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Transformações na orla costeira II – Costa Algarvia

As transformações do sistema portuário desde a antiguidade até à atualidade são particularmente evidentes na costa algarvia, onde muitos dos portos da antiguidade estão hoje completamente inutilizados. À partida, poderíamos pensar que estas alterações se devem a um lento e progressivo assoreamento das desembocaduras dos rios, num processo similar à costa ocidental, no entanto, há fortes sinais de que estas grandes alterações geomorfológicas da costa algarvia podem antes resultar de eventos sísmicos como foi o caso do famoso Terramoto de Lisboa de 1755.

A hipótese de algumas das alterações da costa terem ocorrido de forma repentina em resultado de eventos sísmicos que periodicamente afectam a região é reforçada pelas “cicatrizes” deixadas na paisagem de toda a orla costeira algarvia. Os impactos do terramoto e consequente maremoto de 1755 na costa algarvia foram bem documentados na época, mostrando consequências catastróficas para  pessoas, edifícios e estruturas portuárias (Hindson et al., 1996; Chester, 2010). 

No entanto, este evento mais recente está longe de ser um caso isolado, dado que há fortes indícios da ocorrência de eventos de grande energia muito similares ao de 1755, havendo indicadores arqueológicos e geofísicos que apontam para uma sucessão de três grandes eventos, um século III a.C. (Gómez et al., 2015: 68), outro no século I e ainda outro no século III d.C. (Roth et al., 2015). O impacto destes sucessivos tsunami terão afectado  importantes portos da antiguidade, outrora florescentes, como seja Baesuris, Balsa e Ossonoba (respectivamente Castro Marim, Tavira e Faro). A perda da função portuária parece estar na origem também do abandono dos portos de Vila Velha de Alvor, Vilamoura e Cacela Velha.

O caso da foz do rio Gilão, é particularmente interessante porque, ao contrário de Faro, Tavira  apresenta uma descontinuidade de ocupação que parece alinhar com este fenómenos naturais. Com efeito, a cidade assenta sobre uma povoação proto-histórico que recua até ao período Fenício, mas surpreendentemente o povoado é abandonado por volta do século III a.C, portanto, ainda antes da ocupação romana, facto que pode estar relacionado com o grande evento sísmico ocorrido em 218-209 a.C (Gómez et al., 2015: 68). 

Fig. 1 – O povoado pré-romano de Tavira e a cidade romana de Balsa na actualidade.

Os sinais de presença romana apontam para a ocupação do “Cerro do Cavaco”, um alto a montante do rio, durante o período Republicano. No entanto, por volta do século I, a administração romana decide construir uma uma nova cidade portuária, a cerca de quatro milhas a oeste de Tavira, a cidade de Balsa (Fabião, 1992-93: 233-234; Mantas, 2003: 85-94). No entanto, também esta viria a ser abandonada pelos finais do século III d.C., mais uma vez com paralelo temporal com o tsunami responsável pela destruição da cidade costeira de Baelo Claudia (localiza a cerca de 22 km oeste de Tarifa), dado que todas as colunas da cidade jaziam deitadas na mesma direcção, sinal que tinham sido derrubadas por acção de uma grandes onda (Silva et alli, 2005). 

O mesmo acontece no rio Guadiana, cuja geomorfologia na antiguidade era muito diferente da atual com base numa descrição detalhada em “Ora Marítima”, obra escrita pelo poeta latino Rúfio Avieno no século IV d.C., apesar da viagem nela relatada referir fatos ocorridos no século VI a.C. 

Ana amnis illic per Cynetas effluit sulcatque glaebam. panditur rursus sinus cavusque caespes in meridiem patet. memorato ab amni gemina sese flumina scindunt repente perque praedicti sinus crassum liquorem (quippe pinguescit luto omne hic profundum) lenta trudunt agmina. hic insularum semet alte subrigit vertex duarum. nominis minor indiga est, aliam vocavit mos tenax Agonida.
(Avieno, “Ora Marítima”, versos 201-211)

Segundo o texto de Avieno, o rio Ana dividia-se de repente em dois braços navegáveis antes de desaguar no mar, correndo para o mar em suas águas espessas (“flumina scindunt repente perque praedicti sinus crassum liquorem“), especificando que de facto em toda a sua profundidade era aqui carregada de lodo (quippe pinguescit luto omne hic profundum) onde há duas ilhas (“hic insularum semet alte subrigit“), possivelmente as atuais Isla Canela e Isla del Moral (fig. 1)

Fig. 2 – A orla costeira do tempo (A) romano e (B) na actualidade; Coastal Engineering, 1992 “The Punta Úmbria (Huelva) spit”, António Lechuga e José María Villaverde) https://icce-ojs-tamu.tdl.org/icce/index.php/icce/article/download/4849/4530

A foz do Guadiana era um local estratégico para a rota marítima do Mediterrâneo pois o rio é   navegável daqui até Mértola,  importante porto fluvial da antiguidade  (antiga Myrtilis) situado a 60 Km para interior, posição que oferecia excelentes condições para escoamento de produtos do hinterland alentejano. O acesso a partir do mar era dominado pelo povoado proto-histórico de Castro Marim, local onde apareceram muitos materiais de importação, sinal de uma pujante atividade comercial. Os materiais mais antigos foram datados do século V a.C. (Arruda, 1996: 97), no entanto, o registo arqueológico aponta para o abandono do povoado por volta do século III a.C., sendo novamente ocupado muito mais tarde, já em período romano Republicano (Arruda, 1984; 2002). 

Posteriormente, durante o Alto-Império há sinais de uma renovada atividade, dado o aparecimento de grande quantidade de terra sigillata desse período, após o qual se assiste a novo declínio (Viegas, 2011: 437). Com efeito, os materiais de importação cessam por completo pelos finais do século I, inícios do II d.C., sinal do acentuado declínio da atividade comercial (Fabião, 1992-93: 233; Viegas, 2006: 415; 2011: 518), eventualmente substituído pelo fundeadouro romano da Punta del Moral  (Encinas e Teyssandier, 2013).

Fig. 3 – Reconstituição paleogeográfica do estuário do Guadiana, mostrando a amarelo as áreas arenosas entretanto formadas e a vermelho os pontos de povoamento romano. Poster del “El Fondeadero Romano de Punta del Moral”, B. Cabaco Encinas y E. García Teyssandier; ArqueoGuadiana, 2012). https://www.academia.edu/19483918

O local só volta a ser ocupado já na Idade Média. Actualmente todo o cerro onde assenta o castelo (e o antigo povoado pré-romano) está rodeado de terra firme e zonas de sapal, mas no século XVI as águas ainda chegavam perto das muralhas do castelo, havendo referência à acostagem de “naus de 100 toneladas a tomar o sal que ali há” apesar das crescentes dificuldades de navegação nos esteiros (Garcia, 1996: 68).

Esta descontinuidade de ocupação de Castro Marim poderá assim também estar relacionada com estes fenómenos naturais, promovendo as grandes alterações geomorfológicas registadas no estuário do Guadiana, o que permite estabelecer uma relação causal (ver Quadro 1) entre estes dados arqueológicos e geofísicos (Gómez et al., 2015: 67).


Evento
Castro Marim Tavira
III a.CAbandono do povoado pré-romanoAbandono do povoado pré-romano
I d.CAbandono e estabelecimento do fundeadouro romano na Punta del Moral  Abandono e fundação da cidade romana de Balsa
III d.C.Castro Marim permanece deserto; abandono da Punta del MoralAbandono de Balsa e do seu porto de mar
1755Devastação do povoado medieval; sedimentação da orla costeira; abandono de Cacela Velha e fundação de Vila Real de Santo AntónioDevastação do povoado medieval; sedimentação da orla costeira

Quadro 1 – Tabela comparativa entre eventos sísmicos e históricos em Tavira e Castro Marim.

À medida que avançamos para nascente, já no território espanhol, este padrão repete-se nos restantes portos desta faixa costeira virada a sudoeste e portanto sujeita também aos impactos dos referidos fenómenos.  Por exemplo, na foz do rio Odiel, a cidade de Huelva foi muito afetada pelo terramoto de 1755, contando-se na época mais de 1000 mortos e inúmeros edifícios destruídos (Lima et al., 2010; 146). Na antiguidade esta povoação era designada por Onuba e constituía um porto importante desta rota marítima, mas que terá perdido a sua relevância à medida que o canal de acesso ao mar se ia estreitando, conforme é representado na reconstituição paleográfica da Fig. 2.

O mesmo acontece na foz do Guadalquivir que na antiguidade formava uma vasto estuário navegável que permitia o acesso aos portos abrigados e â via fluvial pelo Guadalquivir acima até Sevilha (antiga Hispalis), importante porto comercial da antiguidade que ainda no século XVI constituía a principal base de apoio às explorações marítimas espanholas. Atualmente este  estuário apresenta-se totalmente assoreado e o acesso a Sevilha é apenas possível com pequenas embarcações (Fig. 4).

Fig. 4 – Os portos de Onuba e Hispalis – a vermelho as vias antigas contornando o vasto paleo-estuário do Guadalquivir e a azul a via fluvial até Sevilha.
Fig. 5 – Pormenor das formações arenosas do Parque Doñana evidenciam o impacto de grandes ondas.

Em imagens de satélite desta parte da orla costeira (2022) é facilmente observável as grandes dimensões do paleo-estuário, hoje totalmente assoreado e que constitui em grande parte a área protegida do actual Parque Nacional de Doñana  (Ruiz et al., 2010), apresentando ainda sinais bem vincados do impacto de uma grande onda (ver fig. 5).

