta a ser referida em 1222 na Carta de Doação da albergariam de Saiceira a Pedro Ferreiro e a Maria Vasques, sua mulher, com a “condição de a aproveitarem e utilizarem melhor do que os seus antecessores” (PMM doc 72). Neste documento é referido que a ‘strata colimbriana ad Sanctarem’ servia de limite oeste da propriedade, partindo da “Conchada de Beselga” até ao término ‘inter ambas lagonas´, no entanto, a localização destes locais é incerta e não sabemos a qual das hipóteses se refere.
As parcas informações disponíveis sobre o possível trajecto da via não permitem excluir qualquer destas possibilidades, sendo que nenhuma delas cumpre com as 32 milhas indicadas, aproximando-se todas elas das 34 milhas. A diferença não é muito significativa e poderá resultar de um erro dos copistas medievais.
Mas se até aqui há uma relativa coerência entre as distância no terreno e valores indicados no Itinerário, o mesmo não acontece para a etapa seguinte entre Seilium a Conimbriga, onde se indica uma distância de 34 milhas, valor manifestamente insuficiente para cumprir um percurso entre Tomar e Conímbriga, questão que será abordada na Parte 3 desta série de artigos, a propósito da localização de Seilium.
Item ab OLISIPONE BRACARAM AUGUSTAM m.p. CCXLIII Ierabriga m.p. XXX Scallabis m.p. XXXII Seilium m.p. XXXII Conimbriga m.p. XXXIIII Aeminium m.p. X Talabriga m.p. XL Langobriga m.p. XVIII Cale m.p. XIII Bracara m.p. XXXV
Este grande itinerário ligava o porto de Olisipo a Bracara, decalcado o antigo eixo viário que perdura até aos dias hoje. Apesar da sua importância e de conhecermos o seu trajecto em traços gerais, subsistem ainda grandes dúvidas na localização das estações intermédias. De facto, além dos caput viae, Lisboa e Braga, só temos certezas sobre a localização de Scallabis (Santarém), Conimbriga (Condeixa-a-Velha), Aeminium (Coimbra) e Cale (Porto/Gaia). Quantos às restantes estações, Ierabriga, Seilium, Talabriga e Longobriga, embora se consiga estimar a sua provável localização, ou pelo menos, a sua área de influência, o seu exacto posicionamento continua em dúvida, não havendo provas conclusivas que possam fechar em definitivo esta discussão iniciada pelos iluministas do século XVI. Permanece assim como uma das grandes questões em aberto na viação antiga do nosso país.
Desde logo, é muito provável que haja erros nos valores indicados pelo Itinerário para as distâncias intermédias, dado que a distância total indicada de 244 milhas é insuficiente para cumprir um percurso entre Lisboa e Braga que, segundo o traçado proposto, ronda as 259/260 milhas. Mas em que pontos estariam esses erros?
As dúvidas surgem logo na primeira estação para quem partia de Olisipo. Tradicionalmente, Ierabriga tem sido identificada com Alenquer, hipótese que foi sendo reforçada com a descoberta de muitos vestígios romanos no aro desta povoação (incluindo diversos miliários) que apontavam para a existência de uma estação viária nesta povoação. Apesar de ser praticamente consensual, esta identificação contraria a informação registada no Itinerário, dado que este indica 30 milhas para esta etapa quando a distância entre estes pontos ronda as 33 milhas.
Itinerário XVI – Olisipo, Ierabriga, Scallabis e Seilium, as três primeiras estações desta rota.
Ora, seguindo o percurso proposto por Loures, Alverca e Vila Franca de Xira, atingimos a milha 30 na base de um dos mais importantes povoados da margem do Tejo, o Povoado do Monte dos Castelinhos.
Aliás, sendo o topónimo terminado em briga, é muito mais provável tratar-se de um povoado pré-romano fortificado e não um povoado aberto como o assentamento romano de Alenquer.
Está localização no Povoado dos Castelinhos é também coerente com as 32 milhas indicadas no Itinerário entre Ierabriga e Scallabis, a estação seguinte. De facto, essa é a distância medida entre a base de Castelinhos e a base do morro de Santarém, o que vem reforçar este posicionamento. Neste local a via abandonava a margem do Tejo e seguia para Alenquer, de modo a evitar o vasto Paúl da Ota que seria intransitável.
