Tag Archives: vouga

Parte 5 || Talábriga

Neste percurso pelo Itinerário XVI chegamos agora a uma das questões mais discutidas na historiografia nacional, a problemática localização de Talábriga. Pela sequência de estações não há qualquer dúvida que esta se deveria localizar nas proximidades do Rio Vouga que constitui o maior obstáculo entre Aeminium e Cale. No entanto, o seu exacto posicionamento é alvo de grande controvérsia entre investigadores.

Segundo o Itinerário XVI, teríamos:
Aeminium m.p. X
Talabriga m.p. XL
Langobriga m.p. XVIII
Cale m.p. XIII

Como é habitual, as primeiras tentativas de localização surgem no século XVI, tendo os iluministas portugueses proposto a sua identificação com Cacia (Barreiros, 1561) e Aveiro (Brito, 1597). A hipótese Cacia era baseada no achado de vestígios romanos na Torre da Marinha Baixa. No entanto, a passagem neste local é inviável dado que aqui era a antiga linha de costa em período romano, podendo corresponder a um vicus portuário. Aliás, toda a área de Aveiro estaria submersa, inviabilizando portanto a hipótese lançada por Brito.

A questão só é retomada no início do século XX, com diversos autores tentando compatibilizar as distâncias medidas no terreno com a informação contida no Itinerário. Entre eles, destaca-se Félix Alves Pereira que publica em 1907 um seminal artigo intitulado “Situação Conjectural de Talábriga”, onde alerta para a necessidade de posicionar Talábriga a norte do Vouga, dado que as 40 milhas indicadas são superiores à distância entre o Mondego e o Vouga (c. 34 milhas).

Com base na distância indicada a Langobriga (18 m.p.), equaciona a hipótese de Talabriga estar na área da povoação de Branca, apontando como possíveis localizações o Castro de São Julião e o vicus de Cristelo, hipótese seguida por autores posteriores (Souto, 1941; Vaz, 1983: 32-38).

Fig. 1 – Esboço do trajecto entre Coimbra e o Porto elaborado em 1941 por Alberto Souto

O problema desta proposta é que não acerta com o Itinerário dado que este local não está a 40 milhas de Aeminium. De facto a distância deste local ao Vouga é de cerca de 10 milhas perfazendo um total de 44 milhas a Aeminium (34+10) quando o Itinerário indica 40.

Admitindo que está distância está correcta (não havendo razões objectivas para duvidar deste valor), então Talabriga teria de estar 6 milhas a norte do Vouga, distância que permite associar esta estação ao povoado castrejo da Ns. do Socorro em Albergaria a Velha. Aliás, na Carta do Couto de Osseloa do ano 1117 (DMP DR 49) é referida a «strada que currit de Portugal in directo de Petra de Aquila», sendo que a generalidade dos autores identificam a “Pedra de Águia” com o actual Bico do Monte no Santuário da Ns. do Socorro (Ribeiro, 1810:243-246, Oliveira, 1943), sinal evidente que a via corria por ali. O Monte da Sra. do Socorro é mencionado em documentos medievais como «Albergarie veteris de Meigonfrio», topómimo com possível origem no termo latino mansio (Oliveira, 1943). João de Almeida refere a existência no local de uma antiquíssima fortaleza de um possícel castro “luso-romano” (Almeida, 1948:46), mas até hoje não há registo de qualquer vestígio de povoamento no local.

Esta hipótese não é inteiramente nova, tendo sido sugerida inicialmente pelo Tenente-Coronel Costa Veiga em 1943, ao contestar a sua identificação com Branca, proposta por Félix Pereira. Com efeito, com base nas distâncias medidas no terreno, este investigador propôs a localização de Talábriga no Monte da Ns. do Socorro dada a concordância das distâncias (Veiga, 1943). No entanto, o Padre Miguel de Oliveira publicava no mesmo ano uma súmula destas hipóteses, avidando prudentemente que o problema da localização de Talábriga permanecia tal como Félix Pereira o tinha deixado, isto é, por resolver (Oliveira, 1943: 61-62).

Entretanto, uma segunda hipótese foi lançada por Amorim Girão no início do século XX, a sua identificação com as ruínas que emergiam no chamado Cabeço do Vouga (Girão, 1922) , proposta entretanto reforçada pelos sucessivos achados arqueológicos no topo deste outeiro sobranceiro ao local de travessia do Vouga, levando autores posteriores, como Jorge de Alarcão e Seabra Lopes, a subscreverem esta proposta (Alarcão, 1988; Lopes, 1995, 2000), apesar do evidente desacerto com a informação do Itinerário (Mantas, 2018: 44).