Síntese:
As transformações sofridas pela orla costeira portuguesa nos últimos dois milénios têm alterado dinâmicas portuárias, forçado as populações a abandonar povoados costeiros, procurando novos locais de ancoragem. Surpreende que algumas destas transformações surgem de forma muito repentina e bem vincada num determinado período temporal o que permite estabelecer uma relação entre esses eventos e acontecimentos históricos comprovados pela arqueologia, coincidência temporal que permite estabelecer uma relação causa-efeito entre estes dados.

Bibliografia:
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Transformações na orla costeira I – Costa Ocidental

Durante o estudo da viação romana chocamos com o facto de a linha de costa em
período romano ser muito diferente da actualidade. Com efeito, a conjugação dos dados históricos com a investigação geofísica mostra que a linha de costa era bem mais recortada do que na atualidade, formando grandes estuários que permitiam a navegação costa adentro até portos abrigados no interior. O progressivo assoreamento dos estuários, em particular a partir da Idade Média, acabou por inutilizar algumas destas rotas marítimas, resultando em grandes mudanças quer do sistema portuário quer das vias terrestres às quais estavam ligados.

As estruturas portuárias da antiguidade estavam articuladas com uma rede viária que permitia a circulação das mercadorias de e para o hinterland. O principal eixo viário interliga os dois maiores portos em território português, respectivamente a foz do rio Douro no Porto com a foz do rio Tejo em Lisboa. O percurso da estrada é sensivelmente paralelo à linha de costa, mas relativamente afastada desta. Este trajecto mais interior esconde, no entanto, a vocação portuária desta estrada, criando uma “rede simultaneamente marítima e terrestre que permitia o abastecimento do hinterland a partir de portos praticáveis no remanso de águas fluviais, ou estuarinas, cujas bacias estavam ainda livres dos grandes assoreamentos medievais e pós-medievais” (Blot, 200, 143).

Esta estrada cruzava o rio Douro junto do importante entreposto comercial de Cale cuja actividade portuária se estendeu até ao século XVIII apesar das crescentes dificuldades criadas pelo assoreamento da barra do Douro face aos novos desafios de navegação à época, com navios maiores e maior intensidade de tráfego, limitando o alcance da ação económica da própria cidade do Porto, levando à construção de uma nova estrutura portuária na foz do rio Leça, o Porto de de Leixões (Alves e Dias, 2001: 94), estrutura apenas concluída já no século XX.

Depois de cruzar o rio, a estrada seguia por Santo Ovídeo, Canelas, Carvalhos, Fiães, São João da Madeira, Oliveira de Azeméis e Albergaria-a-Velha, de modo a evitar a vasta zona lagunar formada pela Ria de Aveiro que se estende entre Esmoriz e Vagos. No entanto, o cruzamento do rio Vouga fazia-se (tal como a antiga EN1) entre Serém e Lamas, na base do importante povoado romanizado do Cabeço do Vouga, local hoje muito afastado da costa (Fig. 1), mas que teria acesso ao mar através do rio Vouga, nomeadamente ligando ao seu porto de mar, localizado com toda a probabilidade na Torre da Marinha Baixa (Cacia), onde há forte evidências de actividade comercial portuária durante o período romano (Sarrazola, 2003: 160).

Fig. 1 – A foz do Vouga na actualidade e localização do porto romano da Marinha Baixa (Cacia)

Continuando o percurso, a estrada cruzando o vale da Mealhada rumo à travessia do rio Mondego junto a Coimbra, a antiga Aeminium,. Em ambas as margens do curso terminal deste rio há evidências de ancoradouros, nomeadamente uma possível feitoria fenícia junto do povoado de Santa Olaia, dominando visualmente o paleo-estuário do Mondego (Alarcão, 2004: 13-14). Aqui apareceu também um barco naufragado cujo espólio está em exposição na Sala de Arqueologia do Museu Municipal Santos Rocha na Figueira da Foz.

Fig. 2 – Povoamento e rede viária romana no curso terminal do Mondego.

Na margem esquerda há também vestígios de povoamento romano em Taveiro e Ameal, cuja proximidade ao rio, permite também estabelecer uma relação com a actividade fluvial. O mesmo poderá acontecer no caso de Soure, que apesar de integrar a via terrestre que ligava Conimbriga a Collipo (c. Leiria), poderia também funcionar como cais fluvial dado o seu posicionamento na confluência no Mondego dos rios Arunca e Anços, apesar da ausência de vestígios concludentes.

A estrada seguia até Leiria onde cruzava o rio Lis, na base do castelo medieval. O rio deveria permitir a ligação ao porto do período medieval localizado na foz deste rio (Blot, 2003: 145). O porto marítimo durante o período romano deveria localizar-se em Paredes, actualmente ocupado pelas grandes formações arenosas que formam o grande Pinhal de Leiria. Mais uma vez a posição aparentemente interior de Leiria encobre a vocação marítima desta estrada. De Leiria, a estrada seguia até Alcobaça, e daqui ascendia ao Castro de Parreitas, grande povoado romanizado com domínio visual sobre a paleo-lagoa da Pederneira (Valado de Frades).

Fig. 3 – Reconstituição dos limites aproximados da paleo-lagoa da Pederneira (linha branca), com o castro romanizado de Parreitas e passagem da via para Lisboa contornando este obstáculo natural.

No período romano este braço de mar era navegável, entrando bem para o interior, sendo possível estimar a antiga linha de costa pelos sítios romanos de Pederneira, Póvoa, Cós, Maiorga, Fervença, Parreitas, Cela Velha e Famalicão, rodeando a paleo-lagoa (Blot, 2003: 212-213).

Fig. 4 – Povoamento antigo em torno da paleo-lagoa da Pederneira (in Alarcão, 2008, fig. 3)

A via continuava até Alfeizerão (miliário de Adriano), onde temos novamente vestígios de um possível vicus portuário no sítio das Ramalheiras, sobranceiro à paleo-baía de São Martinho do Porto (Blot, 2003, 217-218) . Logo depois atingia Eburobrittium (actual Óbidos), cuja localização apenas foi confirmada em 2008 em resultado da construção da auto-estrada A8. De facto, no sopé da vila medieval, surgiram abundantes vestígios de um vicus portuário no limite da zona inundável da Lagoa de Óbidos que pela sua posição deverá corresponder à enigmática Eburobrittium referida por Plínio e no epitáfio de um duúnviro Eborobritiensis chamado Maximino, que apareceu na Igreja Paroquial de Ns. de Aboboriz em Amoreira de Óbidos (AE 1936, 106).

Aliás, o povoado romano terá crescido em torno da actividade comercial deste porto que apesar de estar bem para o interior tinha acesso facilitado à rota oceânica através deste braço de mar (Blot, 2003, 220-223). O progressivo assoreamento da lagoa durante a Idade Média e a consequente inutilização deste acesso terá ditado o seu posterior declínio, cristalizando no tempo a antiga povoação medieval no cimo do morro de Óbidos que hoje conhecemos. Daqui a estrada seguia até Lisboa, povoado que pela sua posição absolutamente estratégica na desembocadura do rio Tejo, oferecia um porto abrigado na base do morro onde hoje assenta o Castelo de São Jorge.

Em síntese, estas estradas tocavam em pontos-chave de acesso aos principais portos marítimos permitindo a formação de uma rede de rotas comerciais na antiguidade. Este modelo repete-se a sul do Tejo, com as ligações viárias aos importantes portos do estuário do Sado, Caetobriga (Setúbal) e Salacia (Alcácer do Sal) (Mantas. 2010: 205) . Enquanto o primeiro está localizado na foz do rio Sado (tendo defronte a importante fábrica de salga de peixe da então ilha de Troia), o segundo encontra-se bem mais para o interior (a cerca de 30 km), aproveitando a navegabilidade do rio Sado até Alcácer do Sal (Blot, 2003, 259-269).

A antiga Salacia manteve o seu carácter de urbe portuária até à Idade Média, mas o posterior declínio desta rota fluvial poderá estar relacionada com a diminuição das condições de navegabilidade do rio como se verifica atualmente. A povoação mantém no entanto o importante papel de nó viário até à atualidade (e.g. local de passagem da auto-estrada para o Algarve), constituindo uma das principais portas de acesso às regiões do Alentejo e Algarve. De facto, do porto de Salacia partiam três importantes eixos viários, um ligando ao porto de Lisboa, outro ao porto de Mértola (via Beja), outro para Mérida (capital da Lusitânia, via Évora) e, finalmente, a rota para sul rumo ao Algarve.

Fig. 5 – Portos e rede viária no estuário do rio Sado

Destaque para a estrada para o Algarve que servia também os ancoradouros ao longo da costa alentejana. O trajecto desta via antiga partia de Alcácer do Sal em direcção a Alvalade, Garvão e Castro da Cola, rumo a Faro. No nó viário de Alvalade, a via cruzava uma outra via que corria transversal a esta e que ligava o porto marítimo de Sines ao porto fluvial de Mértola, estrada que passa na cidade romana de Mirobriga (c. Santiago de Cacém). O achado de âncoras romanas e outros vestígios na área de Sines atestam uma importante actividade deste porto comercial em período romano (Blot, 2003, 269-272), explicando a grande prosperidade atingida pela urbe romana ainda hoje visível através das suas estruturas monumentais ainda subsistentes.

Além do eixo principal para o Algarve rumo a Faro, parece existir uma variante desta estrada correndo mais próximo do litoral passando por Miróbriga rumo ao Cabo de São Vicente no barlavento algarvio. O trajecto inicial entre Alcácer do Sal e Grândola poderia ser por via fluvial, dado que a área é ainda hoje ocupada por vastas formações arenosas sem qualquer vestígio de povoamento romano. No centro de Grândola existem importantes vestígios de um grande estabelecimento romano que poderia servir esta rota. Ao longo do seu percurso, a via passava próximo dos diversos fundeadouros dispostos ao longo da Costa Alentejana, nomeadamente em Vila Nova de Mil Fontes, Sines, Porto Covo e Ilha do Pessegueiro, tocando depois nos portos fluviais de Odemira, Odeceixe e Aljezur até atingir a costa virada a sul.