Vista actual do Povoado dos Castelinhos, provável localização de Ierabriga. Na sua base passava a via Olisipo a Scallabis, a 30 milhas da primeira e 32 milhas da segunda.
Esta situação está longe de ser inédita na viação romana e é perfeitamente clara neste Itinerário, dado que a totalidade dos topónimos correspondem a povoados pré-romanos e não a estações viárias romanas. Estes povoados seriam seguramente as cabeças administrativas dos territórios atravessados pela via, continuando depois com sede das civitates do período romano, tendo em muitos casos continuidade como cabeça dos termos medievais.
O problema complica-se nas etapas seguintes, dado não ser possível ir de Santarém a Conímbriga percorrendo apenas as 66 milhas indicadas (32 + 34) quando a distância real entre estes pontos ronda as 76 milhas, sugerindo a existência de erros que suprimiram 10 milhas ao percurso. Consequentemente, a identificação de Seilium com Tomar não pode ser considerada fechada, apesar de esta proposta ser hoje praticamente unânime. De facto, admitindo que as 34 milhas indicadas a Conímbriga estariam correctas, então Seilium estaria oito milhas a norte de Tomar, o que posicionaria esta estação junto ao Castelo de Ceras, onde apareceu miliário.
Continuando o percurso, surgem novas dificuldades na determinação da localização de Talabriga. Esta estação tem sido associada ao cruzamento do Rio Vouga, atendendo à sequência de paragens, no entanto as 40 milhas indicadas a Coimbra (Aeminium) colocaria a estação a norte desse rio, dado que a distância entre o Mondego e o Vouga não ultrapassa as 34 milhas. Esta incongruência está na origem da grande discussão que se instalou em torno da localização desta estação ainda sem fim à vista, em particular porque as distâncias indicadas no Itinerário parecem invalidar a sua identificação com o povoado proto-histórico do Cabeço do Vouga como se tem pretendido.
Mais pacífica parece ser a identificação da estação seguinte, designada Langobriga, com o Castro de Fiães ou do Monte Redondo, em concordância com as 13 milhas indicadas a Cale, apesar deste assentamento estar relativamente afastado da via (cerca de duas milhas a nascente). Deste modo, o Itinerário não parece indicar propriamente as estações romanas ao longo do percurso, mas os povoados que eram cabeça dos territórios cruzados pela via.
Por último, para a etapa final entre Cale e Bracara são indicadas 35 milhas, valor que está de acordo com o percurso entre Porto e Braga pela rota da EN14, e que foi confirmado por diversos miliários (ver https://viasromanas.pt/blog/index.php/2020/06/05/via-bracara-cale/).
Depois desta visão geral sobre as principais questões ainda em aberto sobre o Itinerário XVI, vamos seguidamente analisar estes problemas em detalhe e propor possíveis soluções. Mas isso será o objecto dos próximos artigos deste blog. Mantenham-se atentos!
The recent proliferation of the so called “Camino de Santiago” (St. James’ Way), although it has its merits, is creating a distorted vision of the ancient road system by tracing indiscriminate routes all over the country without a secure historical basis. Some care in the elaboration of these routes is thus required in order to reflect the true reality of the ancient paths, instead of trying to “force” a route that is hovering here and there, vaguely in the direction of Santiago, and that in most cases has nothing to do with the ancient roads that served this pillgrimage.
Of course, one can start from any geographical point and go to Santiago, but that does not mean that the path was used for that purpose. The route used by the pilgrims would certainly be the ancient routes inherited from the Roman period (but in reality with much older origins…), and apart from a few minor variations introduced over time, these routes remained practically unchanged until the 19th century, when it was necessary to build a new road network better adapted to motorised traffic.