Apesar do seu relativo esquecimento, a hipótese de identificação de Talabriga com o povoado fortificado da Ns. do Socorro, tem vindo a ser recuperada (Mantas, 2014: 247) atendendo à concordância com a distância indicada de 40 milhas a Coimbra. Apesar da notícia de achados arqueológicos no local (que foram enquadrados no Bronze Final), pouco sabemos sobre a ocupação deste povoado dado que este foi totalmente arrasado com a construção do actual santuário.

Seguindo esta hipótese, foi criado um percurso alterativo à “Estrada Real” (que passa no vale, junto a Branca e Albergaria-a-Nova), o verdadeiro percurso da via poderia ser pelo alto da serra, em altitude, tocando nos referidos povoados proto-históricos e que está representado no mapa abaixo (linha azul).

Fig. 2 – Nova proposta de traçado da via entre Albergaria-a-Velha e Oliveira de Azeméis seguindo junto dos povoados castrejos de Ns. do Socorro, São Julião e Lações.

Esta proposta de trajecto apresenta pouca variação de cota e acerta a marcação miliária com os referidos povoados, com Ns. do Socorro na milha 6, São Julião na milha 10 e Lações a 17 milhas do Vouga, outro povoado fortificado que daria origem a Oliveira de Azeméis e que foi destruído com a construção do Santuário de Ns. de La Salete.

A etapa seguinte ligava Talábriga a Langóbriga que tem sido identificada com o Castro do Monte Redondo em Fiães com base no vasto espólio recolhido no local (Corrêa, 1925; Almeida e Santos, 1971). De facto, a sua posição é compatível com as 13 milhas indicadas a Cale. No entanto, as 18 milhas indicadas são claramente insuficientes para cumprir a distância entre Monte Redondo e o Castro da Ns. Socorro, percurso que ronda as 23 milhas. Poderá tratar-se de um erro do copista medieval pois não seria difícil haver confundir os numerais “XXIII” e “XVIII”, bastando a troca do segundo “X” por um “V”, explicando deste modo, o diferencial de 5 milhas encontrado no trajecto até Cale.

Corrigindo este valor obtemos acerto da marcação miliária, isto é, somando as distâncias intermédias entre o Vouga e o Douro (6 + 23 + 13) obtemos um total de 42 milhas que é a distância que separa os dois rios. Esta divisão pouco usual entre etapas resulta do posicionamento dos povoados indígenas ao longo da via. No entanto, verifica-se que as estações romanas viriam a instalar-se num módulo mais regular de 4 milhas (1 légua) com
Albergaria-a-Velha (a 4 milhas do Vouga), a Albergaria de Souto Redondo (a 16 milhas de Cale), com outra estação a meio percurso, ou seja, a oito milhas do rio Douro, em Vendas de Grijó, nó viário de onde partia a via para Viseu, situado na base do maior povoado desta região, o Castro do Monte Murado (Carvalhos).

Assim o Itinerário corrigido seria o seguinte:
AEMINIUM X
TALABRIGA XL
LANGOBRIGA XXIII
CALEM XIII

Naturalmente de que não dispomos de provas conclusivas, nomeadamente de ordem epigráfica, que possam fechar a discussão, mas a concordância com as distâncias medidas no terreno pelo percurso proposto constitui um forte argumento para a sua validação. Os dados arqueológicos conhecidos também parecem apontar para esta hipótese com a via a passar junto dos principais povoados castrejos, denunciando mais uma vez a origem pré-romana destas rotas.

Por último, admitindo que Talabriga corresponde ao assentamento da Ns. do Socorro, então o Cabeço do Vouga teria outra designação, o que obriga a reconsiderar a antiga hipótese lançada por Brito de que ali se encontrava o antigo Oppidum Vacca (Brito, 1597). De facto, Plínio refere o flumen Vacca (NH, IV, 113) , mas segundo Gaspar Barreiros, num manuscrito de Toledo podia ler-se oppidum et flumen Vacca, do mesmo modo que no mesmo trecho Plínio menciona o oppidum et flumen Aeminium (Barreiros, 1561).

A existir o povoado de Vacca (Vacua em Estrabão; Geo. I, 3, 4), este poderia corresponder ao Cabeço do Vouga, explicando o miliário que Brito refere junto do Castro de S. Julião (S. Gião no original), indicando 12 milhas a «VAC», abreviatura que desdobrou em VACCA ou VACUA. Em suporte à veracidade desta notícia, notar que tanto o miliário da Vimieira (Mealhada) como de Úl (Oliveira de Azeméis) indicam 12 milhas, um valor típico entre estações viárias.