As principais rotas comerciais na costa ocidental portuguesa eram suportadas numa eficaz articulação entre portos e rede viária. Alguns destes portos permanecem ainda hoje com grande vitalidade económica, como são os casos dos portos de Lisboa, Porto, Setúbal e Sines, no entanto, outros acabaram por perder a sua pujança económica em resultado destas sucessivas alterações da orla costeira que levaram à inutilização dos seus portos e consequente declínio económico.

Bibliografia:
ALARCÃO, J. de (2004) – “In territorio Colimbrie: lugares velhos (e alguns deles, deslembrados) do Mondego”. Trabalhos de Arqueologia. N° 38. Lisboa: IPA.
ALARCÃO , J. de (2008) – “Notas de arqueologia, epigrafia e toponímia V“. In RPA 11, 103-121.
ALVES, J.F.; DIAS, E.B. (2001) – “O fio de água : o Porto e as obras portuárias (Douro-Leixões)” Revista da FLUP, III Série, Vol. 2, 93-106.
BLOT, M. (2003) – “Os portos na origem dos centros urbanos”. Lisboa: IPA, Trabalhos de Arqueologia, 46.
MANTAS, V. G. (2010) – “Atlântico e Mediterrâneo nos portos romanos do Sado”. Coimbra: Revista Portuguesa de História, 41. 195-221
SARRAZOLA, A. (2003).- “Tentativa de enquadramento histórico dos contextos de abandono da Marinha Baixa/Torre (Cacia, Aveiro) – séc. V-VI”. Era Arqueologia 5: 150-163.

Parte 6 || Cale

Concluímos esta viagem pelo Itinerário XVI com algumas notas sobre a sua passagem por Cale, estação seguramente associada à travessia do rio Douro, apesar de permanecer a dúvida na sua exacta localização, oscilando entre os dois povoados proto-históricos que dominavam esta passagem, ou seja, o Morro da Pena Ventosa (Sé) e o Castelo de Gaia, dúvida que, no entanto, não afecta a contagem miliária que segundo o Itinerário era a seguinte:

Langobriga
Cale m.p. XIII
Bracara m.p. XXXV

Como referido no artigo anterior, a distância de 13 milhas de Langobriga a Cale é coerente com o percurso entre Vendas Novas (Fiães/Castro Redondo) e o Douro, seguindo paralela ou coincidente com a EN1, que em muitas troços ainda é designada por “Rua da Via Romana”. O trajecto fazia-se (e faz-se) por Vergada, Picoto, Vendas de Grijó (8 m.p.), Carvalhos (6 m.p.), Canelas (4 m.p.), Santo Ovídio (2 m.p.), Jardim de Soares dos Reis (1 m.p.) e finalmente, descendo talvez pela Rua Direita, atingia o cais de Gaia.

Fig. 1 – Via Langobriga – Cale com estação a 8 milhas do Douro

Depois de cruzar o rio, a via dirigia-se para Bracara, seguindo aproximadamente a rota da EN14, percorrendo cerca de 35 milhas, tal como indicado no Itinerário, trajecto já analisado em artigo anterior. A parte inicial do percurso continua em utilização como ruas da cidade. Partindo da Porta do Olival, junto do Jardim da Cordoaria, seguia pela lateral do edifício da Universidade do Porto, antiga «Calçada dos Órfans» e actual Rua Dr. Ferreira da Silva, cortava a Praça dos Leões em direcção ao Largo do Moinho de Vento, continuava pela Rua Mártires da Liberdade até à Praça da República e daqui pela Rua Antero de Quental rumo à travessia do rio Leça na Ponte da Pedra (São Mamede de Infesta). Daqui seguia para a travessia do rio Ave na Trofa, passando em Pinta (Maia) e Forca (8 m.p.), percurso recentemente (re)confirmado pelo descoberta de um miliário numa casa do lugar da Barca, indicando precisamente 27 milhas a Braga, ou seja, oito milhas a Cale.

Fig. 2 – Rede viária a norte do rio Douro com pontos focais Cale e Bracara Augusta.

Do mesmo modo, os trajectos das outras vias que partiam de Cale continuam em utilização pelos séculos seguintes, sendo progressivamente absorvidos pela expansão urbana da cidade. Apesar de estas vias não serem mencionados nos Itinerários de Antonino e da ausência de miliários, não há qualquer dúvida sobre a sua utilização já nesse período (e mesmo em períodos anteriores), formando a rede principal de estradas que partiam de Cale.

Uma destas vias é designada na documentação medieval por «karraria vetera», «via publica» e «estrada mourisca» em diferentes pontos do seu percurso e que hoje está assinalado como «Caminho de Santiago». Partindo do mesmo local da estrada para Braga, Campo do Olival, seguia pela Rua de Cedofeita (antiga «Cacarreira») até ao Padrão da Légua (4 m.p.), e daqui à Ponte Romana de Barreiros sobre o Leça (Maia).

Daqui poderia ligar por uma ramal ao nó viário da Forca (8 m.p.) na via para Bracara (onde apareceu miliário), mas é provável que a «karraria» seguisse para noroeste por Vilar do Pinheiro e pela base do Castro de Boi (15 m.p.), rumo à travessia do rio Ave junto do Castro de Santagões.

Daqui seguia para a Igreja de São Pedro de Rates (23 m.p.), provável estação viária onde a via bifurcava em dois trajectos, um seguindo para noroeste rumo à travessia do rio Cávado na Barca do Lago (ligando a Viana do Castelo), e outro seguia para nordeste rumo à travessia do mesmo rio em Barcelos (o chamado «Caminho de Santiago Central»), continuando depois até Ponte de Lima. (ver https://viasromanas.pt/#porto_barcelos).

Admite-se uma variante a este trajecto mais próxima do litoral, desviando da «karraria vetera» no Padrão da Légua, seguindo na direcção do Castro de São João em Vila do Conde, local de cruzamento do rio Ave. Daqui seguia próximo dos castros de Terroso e Laúndos rumo à travessia do rio Cávado na Barca do Lago, reunindo com a «karraria» cerca de três milhas antes de atingir esta passagem. (ver viasromanas.pt/#porto_caminha).

As restantes vias seguiam na direcção nordeste. A primeira delas partia de Cale rumo a Guimarães, seguindo junto do Castro de Águas Santas (6 m.p.), Castro do Monte Padrão (18 m.p.), Citânia de Sanfins (22 m.p.) e Castro da Polvoreira/ Santo Amaro (30 m.p.). (ver viasromanas.pt/#via_vimaranes).

A segunda via para nordeste, ligava Cale a Tongóbriga, seguindo próximo do Castro de Vandoma (15 m.p.) e do Castro de Quires (26 m.p.), de onde descia à travessia do rio Tâmega, a trinta milhas de Cale. Daqui ascendia por Marco de Canaveses à cidade romana de Tongóbriga, da qual subsistem importantes vestígios, mas como vimos ao longo do Itinerário XVI, assenta ela própria sobre um antigo povoado da Idade do Ferro do qual teria herdado o nome.

A parte inicial do trajecto desta via subsiste ainda hoje, partindo da antiga Porta de Vandoma e seguindo pela Rua Cimo de Vila, percursos que mantém a tipologia antiga, ascendendo a ladeira por patamares suaves até à actual Praça da Batalha. Daqui seguia por St. Ildefonso, Bonfim (1 m.p.), Corujeira/ Campanhã (2 m.p.), São Roque da Lameira (3 m.p.), continuando pelos topónimos viários, Cavada, Ferraria, Carreira e Vale de Ferreiro até Valongo, provável estação viária a oito milhas de Cale, relacionada com a exploração mineira identificada nas proximidades. (ver viasromanas.pt/#porto_freixo)

Notar que esta distância de oito milhas à primeira estação já tinha sido identificada nas outras vias que partiam de Cale, nomeadamente em Vendas de Grijó e Barca, sugerindo que o seu estabelecimento não foi arbitrário. Notar também a grande resiliência destes trajectos apesar das enormes transformações sofridas pela cidade nos últimos séculos.

Fig. 3 – Vias antigas na actual área urbana da cidade do Porto.

Na ausência de factores externos como terramotos ou grandes planos urbanísticos (felizmente) as principais vias que partiam da cidade do Porto acabaram por permanecer em utilização até aos nossos dias. Seria interessante um dia fazer um roteiro destas vias pela cidade.

Com este artigo sobre Cale termina esta série de seis artigos sobre o itinerário de Olisipo a Bracara ou Itinerário XVI. No próximo post será abordada a problemática das alterações da orla costeira e as suas implicações na rede viária antiga.

Parte 5 || Talábriga

Neste percurso pelo Itinerário XVI chegamos agora a uma das questões mais discutidas na historiografia nacional, a problemática localização de Talábriga. Pela sequência de estações não há qualquer dúvida que esta se deveria localizar nas proximidades do Rio Vouga que constitui o maior obstáculo entre Aeminium e Cale. No entanto, o seu exacto posicionamento é alvo de grande controvérsia entre investigadores.

Segundo o Itinerário XVI, teríamos:
Aeminium m.p. X
Talabriga m.p. XL
Langobriga m.p. XVIII
Cale m.p. XIII

Como é habitual, as primeiras tentativas de localização surgem no século XVI, tendo os iluministas portugueses proposto a sua identificação com Cacia (Barreiros, 1561) e Aveiro (Brito, 1597). A hipótese Cacia era baseada no achado de vestígios romanos na Torre da Marinha Baixa. No entanto, a passagem neste local é inviável dado que aqui era a antiga linha de costa em período romano, podendo corresponder a um vicus portuário. Aliás, toda a área de Aveiro estaria submersa, inviabilizando portanto a hipótese lançada por Brito.