Now, for those departing from the current Portuguese territory, the two main access gates to Santiago would be Tui and Chaves. The first corresponds to the great S-N route from Lisbon which, like today, runs parallel to the coast passing through Santarém, Tomar, Coimbra and Porto, and then continues along the so-called “Central Way” via Barcelos to Valença. Naturally, for those coming from the Beiras region, the most direct route would be via Braga, continuing along the Bracara-Tudae road to Valença. This route aggregated various routes that crossed the River Douro respectively in Porto Antigo, Caldas de Aregos and Régua. From this last place, a route to Chaves run through the Sanctuary of Panóias and reached Chaves by crossing the heights of the Padrela Mountain, where it received another route also coming from another important crossing of the Douro River in Numão (Vesuvio/Ns. da Ribeira) that came through Carlão and Alto do Pópulo until it joined the Régua-Chaves axis near the important Roman mining exploitation of Trêsminas. From Chaves, the pilgrims would enter Galicia, heading towards Torre de Sandiás (Ourense), the station of Geminas mentioned in the XVIII Itinerary from Bracara to Asturica, an axis which crossed at this point, continuing from here to Santiago.
The prevalence of these ancient routes throughout the Middle Ages and even in much later periods makes it impossible to imagine that the route followed a “medieval route” to Santiago different from the one used in the Roman period, although here and there some variants have been introduced over the centuries. In this way, the map we present ends up being a panorama of the routes available for those who were heading to Santiago, which from any point quickly entered this ancient network of roads that practically covered whole the current Portuguese territory.
Milestone converted into Alminhas (shrine) near the Church of Ns. de Cervães (Mangualde)
The result is that although we are talking about different periods in time, the Roman and medieval roads are essentially the same physical reality. This can be seen as we travel along these roads because the great majority of the shrines, hermitages, crosses and landstones of the medieval period marking the passage of the way are positioned in accordance with the Roman mile of about 1500 m. In other words, even on the stretches where there are no milestones, it is possible to follow this marking every thousand steps which accompany the pilgrim along the route.
Milestone of Augustus on the courtyard of the Romanesque church of Rubiães, converted into a sarcophagus.
The historical density and typology of these routes has nothing to do with this multiplicity of routes that have been created towards Santiago, distorting the historical reality, taking the pilgrim away from the true immersive experience that these historical routes provide.
A recente proliferação dos chamados «Caminhos de Santiago», ainda que tenha os seus méritos, está a criar uma visão distorcida da viação antiga ao traçar percursos indiscriminados um pouco por todo o país sem bases históricas seguras. Seria necessário ter algum cuidado na elaboração destes percursos de modo a reflectir a verdadeira realidade da viação antiga, em vez de “forçar” um percurso que vai atalhando por aqui e acolá, vagamente em direcção a Santiago, e que na maioria da vezes nada têm de antigo.
Claro que se pode partir de qualquer ponto geográfico e seguir para Santiago, mas isso não significa que o caminho fosse utilizado para esse fim. O caminho utilizado pelos peregrinos seria seguramente pelas velhas vias herdadas do período romano (mas na realidade com origens bem mais antigas…), sendo que para além de umas pequenas variantes introduzidas ao longo dos tempos, estas rotas mantiveram-se praticamente inalterados até ao século XIX, momento a partir do qual foi necessária construir uma nova rede de estradas mais adaptada ao trânsito motorizado.
Ora, para quem partia do actual território português, as duas principais portas de acesso a Santiago seriam Tui e Chaves. A primeira corresponde à grande rota S-N oriunda de Lisboa que tal como hoje seguia paralela à costa passando por Santarém, Tomar, Coimbra e Porto, continuando depois pelo chamado «Caminho Central» por Barcelos até Valença. Naturalmente que para vinha das Beiras o caminho mais directo seria via Braga, continuando pela via Bracara-Tudae até Valença. Este eixo viário, agregava várias rotas que cruzavam o Rio Douro respectivamente em Porto Antigo, Caldas de Aregos e Régua. Deste último local partia uma via rumo a Chaves passando junto do Santuário de Panóias e cruzando depois por alturas da Serra da Padrela, onde recebia uma uma outra via também proveniente de outro importante cruzamento do Rio Douro em Numão (Vesúvio/Ns. da Ribeira) que vinha por Carlão e Alto do Pópulo até reunir com o eixo Régua-Chaves junto da importante exploração mineira romana de Trêsminas. A partir de Chaves, os peregrinos entravam na Galiza, seguindo na direcção de Torre de Sandiás (Ourense), a estação de Geminas referida no Itinerário XVIII de Bracara a Asturica, eixo que cruzava neste ponto, continuando daqui para Santiago.