Neste nova proposta de traçado, o miliário em Úl fica algo afastado da via. No entanto, este miliário poderia ter um carácter mais territorial, definindo o limite sul da Civitas Langobrigensis, aliás, em concordância com o terminus augustalis, actualmente encastrado na parede traseira da Igreja Paroquial de Úl, indicando a distância de doze milhas a Langobriga (Castro de Fiães).

Como é visível pelos argumentos enunciados acima, estamos ainda longe de resolver o problema de localização de Talabriga. A ausência de provas epigráficas torna o Itinerário a única fonte primária para a localização destas estações apesar de eventuais erros e omissões. O que não podemos é pura e simplesmente descartar a informação nele contida quando esta não se adequa a uma outra proposta de localização.

O sexto e último artigo desta série abordará a travessia do Douro e as vias que daqui partiam de Cale

Bibliografia:
ALARCÃO, Jorge de (1988) – “Roman Portugal”. Warminster: Aris & Phillips, 3 Vols.
ALMEIDA, C.A.F.; SANTOS, E. (1971) – “O Castro de Fiães”. Revista da Faculdade de Letras. Série de História. II., 147-168.
ALMEIDA, Fernando de (1956) – “Marcos miliários da via romana «Aeminium-Cale»”. OAP, 2ª Série, Vol. III, 111-116.
ALMEIDA, João de (1948). Roteiro dos Monumentos Militares Portugueses. Lisboa
BARREIROS, Gaspar (1561) – “Chorographia de alguns lugares que stam em hum caminho que fez Gaspar Barreiros”. Coimbra: João Aluarez.
BRITO, Bernardo de (1597) – “Monarchia Lusytana”. Lisboa: Mosteiro de São Bernardo. Vol. I.
CORRÊA, A. A. Mendes (1925) – “Nótulas Arqueológicas. Estação luso-romana em Fiães”. Revista de Estudos Históricos.
GIRÃO, Amorim (1922) – “A Bacia do Vouga. Estudo Geográfico”. Diss. de Doutoramento em Geografia.
LOPES, Luís Seabra (1995) – “Talábriga – Situação e limites aproximados”. In Portugália, Vol. XVI, Instituto de Arqueologia, Porto, 331-343.
LOPES, Luís Seabra (2000) – “A Estrada Emínio-Talabriga-Cale”. In «Conimbriga», 39, 191-258.
MANTAS, Vasco G. (2014) – “As estações viárias lusitanas nas fontes itinerárias da antiguidade”. In Humanitas 66, 231-256.
MANTAS, Vasco G. (2018) – “As cidades romanas de Portugal: problemática histórica e arqueológica”. In “As cidades romanas de Portugal. problemática histórica e arqueológica” Imprensa da Universidade de Coimbra, 23-51.
OLIVEIRA, Pa. Miguel de (1943) – “De Talabriga a Lancobriga pela Via Militar Romana”. Arquivo do Distrito de Aveiro, Vol. IX.
PEREIRA, Félix A. (1907) – “Situação Conjectural de Talabriga”. OAP Vol. XII, 129-158.
SOUTO, A. (1941) – “Romanização no Baixo-Vouga (Novo Oppidum na Zona de Talábriga)”. Trabalhos de Antropologia e Etnologia, vol. 9 (1939), 4, 283-328.
VAZ, J. L. da Inês (1983) – “Escavações no Cristelo da Branca”, Munda 5: 32-38.
VEIGA, A. B. da Costa (1943) – “Algumas estradas romanas e medievais”. Estudos de História Militar Portuguesa. Vol. I. Lisboa: Imp. Tip. Torres

The ancient bridge over the Vouga river

(Originally published on December 5, 2011)

The fall of the Vouga Bridge on November 12 2011 was not a surprise due to the advanced state of degradation of the bridge’s pillars. What is surprising is the willingness of the municipality to demolish the bridge (!), a decision that I hope will be overturned because this bridge has a great patrimonial value that cannot be obliterated. The current bridge is the result of successive repairs, the last one was its enlargement in the 1930s to adapt it to modern traffic. We know that its construction was ordered by D. João III in 1529 and that it was repaired in 1713 by order of D. João V given to the bridge its current configuration. In fact the current bridge was built on the structure of an earlier medieval bridge from which the pillars and arches are still visible, as can be seen in the picture above. Coordinates: 40.640735,-8.465931

The existence here of an early Roman construction is plausible because this was the crossing point of the main road connecting Bracara Augusta (Braga) to Olisipo (Lisbon). In fact, on a hilltop overlooking this passage there’s an important archaeological site known as «Cabeço do Vouga» where we can see a strong Roman construction built over a pre-Roman settlement. This could be the location of Talabriga, a road station mentioned in Anthony’s Itinerary. Coordinates: 40.637037, -8.463959