A questão só é retomada no início do século XX, com diversos autores tentando compatibilizar as distâncias medidas no terreno com a informação contida no Itinerário. Entre eles, destaca-se Félix Alves Pereira que publica em 1907 um seminal artigo intitulado “Situação Conjectural de Talábriga”, onde alerta para a necessidade de posicionar Talábriga a norte do Vouga, dado que as 40 milhas indicadas são superiores à distância entre o Mondego e o Vouga (c. 34 milhas).

Com base na distância indicada a Langobriga (18 m.p.), equaciona a hipótese de Talabriga estar na área da povoação de Branca, apontando como possíveis localizações o Castro de São Julião e o vicus de Cristelo, hipótese seguida por autores posteriores (Souto, 1941; Vaz, 1983: 32-38).

Fig. 1 – Esboço do trajecto entre Coimbra e o Porto elaborado em 1941 por Alberto Souto

O problema desta proposta é que não acerta com o Itinerário dado que este local não está a 40 milhas de Aeminium. De facto a distância deste local ao Vouga é de cerca de 10 milhas perfazendo um total de 44 milhas a Aeminium (34+10) quando o Itinerário indica 40.

Admitindo que está distância está correcta (não havendo razões objectivas para duvidar deste valor), então Talabriga teria de estar 6 milhas a norte do Vouga, distância que permite associar esta estação ao povoado castrejo da Ns. do Socorro em Albergaria a Velha. Aliás, na Carta do Couto de Osseloa do ano 1117 (DMP DR 49) é referida a «strada que currit de Portugal in directo de Petra de Aquila», sendo que a generalidade dos autores identificam a “Pedra de Águia” com o actual Bico do Monte no Santuário da Ns. do Socorro (Ribeiro, 1810:243-246, Oliveira, 1943), sinal evidente que a via corria por ali. O Monte da Sra. do Socorro é mencionado em documentos medievais como «Albergarie veteris de Meigonfrio», topómimo com possível origem no termo latino mansio (Oliveira, 1943). João de Almeida refere a existência no local de uma antiquíssima fortaleza de um possícel castro “luso-romano” (Almeida, 1948:46), mas até hoje não há registo de qualquer vestígio de povoamento no local.

Esta hipótese não é inteiramente nova, tendo sido sugerida inicialmente pelo Tenente-Coronel Costa Veiga em 1943, ao contestar a sua identificação com Branca, proposta por Félix Pereira. Com efeito, com base nas distâncias medidas no terreno, este investigador propôs a localização de Talábriga no Monte da Ns. do Socorro dada a concordância das distâncias (Veiga, 1943). No entanto, o Padre Miguel de Oliveira publicava no mesmo ano uma súmula destas hipóteses, avidando prudentemente que o problema da localização de Talábriga permanecia tal como Félix Pereira o tinha deixado, isto é, por resolver (Oliveira, 1943: 61-62).

Entretanto, uma segunda hipótese foi lançada por Amorim Girão no início do século XX, a sua identificação com as ruínas que emergiam no chamado Cabeço do Vouga (Girão, 1922) , proposta entretanto reforçada pelos sucessivos achados arqueológicos no topo deste outeiro sobranceiro ao local de travessia do Vouga, levando autores posteriores, como Jorge de Alarcão e Seabra Lopes, a subscreverem esta proposta (Alarcão, 1988; Lopes, 1995, 2000), apesar do evidente desacerto com a informação do Itinerário (Mantas, 2018: 44).

Apesar do seu relativo esquecimento, a hipótese de identificação de Talabriga com o povoado fortificado da Ns. do Socorro, tem vindo a ser recuperada (Mantas, 2014: 247) atendendo à concordância com a distância indicada de 40 milhas a Coimbra. Apesar da notícia de achados arqueológicos no local (que foram enquadrados no Bronze Final), pouco sabemos sobre a ocupação deste povoado dado que este foi totalmente arrasado com a construção do actual santuário.

Seguindo esta hipótese, foi criado um percurso alterativo à “Estrada Real” (que passa no vale, junto a Branca e Albergaria-a-Nova), o verdadeiro percurso da via poderia ser pelo alto da serra, em altitude, tocando nos referidos povoados proto-históricos e que está representado no mapa abaixo (linha azul).

Fig. 2 – Nova proposta de traçado da via entre Albergaria-a-Velha e Oliveira de Azeméis seguindo junto dos povoados castrejos de Ns. do Socorro, São Julião e Lações.

Esta proposta de trajecto apresenta pouca variação de cota e acerta a marcação miliária com os referidos povoados, com Ns. do Socorro na milha 6, São Julião na milha 10 e Lações a 17 milhas do Vouga, outro povoado fortificado que daria origem a Oliveira de Azeméis e que foi destruído com a construção do Santuário de Ns. de La Salete.

A etapa seguinte ligava Talábriga a Langóbriga que tem sido identificada com o Castro do Monte Redondo em Fiães com base no vasto espólio recolhido no local (Corrêa, 1925; Almeida e Santos, 1971). De facto, a sua posição é compatível com as 13 milhas indicadas a Cale. No entanto, as 18 milhas indicadas são claramente insuficientes para cumprir a distância entre Monte Redondo e o Castro da Ns. Socorro, percurso que ronda as 23 milhas. Poderá tratar-se de um erro do copista medieval pois não seria difícil haver confundir os numerais “XXIII” e “XVIII”, bastando a troca do segundo “X” por um “V”, explicando deste modo, o diferencial de 5 milhas encontrado no trajecto até Cale.

Corrigindo este valor obtemos acerto da marcação miliária, isto é, somando as distâncias intermédias entre o Vouga e o Douro (6 + 23 + 13) obtemos um total de 42 milhas que é a distância que separa os dois rios. Esta divisão pouco usual entre etapas resulta do posicionamento dos povoados indígenas ao longo da via. No entanto, verifica-se que as estações romanas viriam a instalar-se num módulo mais regular de 4 milhas (1 légua) com
Albergaria-a-Velha (a 4 milhas do Vouga), a Albergaria de Souto Redondo (a 16 milhas de Cale), com outra estação a meio percurso, ou seja, a oito milhas do rio Douro, em Vendas de Grijó, nó viário de onde partia a via para Viseu, situado na base do maior povoado desta região, o Castro do Monte Murado (Carvalhos).

Assim o Itinerário corrigido seria o seguinte:
AEMINIUM X
TALABRIGA XL
LANGOBRIGA XXIII
CALEM XIII

Naturalmente de que não dispomos de provas conclusivas, nomeadamente de ordem epigráfica, que possam fechar a discussão, mas a concordância com as distâncias medidas no terreno pelo percurso proposto constitui um forte argumento para a sua validação. Os dados arqueológicos conhecidos também parecem apontar para esta hipótese com a via a passar junto dos principais povoados castrejos, denunciando mais uma vez a origem pré-romana destas rotas.

Por último, admitindo que Talabriga corresponde ao assentamento da Ns. do Socorro, então o Cabeço do Vouga teria outra designação, o que obriga a reconsiderar a antiga hipótese lançada por Brito de que ali se encontrava o antigo Oppidum Vacca (Brito, 1597). De facto, Plínio refere o flumen Vacca (NH, IV, 113) , mas segundo Gaspar Barreiros, num manuscrito de Toledo podia ler-se oppidum et flumen Vacca, do mesmo modo que no mesmo trecho Plínio menciona o oppidum et flumen Aeminium (Barreiros, 1561).

A existir o povoado de Vacca (Vacua em Estrabão; Geo. I, 3, 4), este poderia corresponder ao Cabeço do Vouga, explicando o miliário que Brito refere junto do Castro de S. Julião (S. Gião no original), indicando 12 milhas a «VAC», abreviatura que desdobrou em VACCA ou VACUA. Em suporte à veracidade desta notícia, notar que tanto o miliário da Vimieira (Mealhada) como de Úl (Oliveira de Azeméis) indicam 12 milhas, um valor típico entre estações viárias.

Neste nova proposta de traçado, o miliário em Úl fica algo afastado da via. No entanto, este miliário poderia ter um carácter mais territorial, definindo o limite sul da Civitas Langobrigensis, aliás, em concordância com o terminus augustalis, actualmente encastrado na parede traseira da Igreja Paroquial de Úl, indicando a distância de doze milhas a Langobriga (Castro de Fiães).

Como é visível pelos argumentos enunciados acima, estamos ainda longe de resolver o problema de localização de Talabriga. A ausência de provas epigráficas torna o Itinerário a única fonte primária para a localização destas estações apesar de eventuais erros e omissões. O que não podemos é pura e simplesmente descartar a informação nele contida quando esta não se adequa a uma outra proposta de localização.