A prevalência destes trajectos antigos por toda a Idade Média e mesmo em períodos bem posteriores, inviabiliza a hipótese de o caminho seguir uma “via medieval” para Santiago diferente da utilizada no período romano, apesar de aqui ou ali terem sido introduzidas algumas variantes ao longo dos séculos. Deste modo, o mapa que apresentamos acaba por ser panorama das rotas disponíveis para quem se dirigia para Santiago, que partindo de qualquer ponto rapidamente entrava na rede geral antiga pois esta cobria praticamente a totalidade do actual território português.
Miliário convertido em Alminhas junto da Igreja de Ns. de Cervães (Mangualde)
Daqui resulta que apesar de estarmos a falar de diferentes momentos temporais, o caminho romano e medieval é no essencial a mesma realidade física. Isso mesmo se verifica ao percorrer estes eixos viários pois a grande maioria das alminhas, ermidas, cruzeiros e marcos divisórios do período medieval assinalando a passagem da via estão posicionados em concordância com a marcação miliária de 1500 m, ou seja com a chamada “milha romana”. Ou seja, mesmo nos troços onde não há miliários, é possível seguir a marcação de mil em mil passos através desses marcadores da estrada que acompanham o peregrino ao longo do trajecto.
Miliário no adro da Igreja Românica de Rubiães reconvertido em sarcófago no período Medieval
A densidade histórica e tipologia destes percursos nada tem a ver com esta multiplicidade de percursos que têm sido criados rumo a Santiago, distorcendo a realidade histórica, tirando o peregrino da verdadeira experiência imersiva que estes caminhos históricos proporcionam.
When we started this project in 2004, the idea was to compile the available knowledge about Roman roads in Portugal and make it accessible to everyone. Now, the best way to do that would be to publish online travel routes covering these routes, following the initial spirit of the so-called “Itinerary of Antoninus”, an essential document for the identification of Roman routes, even because at the time there was practically nothing online on the subject.
It quickly became clear that the study of the Roman road network remained buried in a mire of conjecture and great doubts not only about the route followed by the road as well as the location of the stations mentioned in the Itinerary, which actually take us to a pre-Roman reality, a fact evidenced by the large number of indigenous toponyms listed in the document as road stations (the vast majority), and in all cases we can associate then with Iron Age settlements, commonly called “castros”.
Most likely the document has its origins in the military conquest and subsequent civil wars, ending up fixing the main routes that interconnected the strategic centres, but essentially using the same routes of the Iron Age. The aim was naturally to keep control over the traffic circulating along those axes, but above all, a way to control the access to the enormous metalliferous wealth that characterises the Iberian Peninsula, whose economic value would have been the main factor behind the Roman conquest.
The following development is thus in part the continuity of that pre-Roman reality, reflecting the settlement model adopted during the Iron Age, characterised by the installation of settlements near the road axes, forcing the fortification of these settlements with thick walls, as opposed to the previous period, the Bronze Age, where preference was given to settlements on mountain peaks, far from the road and protected from potential enemies, thus dispensing with the construction of a walled enclosure. It is obviously a general framework with several exceptions.
Consequently, the so-called “Roman road” is invariably based on ancient routes of the Iron Age, but receiving many upgrades that provided a better transitability that never existed before. Thus, it would be more correct to speak of “ancient roads” than “Roman roads” since it was not exactly the Romans who designed and built the road. On the other hand, the Roman geo-strategic vision was one of maximum economic exploitation and what mattered was to ensure that the Imperial power had control of the main mining exploitations.
This is also reflected in the epigraphy related to the exploitations of Las Medulas (Ponferrada, León) and Tresminas (Vila Pouca de Aguiar), attesting in both cases a direct administrtion by the Imperial power. In fact, the strong investment carried out in the roads that departed from Braga throughout the Imperial period is the reflex of this need to control this vast mining region that extends until Asturica (today Astorga), fact that is reflected in the great number of milestones of different emperors registered in these roads that connected the heads of the convents Lucencis (Lugo), Bracarensis (Braga) and Asturicensis (Astorga).
Apart from these roads, which are exceptional even in the Roman context, all the others have only a few milestones, much more spaced, marking important points of the route, namely road stations. The existence of remains of structures attributable to the Roman period in these locations indicate the presence of a road establishment to support travelers. This more spaced marking compared to the northwestern peninsular routes is reflected in the smaller number of known milestones south of the Douro. For example, in the Algarve, one of the most “Romanised” regions of the country, only one milestone is known, and even this one has singular characteristics that set it apart from the others found in Portugal.
The other relevant aspect in the interpretation of the itineraries is that it is not a compilation of routes as it has been claimed (in fact, the designation “Vias” was applied in one of the medieval copies, as well as the numbering), but instead these are itineraries, interconnecting the maximum number of relevant points, providing the travellers with a summary of the main routes and the respective intermediate distances. Thus when it is said that there were three ways to Merida, one through Évora, another one through Alter do Chão and another one closer to the Tagus (the so called Via XII, XIV and XV, respectively), we don’t really have three ways to Merida, but three different itineraries, which use independent stretches of roads, forming a great route.
In fact, everything indicates that the main route would be the variant through Alter do Chão, both because it is the shortest route and because it has received several improvements, including the construction of major engineering works such as the Roman bridge of Vila Formosa. Thus, everything indicates that this would be the great route that linked Mérida to the Tejo River, forming a route with caput viae in Santarém and Mérida.
The choice of Mérida for capital of the Lusitânia is surely related with the crossing here of the Guadiana, being therefore this way that allowed the shortest connection of Mérida to the sea, linking this crossing of the Guadiana to the mouth of the Tejo River.
The foundation of Portugal as independent nation and the consequent border disputes with the Kingdom of Spain eventually dictated the slowing down of some of the great trade routes of antiquity, but apart from these forced changes, the Roman road network remained in use for centuries to come and contrary to what has been said it did not completely disappear from the landscape (following the old myth that all Roman roads were paved), but remains in use now as municipal roads or agricultural paths, despite the attacks it has suffered during the last century.
On the contrary, what we see on the ground is a great resilience of these millenary paths, whether they are transformed into modern roads or as almost imperceptible paths on the top of the mountains. Their natural, patrimonial and historical value will eventually come to the surface, which will induce a rehabilitation of these paths, creating an alternative future for these paths that can take them out of the current oblivion.
Map of the main Roman roads in Portugal and respective stations (@pedro.soutinho)
Quando iniciamos este projecto, a ideia era compilar o conhecimento disponível sobre viação romana e torná-lo acessível a todos. Ora, a melhor maneira de o fazer seria publicar online roteiros de viagem percorrendo estas vias, seguindo o espírito inicial do chamado “Itinerário de Antonino”, um documento essencial para a identificação dos trajectos romanos, até porque à época não existia praticamente nada online sobre o tema.
Rapidamente se tornou claro que o estudo da viação romana permanecia enterrado num lamaçal de conjecturas e de grandes dúvidas não só sobre o traçado da via como sobre as localização das estações mencionadas no Itinerário que na verdade. nos remetem para uma realidade pré-romana, facto evidenciado pelo grande número de topónimos indígenas listados no documento como estações viárias (a larga maioria), sendo em todos os casos podemos associa-las a povoados da Idade do Ferro, vulgarmente chamados de “castros”.
É provável que o documento tenha origens na conquista militar e subsequentes guerras civis, acabando por fixar as principais rotas que interligavam os centros estratégicos do domínio romano utilizando as mesmas rotas da Idade do Ferro. O objectivo era naturalmente exercer esse domínio controlando o trânsito que circulava nesses eixos, mas acima de tudo, uma forma de controlar o acesso à enorme riqueza metalífera que caracteriza a Península Ibérica, cujo valor económico estará na origem da conquista romana.
O desenvolvimento que se seguiu é assim em parte a continuidade dessa realidade pré-romana, reflectindo o modelo de povoamento adoptado durante a Idade do Ferro, caracterizado pela instalação de povoados nas proximidade dos eixos viários, obrigando à sua fortificação com grossas muralhas, ao contrário do período anterior, a Idade do Bronze, onde se dá preferência por assentamento nos picos dos montes, longe da estrada e protegidos de potenciais inimigos, dispensando por isso a construção de um recinto amuralhado. Trata-se obviamente um quadro geral onde cabem várias excepções.