O sexto e último artigo desta série abordará a travessia do Douro e as vias que daqui partiam de Cale

Bibliografia:
ALARCÃO, Jorge de (1988) – “Roman Portugal”. Warminster: Aris & Phillips, 3 Vols.
ALMEIDA, C.A.F.; SANTOS, E. (1971) – “O Castro de Fiães”. Revista da Faculdade de Letras. Série de História. II., 147-168.
ALMEIDA, Fernando de (1956) – “Marcos miliários da via romana «Aeminium-Cale»”. OAP, 2ª Série, Vol. III, 111-116.
ALMEIDA, João de (1948). Roteiro dos Monumentos Militares Portugueses. Lisboa
BARREIROS, Gaspar (1561) – “Chorographia de alguns lugares que stam em hum caminho que fez Gaspar Barreiros”. Coimbra: João Aluarez.
BRITO, Bernardo de (1597) – “Monarchia Lusytana”. Lisboa: Mosteiro de São Bernardo. Vol. I.
CORRÊA, A. A. Mendes (1925) – “Nótulas Arqueológicas. Estação luso-romana em Fiães”. Revista de Estudos Históricos.
GIRÃO, Amorim (1922) – “A Bacia do Vouga. Estudo Geográfico”. Diss. de Doutoramento em Geografia.
LOPES, Luís Seabra (1995) – “Talábriga – Situação e limites aproximados”. In Portugália, Vol. XVI, Instituto de Arqueologia, Porto, 331-343.
LOPES, Luís Seabra (2000) – “A Estrada Emínio-Talabriga-Cale”. In «Conimbriga», 39, 191-258.
MANTAS, Vasco G. (2014) – “As estações viárias lusitanas nas fontes itinerárias da antiguidade”. In Humanitas 66, 231-256.
MANTAS, Vasco G. (2018) – “As cidades romanas de Portugal: problemática histórica e arqueológica”. In “As cidades romanas de Portugal. problemática histórica e arqueológica” Imprensa da Universidade de Coimbra, 23-51.
OLIVEIRA, Pa. Miguel de (1943) – “De Talabriga a Lancobriga pela Via Militar Romana”. Arquivo do Distrito de Aveiro, Vol. IX.
PEREIRA, Félix A. (1907) – “Situação Conjectural de Talabriga”. OAP Vol. XII, 129-158.
SOUTO, A. (1941) – “Romanização no Baixo-Vouga (Novo Oppidum na Zona de Talábriga)”. Trabalhos de Antropologia e Etnologia, vol. 9 (1939), 4, 283-328.
VAZ, J. L. da Inês (1983) – “Escavações no Cristelo da Branca”, Munda 5: 32-38.
VEIGA, A. B. da Costa (1943) – “Algumas estradas romanas e medievais”. Estudos de História Militar Portuguesa. Vol. I. Lisboa: Imp. Tip. Torres

Parte 4 || Conímbriga

Continuando a descrição do Itinerário XVI, vamos agora analisar a sua passagem por Conimbriga, seguramente localizada nas ruínas romanas junto de Condeixa-a-Velha, subsistem ainda dúvidas sobre qual seria o trajecto da via. A indicação de 10 milhas a Aeminium, actual Coimbra, é também coerente com esta identificação.

Itinerário XVI
Seilium
Conimbriga m.p. XXXIIII
Aeminium m.p. X
Talabriga m.p. XL

A aproximação à cidade fazia-se sem dúvida pelo lugar de Tamazinhos, onde apareceu um miliário indicando oito milhas, valor compatível com a distância a Conímbriga, no entanto, subsistem dúvidas sobre o trajecto seguido até à cidade romana que, tal como as restantes estações deste itinerário, assenta sobre um povoado anterior pré-romano (Correia, 1993).

O primeiro traçado proposto seguia um trajecto directo à cidade, passando por Fonte Coberta e lugar do Poço. No entanto, este percurso era suspeito e avesso à normal tipologia da viação antiga dado que obriga a uma dupla travessia do Rio de Mouros.

Tentou-se assim uma alternativa que evitasse esse obstáculo, fazendo seguir a via mais a nascente, por Alcabideque, local onde subsiste o sistema romano de captação da água que alimentava a cidade por um aqueduto. Se por um lado, esta hipótese permitia um trajecto menos acidentado e mais directo Coimbra, por outro lado, não havia maneira de acertar a marcação miliária com as 10 milhas indicadas a Coimbra nem com as 8 milhas indicadas no miliário de Tamazinhos.

Fig. 1 – A vermelho as anteriores propostas e a azul o nova proposta de traçado da via cortando por Castelo/Ns. da Piedade (8 m.p), Ponte de Atadôa (9 m.p.) e Portela de Alfarda (10 m.p.).

Deste modo, procuramos uma alternativa que cumprisse com esses critérios. Depois de vários hipóteses, consideramos que o traçado mais provável seria aquele que vinha de Coimbra pela Venda do Cego, Eira Pedrinha e Ponte de Atadôa. Aliás, Gaspar Barreiros (com base num manuscrito de Acurcio) refere a existência de inscrições junto desta ponte, uma das quais mencionando um tal Valerius Avitus nascido em Conimbrica, o que permitiu associar este topónimo às ruínas junto a Condeixa-a-Velha (Barreiros, 1565: fl. 49-50; CIL II 391).

Fig. 2 – O nó viário de Conímbriga, cruzamento da Itinerário Olisipo-Bracara com o itinerário transversal de Collipo a Bobadela.

Ora, esta hipótese é reforçada pelo facto de Eira Pedrinha se encontrar a oito milhas de Coimbra, apontando para a existência de uma mutatio neste local. De facto, em torno da Capela da Sra. da Piedade apareceram vestígios romanos, nomeadamente tijolos de coluna e um pavimento de opus signinum. Por outro lado, no morro adjacente regista-se o topónimo “Castelo” que corresponde a um povoado do Bronze Final (Vilaça, 2012: 21). Apareceram também algumas pedras visigóticas, actualmente no Museu Machado de Castro, tendo uma delas sido reutilizada no arco cruzeiro (Gaspar, 1983: 189).

Continuando o percurso para sul, a nona milha era vencida junto da Capela de Atadôa, de onde partiria um ramal de acesso a Conímbriga perfazendo as 10 milhas indicadas no Itinerário. No entanto, para quem seguia para Olisipo poderia evitar a cidade seguindo em direcção à Portela da Mata da Alfarda, ponto que por sua vez está a 10 milhas de Coimbra e a 34 de Ceras como indicado no Itinerário (ver post anterior) .

O restante trajecto rumo à travessia do Rio Mondego não oferece grandes dificuldades, sendo a marcação miliária assinalada por vários sítios romanos que seguramente teriam uma função viária.

Fig. 3 – A via para Aeminium indicando a sequência de sítios romanos de acordo com a marcação miliária – Portela das Alfarda (10 m.p.), Atadôa (9 m.p.), Castelo (8 m.p.), Orelhudo (7 m.p.), Escoural (6 m.p.), Picoto/Malga (5 m.p.), Antanhol (4 m.p.), Ladeira da Paula (3 m.p.), Cruz dos Morouços (2 m.p.) e Carrascal (1 m.p.).

A meio percurso entre Eira Pedrinha e o Mondego viria a estabelecer-se um acampamento romano em Antanhol (destruído pela construção do aeródromo), permitindo exercer controlo sobre esta importante passagem.

Proposta de correção do trajecto a norte de Coimbra por um percurso mais directo a Sargento Mor, evitando o terreno acidentado de Cioga do Monte.

Depois de cruzar o rio, a via continuava para norte em direcção a Sargento Mor. Antes fazia-se passar a via por Cioga do Monte, mas o acidentado do terreno sugere uma ligação mais directa seguindo a rota da actual EN. A via seguia em direcção à povoação da Vimieira (Mealhada), local onde apareceu um miliário indicando doze milhas, ou seja, a distância daqui a Coimbra, indiciando a possível existência de uma estação viária neste local, possivelmente no sítio romano conhecido por «Cidade das Areias».

A via seguia depois por Anadia e Águeda rumo a Talabriga, estação que deverá estar relacionada com a travessia do Rio Vouga. No entanto, a sua localização continua a dividir os investigadores dado que o Itinerário indica 40 milhas entre Aeminium e Talabriga quando a distância entre o Mondego e o Vouga não ultrapassa as 34 milhas, problema que será abordado no próximo artigo centrado em Talabriga.

Bibliografia:
BARREIROS, Gaspar (1561) – “Chorographia de alguns lugares que stam em hum caminho que fez Gaspar Barreiros”. Coimbra: João Aluarez.
GASPAR, J.M. (1983) — “Condeixa‑a‑Nova de Augusto dos Santos Conceição”. Porto.
CORREIA, V.H. (1993) — “Os materiais pré‑romanos de Conímbriga e a presença fenícia no Baixo vale do Mondego”. Estudos Orientais [Os Fenícios no
Território Português]. Lisboa IV, p. 229‑283.
VILAÇA, R. (2012) – “Arqueologia do Bronze no Centro-Sul da Beira Litoral e Alta Estremadura (II-I milénios a.C.)”. Junta de Freguesia de Vila Nova: 16-32.

Parte 3 || Seilium

Continuando a série de artigos sobre a rota de Lisboa a Braga, chegamos agora à terceira estação mencionada no Itinerário XVI que, na maioria dos códices medievais é designada por «SELLIUM» ou «CELLIUM». A descoberta de duas inscrições de emigrantes Seilienses, uma encontrada perto de Porto do Son, Galiza (CIL II 2562) e outra dentro do Mosteiro de Lorvão (HEp 9, 1999, 743), sugere que a grafia correcta seria «SEILIUM». Estas divergências resultam muito provavelmente do facto do Itinerário que conhecemos hoje é o resultado de sucessivas cópias medievais produzidas desde a Alta Idade Média sobre o título de Itinerarium Antonini Augusti, acrescentando distorções ao documento original quer nos topónimos quer nas distâncias assinaladas. A sua identificação com Tomar reúne actualmente um grande consenso entre investigadores, no entanto, esta localização apresenta ainda algumas questões por resolver como veremos a seguir.