Consequentemente , a chamada “via romana” assenta invariavelmente sobre antigos percursos da Idade do Ferro, sofrendo posteriormente diversos benefícios que viriam acrescentar uma transitabilidade que não possuía antes. Assim, seria mais correcto falar em “vias antigas” ou “milenares” do que “vias romanas” dado que não foram propriamente os romanos que traçaram e construíram a estrada . Por outro lado a visão geo-estratégica romana era de máxima exploração económica e o que interessava era assegurar o controlo por parte do poder Imperial das principais explorações mineiras.
Esta constatação está reflectida também na epigrafia relacionada com as importantes explorações de Las Medulas (Ponferrada, León) e Trêsminas (Vila Pouca de Aguiar), evidenciando em ambos os casos um controlo directo destas explorações por parte do poder Imperial. Aliás, o forte investimento levado a cabo nas vias que partiam de Braga ao longo de todo o período Imperial é bem o reflexo dessa necessidade de exercer controlar esta vasta região mineira que se estende até Asturica, facto reflectido no grande número de miliários de diferentes imperadores registados nestas vias que interligavam as sedes dos conventos Lucencis, Bracarensis e Asturicensis.
Fora estas vias, em tudo excepcionais, mesmo no contexto romano, todas as outras não contam mais do que uns quantos miliários, bastante mais espaçados, assinalando pontos importantes do percurso, nomeadamente estações viárias. A existência de restos de estruturas atribuíveis ao período romano nestes locais indiciam a presença de um estabelecimento viário para apoio aos viandantes. Esta marcação mais espaçada face às vias do noroeste peninsular é reflectida no menor número de miliários conhecidos a sul do Douro. Por exemplo em todo o Algarve, uma das regiões mais “romanizadas” do país, apenas se conhece um miliário, e mesmo este tem características singulares que o destacam dos demais encontrados em território nacional.
O outro aspecto relevante na interpretação dos itinerários é que não se trata de uma compilação de vias como se tem afirmado (na verdade, a designação de “Vias” foi aposta numa das cópias medievais, assim como a numeração), mas sim de grandes rotas, interligando o máximo número de pontos relevantes, fornecendo aos viandantes uma súmula dos principais trajectos e das respectivas distâncias intermédias. Assim quando se diz que havia três vias para Mérida, uma por Évora, outra por Alter do Chão e outra mais junto ao Tejo (as chamadas Via XII, XIV e XV, respectivamente), não temos propriamente três vias rumo Mérida, mas três itinerários diferentes, que vão utilizando troços de vias independentes, formando uma grande rota.
Aliás, tudo indica que o trajecto principal seria a variante por Alter do Chão quer por ser o traçado mais curto quer pelo facto de esta ter recebido diversos melhoramentos, nomeadamente com a construção de grandes obras de engenharia como a Ponte Romana de Vila Formosa. Assim, tudo indica que esta seria a grande via que ligava Mérida ao Rio Tejo, formando uma via com caput viae em Santarém e Mérida. Notar também que a escolha de Mérida para capital da Lusitânia está seguramente relacionada com o facto de aqui fazer-se o cruzamento do Guadiana, sendo portanto esta via que permitia a ligação mais curta de Mérida ao mar, ou sejam entre esta travessia do Guadiana e o Tejo, com os seus portos fluviais dispostos ao longo das suas margens e aproveitando o vasto estuário da boca do rio, aceder à rota marítima para o Mediterrâneo.
A formação de Portugal e as consequentes disputas fronteiriças com o Reino de Espanha acabaram por ditar o abrandamento de algumas das grandes rotas comerciais da antiguidade, mas para além destas alterações forçadas, a rede viária romana permanece em utilização pelos séculos vindouros e ao contrário do que se tem dito não desapareceu completamente da paisagem (seguindo o velho mito de que todo trajecto romano era lajeado), mas permanece em utilização agora como estradas municipais ou caminhos agrários, apesar dos atentados que tem sofrido durante a última centúria.
Pelo contrário, o que se verifica no terreno é uma grande resiliência destes trajectos milenares seja transformados em estradas modernas seja como caminhos já quase imperceptíveis nos altos das serras, e o seu valor natural, patrimonial e histórico acabará por vir à superfície o que irá induzir uma reabilitação destes trajectos, criando para estes caminhos um futuro alternativo que os possa retirar do actual oblivium.
Mapa Viário Romano com os principais eixos e respectivas estações de paragem (@pedro.soutinho)