A primeira tentativa de localização desta estação deve-se a Gaspar Barreiros que no século XVI propunha a sua identificação com “a vila de Ceice, junto a Tomar” (Barreiros, 1561: fl. 48; actualmente designada por Seiça, Ourém) seguindo a similitude fonética com Ceilium. Esta proposta foi seguida por André de Resende no seu “Antiguidades…”, acabando por cristalizar na historiografia portuguesa. Só nos alvores do século XX é que alguns autores retomariam a questão, em particular o trabalho pioneiro de Vieira de Guimarães, alertando para os inúmeros vestígios romanos que iam aparecendo na cidade de Tomar, assim como a provável passagem da via romana nesta importante travessia do rio Nabão (Guimarães, 1927: 13-27). Vieira de Guimarães combatia assim os mitos e lendas que vinham associando esta povoação à antiga Nabância (seguramente guiados pelo hidrónimo Nabão) e ao martírio de Santa Iria, teses que viriam a revelar-se infundadas (Amendoeira e Martins, 2020: 109).

Do pouco que sabemos sobre este povoado, supõe-se que teria atingido estatuto municipal com base numa inscrição votiva dedicada ao Genio / municipi(i) que apareceu reutilizada na construção da torre de menagem do castelo templário (AE 1993, 881; RAP 256). Em concordância com esta hipótese, a marca de oficina “R. p. S.” registada em dois tijolos (HEp 11, 2001, 703 e 704) que apareceram próximo da cidade foi desdobrada em R(es) p(ublica) S(eiliensis) (Fernandes e Ferreira, 2002) Este estatuto administrativo parece ter continuidade na Alta Idade Média com base no Paroquial Suevo que menciona Selio como uma das sete paróquias que integravam a diocese Conimbricensis. Segundo um documento de 1317, transcrito por Pedro Alvares Seco da Ordem de Cristo, «Santa Maria de Thomar» (possivelmente a actual igreja templária de Santa Maria do Olival) seria anteriormente designada por «Santa Maria de Selio» (Guimarães, 1927: 103-107), mas a partir daí o topónimo entra na penumbra.

Apesar da escassez de informação é muito provável que toda esta área integrasse o território da Civitas Seilienis durante o período romano. A posterior identificação de estruturas romanas nas traseiras do quartel dos bombeiros, associadas a um possível forum, parecia vir confirmar esta localização (Ponte, 1995). No entanto, continuam a existir dúvidas entre os investigadores quanto à tipologia e funcionalidade dos edifícios que ali existiam. Nesse sentido, também seria possível associar estes vestígios à estação viária que aqui certamente existia, atendendo à importância desta travessia e ao achado de miliários (ver viasromanas.pt#tomar).

As dúvidas na identificação de Seilium com Tomar estão também relacionadas com a aparente incompatibilidade desta localização com a informação constante no Itinerário. De facto, é impossível ir de Tomar a Conímbriga percorrendo apenas as 34 milhas indicadas no Itinerário, seja qual for o percurso escolhido, dado que no terreno contam-se cerca de 42 milhas, havendo portanto um défice de oito milhas. Na maioria das edições esta parte do Itinerário XVI é transcrita da seguinte maneira:

SCALLABIN
SEILIUM XXXII (32)
CONIMBRIGA XXXIIII (34)

De facto, percorrendo oito milhas em direcção a norte partindo de Tomar, seguindo a proposta de traçado lançada por Vieira de Guimarães (hoje praticamente consensual), o trajecto por Calçadas, Freixo, Ceras, Portela de Vila Verde e Rego da Murta, rumo a Conímbriga (Guimarães, 1927: 13-27; Mantas, 1996), atingimos a oitava milha junto da travessia da ribeira de Ceras, local por sua vez a 34 milhas de Conímbriga conforme é indicado no Itinerário. Junto da ponte medieval que ali existe, Vieira de Guimarães fotografou um mais que provável miliário (entretanto perdido), apontando para a existência de uma estação viária neste local.

No entanto, a sua identificação com Seilium do Itinerário revela-se problemática. Desde logo, não há registo de vestígios romanos na área de Ceras (para além do miliário) que possam corroborar esta hipótese , nem evidências seguras do “castrum quod dicitur Cera“, referido no documento de doação do Termo de Cera de 1159, povoado a que Vieira de Guimarães chama de “castrum romano” sem precisar a sua localização. Para Salete Ponte esta fortificação estaria no Monte do Alqueidão, seguindo proposta anterior de Amorim Rosa (Ponte, 1995: 292). Por seu lado, João Romão apontou para o monte das Castelhanas, onde identificou um possível recinto amuralhado, ainda bem visível nas fotografias de satélite (Romão, 2012: 99).

Fig. 1 – Trajeto da via romana na área de Ceras e a possível localização de Seilium no Monte das Castelhanas (representando o eventual recinto amuralhado (com base em Romão, 2012: 99 )

A única referência a este local é do ano 1542 quando Pedro Álvares Seco refere a existência de vestígios de uma fortificação que associa ao “Castelo de Ceras”, mas cerca de dois séculos depois, em 1799, Viterbo já nada viu de relevante (Barroca, 1997: 178). Para Carlos Batata (coordenador da Carta Arqueológica da região), não há evidências materiais que suportem qualquer uma destas localizações (Batata, 1997). Este autor sugeriu a sua localização no Castro da Pena, a sudoeste de Ceras (Batata, 2023), onde há vestígios de um povoado romanizado. A distância de cerca de duas milhas que separam este povoado do trajecto da via não seria caso inédito (por ex.: Langóbriga), mas também fragiliza esta hipótese é neste caso . Como nenhum destes locais foi até hoje convenientemente escavado e estudado, a questão permanece em aberto.

Apesar desta dúvida na localização da sua sede, tudo indica que a Civitas Seiliensis cobria um território que deverá corresponder grosso-modo ao termo medieval de Cera. De facto, em diploma régio de 1159, D. Afonso Henriques doa o Termo de Cera aos templários, com a obrigação de estes reconstruirem a antiga fortaleza que é designada no documento por “castrum quod dicitur Cera” (DMP, DR I, doc. 271). Esta acção do primeiro rei de Portugal visava restabelecer o controlo do território recentemente conquistado aos “mouros” através de doações à ordem do templo com a obrigação destes reconstruirem as fortalezas entretanto arrasadas pelo conflito. Para isso escolhe pontos estratégicos da rede viária que permitiam consolidar o poder cristão nestes territórios. Porém, no caso do Castelo de Ceras isso não viria a acontecer, dado que cerca de um ano depois, Gualdim Pais abandona o projecto de construção do castelo sobre as ruínas do castrum antigo e inicia a sua construção em Tomar, futura sede templária em Portugal, por ter “melhor cabeço e melhores águas” (Barroca, 1997: 178).

Fig. 2 – Limites aproximados do Termo de Cera (amarelo) e rede viária antiga. Traçado da via Aeminium-Scallabis com estações em Rego da Murta, Ceras, Tomar e Paialvo.

Apesar de não haver dúvida de que o núcleo urbano romano viria a desenvolver-se em Tomar, local de cruzamento do Nabão, nada obsta a que o Itinerário refira a antiga cabeça de território, eventualmente localizada em Ceras. De resto, todas as estações do Itinerário XVI correspondem a povoados proto-históricos, muitas vezes remontando às antigas “chefaturas” do Bronze Final, o que é bem revelador da ancestralidade desta rota. A favor da sua localização no Monte das Castelhanas é o facto de este servir actualmente de quadrifinio entre as freguesias de Areias, Chãos, Casais e Alviobeira (sendo que Ceras integra esta última), mostrando que este local é de há muito utilizado como referencial geográfico.

Deste modo, tanto Ceras como Tomar apresentam argumentos favoráveis à sua identificação com Seilium, mas em ambos os casos, haveria que corrigir o Itinerário, possivelmente em resultado de um erro introduzido pelos copistas medievais na marcação miliária. Se, por um lado, admitirmos a sua localização em Ceras, temos conformidade com a distância a Conímbriga (34 m.p.), mas haveria que corrigir a distância de Seilium a Scallabis de 32 para 42 milhas, a distância aproximada entre Ceras e Santarém. Eventualmente houve troca entre os numerais “XXXXII” (42) e “XXXII” (32, omitindo o primeiro “X”) dado que esta forma de representar quatro dezenas surge em outras rotas do Itinerário (“XXXXX” em vez de “XL”).

Se por outro lado posicionarmos esta estação em Tomar, haveria que corrigir a distância de Seilium a Conimbriga, passando neste caso de 34 para 42 milhas, o que poderia ser explicado por eventual troca entre os numerais “XXXXII” (42) e “XXXIIII” (34), confundindo o terceiro “X” por dois traços verticais “II”.

Assim, haveria duas hipóteses de correcção:
Correcção com Seilium em Ceras
SCALLABIN
SEILIUM XXXXII (42)
CONIMBRIGA XXXIIII (34)

Correcção com Seilium em Tomar
SCALLABIN
SEILIUM XXXIIII (34)
CONIMBRIGA XXXXII (42)

Em síntese, a localização de Seilium em Tomar está longe de estar fechada e nada nos dados disponíveis permite descartar a hipótese da sua identificação com a arruinada fortificação referida na Carta de Doação do Termo de Cera à Ordem de Cristo. Acima de tudo, mais que resolver a questão, pretendemos alertar para as incertezas que ainda rodeiam a identificação de muitos destes topónimos, cujas localizações são por vezes dadas como seguras, quando na verdade estamos bem longe dessas supostas certezas. No próximo artigo analisaremos a passagem da via por Conímbriga.

Bibliografia citada:
AMENDOEIRA, J. ; MARTINS, A. C. (2020) – “Vieira Guimarães (1864-1939) e a arqueologia em Tomar: uma abordagem sobre o território e as gentes”. In J. M. Arnaud, C. Neves, & A. Martins (Eds.), Arqueologia em Portugal: 2020 – Estado da Questão (pp. 101-112). Associação dos Arqueólogos Portugueses | CITCEM.
BARREIROS, Gaspar (1561) – “Chorographia de alguns lugares que stam em hum caminho que fez Gaspar Barreiros”. Coimbra: João Aluarez.
BATATA, C. (1997) – “As origens de Tomar: a carta arqueológica do concelho”. Tomar: Centro de Estudos e Protecção do Património da Região de Tomar.
BATATA, C. (2023) – “O termo de Cera, os Templários e o povoamento do espaço”. Tomar: II Colóquio Internacional da Rota Templária Europeia. Cadernos Culturais Nabantinos, Vol. 3, 127-133.
BARROCA, M. J. (1997) – “A Ordem do Templo e a arquitectura militar portuguesa”. Portvgália, Nova Série, Vols. XVII-XVIII (1996-1997), 171-209.
FERNANDES, L. S.; FERREIRA, R. (2002) – “Marcas de oficina em tijolos romanos de Seilium. Conimbriga, 41, 257-267.
GUIMARÃES, Vieira (1927) – “Thomar. Sta. Iria”. Lisboa: Livraria Coelho.
MANTAS, Vasco G. (1996) – “A Rede Viária Romana da Faixa Atlântica entre Lisboa e Braga”. Dissertação de doutoramento (policopiada), Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
PONTE, Salete da (1995) – “Achegas para a Carta Arqueológica – Tomar”. Porto: in Portugália, Vol. XVI, 291-309.
ROMÃO, João M. (2012) – “No encalço do passo do Homem medieval: as vias de comunicação do antigo termo e atual concelho de Tomar”. Dissertação de Mestrado em Arqueologia – FCSH.



Parte 2 || Scallabis

Continuando a série de posts sobre o Itinerário XVI vamos agora analisar a sua passagem por Santarém rumo a Tomar. Não restam muitas dúvidas sobre a associação do povoado que ocupava o morro de Santarém a Scallabis. Segundo o Itinerário, esta estação estava a 32 milhas de Ierabriga, distância compatível com o percurso entre o Povoado dos Castelinhos e a base do morro de Santarém junto à margem direita do Tejo (ver post anterior).

Item ab OLISIPONE BRACARAM AUGUSTAM  m.p. CCXLIII
Ierabriga m.p. XXX
Scallabis m.p. XXXII
Seilium m.p. XXXII

Fig. 1 – Traçado da Via Ierabriga Scallabis passando por Alenquer (miliários) e Ota (castro). m.p. XXXII

De Scallabis a via continuava até Seilium percorrendo, segundo o Itinerário, 32 milhas. Ora, este valor parece insuficiente para cobrir o percurso entre Santarém e Tomar dado que a distância em linha recta se aproxima já das 31 milhas. Deste modo, é provável que a via seguisse pela margem do rio e não uma rota mais interior passando por Torres Novas como tem sido proposto (Mantas, 1996; Romão, 2012). Aliás, este corresponde ao trajecto descrito pelo Padre Castro no seu Roteiro Terrestre para a Estrada Real de Santarém a Tomar.

A partir de Santarém a via seguia por quatro milhas (uma légua) até à “Cruz da Entrada”, também designada por Cruz da Légua , havendo vestígios romanos nas proximidades (Cirne). Logo depois fazia a travessia o rio Alviela para daí cruzar a antiga Ilha de Alvisquer por Azinhaga rumo à Golegã (Figura 2). Inicialmente fizemos passar a via próximo do importante povoado fortificado de Chões de Alpompé (a 8 milhas a norte de Santarém) e do povoado de Pombalinho (vestígios de ocupação que remonta à Idade do Bronze).

Fig. 2 – Novo traçado da via a norte de Santarém (azul), seguindo pela antiga Ilha de Alvisquer. A marcação miliária coloca a milha XII em Azinhaga, possível mutatio.

No entanto, a marcação miliária aponta para um traçado mais recto seguindo em direcção a Azinhaga, a 12 milhas a Santarém, sugerindo que neste local haveria estação viária, provavelmente uma mutatio.  Aliás, o topónimo Azinhaga remete para a existência da via (do árabe, “o-caminho”). O troço em causa começa na Cruz da Légua (4 m.p. a Santarém), onde há vestígios romanos (Cirne) e segue pela antiga Ilha de Alvisquer até Azinhaga (Figura 2).

Cruzava depois o Rio Almonda em direcção à Golegã, mas a partir daqui as dúvidas acentuam-se, dado que não foi ainda possível determinar o local onde se fazia a travessia da Ribeira de Beselga. Existem várias possibilidades que reduzimos a três hipóteses. A primeira hipótese seguia mais a ocidente por Paialvo, trajecto mais de acordo com a viação antiga pois cruza a Ribeira da Beselga mais a montante . A segunda hipótese (cor rosa) seguia um percurso mais recto a Tomar cruzando a Ribeira de Beselga junto do miliário dos Santos Mártires. Por fim, existe ainda a hipótese da via seguir o percurso da antiga “Estrada Real” Santarém-Tomar passando em Atalaia e Asseiceira e Santa Cita, seguindo depois a margem direita do Nabão até Tomar.

Fig. 3 – Possíveis variantes entre a Golegã e Tomar. A actual proposta faz passar a via por Paialvo. A rosa o traçado por Atalaia, bifurcando em duas variantes, uma passando junto do miliário de Santos Mártires e outro por Asseiceira.

Na Carta de Doação da albergariam de Saiceira em 1222 a Pedro Ferreiro e a Maria Vasques, sua mulher, com a “condição de a aproveitarem e utilizarem melhor do que os seus antecessores”, refere como limite oeste da propriedade a ‘strata colimbriana ad Sanctarem’ desde a “Conchada de Beselga” até ao término ‘inter ambas lagonas´ (PMM doc 72), no entanto, a localização destes locais é incerta e não sabemos a qual das hipóteses se refere.

Em síntese, a via de Santarém a Tomar seguia uma rota paralela ao rio Tejo até à Golegã, mas a partir daqui parece bifurcar, um ramo seguindo mais a oeste por Paialvo, Fungalvaz, Ansião e Eira Velha, em direcção a Coimbra, e outro, o referido no Itinerário, seguia directo a Tomar para aí cruzar o rio Nabão, continuando por Ceras rumo a Conímbriga. No entanto, não há acerto com as distâncias indicadas no documento para a etapa seguinte entre Seilium e Conimbriga, pois o Itinerário indica 34 milhas, valor manifestamente insuficiente para cumprir o percurso entre Tomar e Conímbriga, problema que será abordado na Parte 3 desta série de artigos, a propósito da localização de Seilium.

O Itinerário de Olisipo a Bracara – Parte 1

Item ab OLISIPONE BRACARAM AUGUSTAM  m.p. CCXLIII
Ierabriga m.p. XXX
Scallabis m.p. XXXII
Seilium m.p. XXXII
Conimbriga m.p. XXXIIII
Aeminium m.p. X
Talabriga m.p. XL
Langobriga m.p. XVIII
Cale m.p. XIII
Bracara m.p. XXXV

Este grande itinerário ligava o porto de Olisipo a Bracara, decalcado o antigo eixo viário que perdura até aos dias hoje. Apesar da sua importância e de conhecermos o seu trajecto em traços gerais, subsistem ainda grandes dúvidas na localização das estações intermédias. De facto, além dos caput viae, Lisboa e Braga, só temos certezas sobre a localização de Scallabis (Santarém), Conimbriga (Condeixa-a-Velha), Aeminium (Coimbra) e Cale (Porto/Gaia). Quantos às restantes estações, Ierabriga, Seilium, Talabriga e Longobriga, embora se consiga estimar a sua provável localização, ou pelo menos, a sua área de influência, o seu exacto posicionamento continua em dúvida, não havendo provas conclusivas que possam fechar em definitivo esta discussão iniciada pelos iluministas do século XVI. Permanece assim como uma das grandes questões em aberto na viação antiga do nosso país.

Desde logo, é muito provável que haja erros nos valores indicados pelo Itinerário para as distâncias intermédias, dado que a distância total indicada de 244 milhas é insuficiente para cumprir um percurso entre Lisboa e Braga que, segundo o traçado proposto, ronda as 259/260 milhas. Mas em que pontos estariam esses erros?

As dúvidas surgem logo na primeira estação para quem partia de Olisipo. Tradicionalmente, Ierabriga tem sido identificada com Alenquer, hipótese que foi sendo reforçada com a descoberta de muitos vestígios romanos no aro desta povoação (incluindo diversos miliários) que apontavam para a existência de uma estação viária nesta povoação. Apesar de ser praticamente consensual, esta identificação contraria a informação registada no Itinerário, dado que este indica 30 milhas para esta etapa quando a distância entre estes pontos ronda as 33 milhas.

Itinerário XVI – Olisipo, Ierabriga, Scallabis e Seilium, as três primeiras estações desta rota.

Ora, seguindo o percurso proposto por Loures, Alverca e Vila Franca de Xira, atingimos a milha 30 na base de um dos mais importantes povoados da margem do Tejo, o Povoado do Monte dos Castelinhos.

Aliás, sendo o topónimo terminado em briga, é muito mais provável tratar-se de um povoado pré-romano fortificado e não um povoado aberto como o assentamento romano de Alenquer.

Está localização no Povoado dos Castelinhos é também coerente com as 32 milhas indicadas no Itinerário entre Ierabriga e Scallabis, a estação seguinte. De facto, essa é a distância medida entre a base de Castelinhos e a base do morro de Santarém, o que vem reforçar este posicionamento. Neste local a via abandonava a margem do Tejo e seguia para Alenquer, de modo a evitar o vasto Paúl da Ota que seria intransitável.

Vista actual do Povoado dos Castelinhos, provável localização de Ierabriga. Na sua base passava a via Olisipo a Scallabis, a 30 milhas da primeira e 32 milhas da segunda.

Esta situação está longe de ser inédita na viação romana e é perfeitamente clara neste Itinerário, dado que a totalidade dos topónimos correspondem a povoados pré-romanos e não a estações viárias romanas. Estes povoados seriam seguramente as cabeças administrativas dos territórios atravessados pela via, continuando depois com sede das civitates do período romano, tendo em muitos casos continuidade como cabeça dos termos medievais.

O problema complica-se nas etapas seguintes, dado não ser possível ir de Santarém a Conímbriga percorrendo apenas as 66 milhas indicadas (32 + 34) quando a distância real entre estes pontos ronda as 76 milhas, sugerindo a existência de erros que suprimiram 10 milhas ao percurso. Consequentemente, a identificação de Seilium com Tomar não pode ser considerada fechada, apesar de esta proposta ser hoje praticamente unânime. De facto, admitindo que as 34 milhas indicadas a Conímbriga estariam correctas, então Seilium estaria oito milhas a norte de Tomar, o que posicionaria esta estação junto ao Castelo de Ceras, onde apareceu miliário.

Continuando o percurso, surgem novas dificuldades na determinação da localização de Talabriga. Esta estação tem sido associada ao cruzamento do Rio Vouga, atendendo à sequência de paragens, no entanto as 40 milhas indicadas a Coimbra (Aeminium) colocaria a estação a norte desse rio, dado que a distância entre o Mondego e o Vouga não ultrapassa as 34 milhas. Esta incongruência está na origem da grande discussão que se instalou em torno da localização desta estação ainda sem fim à vista, em particular porque as distâncias indicadas no Itinerário parecem invalidar a sua identificação com o povoado proto-histórico do Cabeço do Vouga como se tem pretendido.

Mais pacífica parece ser a identificação da estação seguinte, designada Langobriga, com o Castro de Fiães ou do Monte Redondo, em concordância com as 13 milhas indicadas a Cale, apesar deste assentamento estar relativamente afastado da via (cerca de duas milhas a nascente). Deste modo, o Itinerário não parece indicar propriamente as estações romanas ao longo do percurso, mas os povoados que eram cabeça dos territórios cruzados pela via.

Por último, para a etapa final entre Cale e Bracara são indicadas 35 milhas, valor que está de acordo com o percurso entre Porto e Braga pela rota da EN14, e que foi confirmado por diversos miliários (ver https://viasromanas.pt/blog/index.php/2020/06/05/via-bracara-cale/).

Depois desta visão geral sobre as principais questões ainda em aberto sobre o Itinerário XVI, vamos seguidamente analisar estes problemas em detalhe e propor possíveis soluções. Mas isso será o objecto dos próximos artigos deste blog.
Mantenham-se atentos!

St. James’ Way and the ancient road system

The recent proliferation of the so called “Camino de Santiago” (St. James’ Way), although it has its merits, is creating a distorted vision of the ancient road system by tracing indiscriminate routes all over the country without a secure historical basis. Some care in the elaboration of these routes is thus required in order to reflect the true reality of the ancient paths, instead of trying to “force” a route that is hovering here and there, vaguely in the direction of Santiago, and that in most cases has nothing to do with the ancient roads that served this pillgrimage.

Of course, one can start from any geographical point and go to Santiago, but that does not mean that the path was used for that purpose. The route used by the pilgrims would certainly be the ancient routes inherited from the Roman period (but in reality with much older origins…), and apart from a few minor variations introduced over time, these routes remained practically unchanged until the 19th century, when it was necessary to build a new road network better adapted to motorised traffic.

Now, for those departing from the current Portuguese territory, the two main access gates to Santiago would be Tui and Chaves. The first corresponds to the great S-N route from Lisbon which, like today, runs parallel to the coast passing through Santarém, Tomar, Coimbra and Porto, and then continues along the so-called “Central Way” via Barcelos to Valença. Naturally, for those coming from the Beiras region, the most direct route would be via Braga, continuing along the Bracara-Tudae road to Valença. This route aggregated various routes that crossed the River Douro respectively in Porto Antigo, Caldas de Aregos and Régua. From this last place, a route to Chaves run through the Sanctuary of Panóias and reached Chaves by crossing the heights of the Padrela Mountain, where it received another route also coming from another important crossing of the Douro River in Numão (Vesuvio/Ns. da Ribeira) that came through Carlão and Alto do Pópulo until it joined the Régua-Chaves axis near the important Roman mining exploitation of Trêsminas. From Chaves, the pilgrims would enter Galicia, heading towards Torre de Sandiás (Ourense), the station of Geminas mentioned in the XVIII Itinerary from Bracara to Asturica, an axis which crossed at this point, continuing from here to Santiago.

The prevalence of these ancient routes throughout the Middle Ages and even in much later periods makes it impossible to imagine that the route followed a “medieval route” to Santiago different from the one used in the Roman period, although here and there some variants have been introduced over the centuries. In this way, the map we present ends up being a panorama of the routes available for those who were heading to Santiago, which from any point quickly entered this ancient network of roads that practically covered whole the current Portuguese territory.

Milestone converted into Alminhas (shrine) near the Church of Ns. de Cervães (Mangualde)

The result is that although we are talking about different periods in time, the Roman and medieval roads are essentially the same physical reality. This can be seen as we travel along these roads because the great majority of the shrines, hermitages, crosses and landstones of the medieval period marking the passage of the way are positioned in accordance with the Roman mile of about 1500 m. In other words, even on the stretches where there are no milestones, it is possible to follow this marking every thousand steps which accompany the pilgrim along the route.

Milestone of Augustus on the courtyard of the Romanesque church of Rubiães, converted into a sarcophagus.

The historical density and typology of these routes has nothing to do with this multiplicity of routes that have been created towards Santiago, distorting the historical reality, taking the pilgrim away from the true immersive experience that these historical routes provide.

February 2023

“Caminhos de Santiago” e a rede viária antiga

A recente proliferação dos chamados «Caminhos de Santiago», ainda que tenha os seus méritos, está a criar uma visão distorcida da viação antiga ao traçar percursos indiscriminados um pouco por todo o país sem bases históricas seguras. Seria necessário ter algum cuidado na elaboração destes percursos de modo a reflectir a verdadeira realidade da viação antiga, em vez de “forçar” um percurso que vai atalhando por aqui e acolá, vagamente em direcção a Santiago, e que na maioria da vezes nada têm de antigo.

Claro que se pode partir de qualquer ponto geográfico e seguir para Santiago, mas isso não significa que o caminho fosse utilizado para esse fim. O caminho utilizado pelos peregrinos seria seguramente pelas velhas vias herdadas do período romano (mas na realidade com origens bem mais antigas…), sendo que para além de umas pequenas variantes introduzidas ao longo dos tempos, estas rotas mantiveram-se praticamente inalterados até ao século XIX, momento a partir do qual foi necessária construir uma nova rede de estradas mais adaptada ao trânsito motorizado.

Ora, para quem partia do actual território português, as duas principais portas de acesso a Santiago seriam Tui e Chaves. A primeira corresponde à grande rota S-N oriunda de Lisboa que tal como hoje seguia paralela à costa passando por Santarém, Tomar, Coimbra e Porto, continuando depois pelo chamado «Caminho Central» por Barcelos até Valença. Naturalmente que para vinha das Beiras o caminho mais directo seria via Braga, continuando pela via Bracara-Tudae até Valença. Este eixo viário, agregava várias rotas que cruzavam o Rio Douro respectivamente em Porto Antigo, Caldas de Aregos e Régua. Deste último local partia uma via rumo a Chaves passando junto do Santuário de Panóias e cruzando depois por alturas da Serra da Padrela, onde recebia uma uma outra via também proveniente de outro importante cruzamento do Rio Douro em Numão (Vesúvio/Ns. da Ribeira) que vinha por Carlão e Alto do Pópulo até reunir com o eixo Régua-Chaves junto da importante exploração mineira romana de Trêsminas. A partir de Chaves, os peregrinos entravam na Galiza, seguindo na direcção de Torre de Sandiás (Ourense), a estação de Geminas referida no Itinerário XVIII de Bracara a Asturica, eixo que cruzava neste ponto, continuando daqui para Santiago.

A prevalência destes trajectos antigos por toda a Idade Média e mesmo em períodos bem posteriores, inviabiliza a hipótese de o caminho seguir uma “via medieval” para Santiago diferente da utilizada no período romano, apesar de aqui ou ali terem sido introduzidas algumas variantes ao longo dos séculos. Deste modo, o mapa que apresentamos acaba por ser panorama das rotas disponíveis para quem se dirigia para Santiago, que partindo de qualquer ponto rapidamente entrava na rede geral antiga pois esta cobria praticamente a totalidade do actual território português.

Miliário convertido em Alminhas junto da Igreja de Ns. de Cervães (Mangualde)

Daqui resulta que apesar de estarmos a falar de diferentes momentos temporais, o caminho romano e medieval é no essencial a mesma realidade física. Isso mesmo se verifica ao percorrer estes eixos viários pois a grande maioria das alminhas, ermidas, cruzeiros e marcos divisórios do período medieval assinalando a passagem da via estão posicionados em concordância com a marcação miliária de 1500 m, ou seja com a chamada “milha romana”. Ou seja, mesmo nos troços onde não há miliários, é possível seguir a marcação de mil em mil passos através desses marcadores da estrada que acompanham o peregrino ao longo do trajecto.

Miliário no adro da Igreja Românica de Rubiães reconvertido em sarcófago no período Medieval

A densidade histórica e tipologia destes percursos nada tem a ver com esta multiplicidade de percursos que têm sido criados rumo a Santiago, distorcendo a realidade histórica, tirando o peregrino da verdadeira experiência imersiva que estes caminhos históricos proporcionam.