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Transformações na orla costeira I – Costa Ocidental

Durante o estudo da viação romana chocamos com o facto de a linha de costa em
período romano ser muito diferente da actualidade. Com efeito, a conjugação dos dados históricos com a investigação geofísica mostra que a linha de costa era bem mais recortada do que na atualidade, formando grandes estuários que permitiam a navegação costa adentro até portos abrigados no interior. O progressivo assoreamento dos estuários, em particular a partir da Idade Média, acabou por inutilizar algumas destas rotas marítimas, resultando em grandes mudanças quer do sistema portuário quer das vias terrestres às quais estavam ligados.

As estruturas portuárias da antiguidade estavam articuladas com uma rede viária que permitia a circulação das mercadorias de e para o hinterland. O principal eixo viário interliga os dois principais portos e focos populacionais do território português, Porto e Lisboa. O percurso da estrada é sensivelmente paralelo à linha de costa, mas relativamente afastada desta. No entanto, este trajecto mais interior esconde a sua vocação marítima, dado que a estrada servia também diversas estruturas portuárias ao longo do litoral, criando uma “rede simultaneamente marítima e terrestre que permitia o abastecimento do hinterland a partir de portos praticáveis no remanso de águas fluviais, ou estuarinas, cujas bacias estavam ainda livres dos grandes assoreamentos medievais e pós-medievais” (Blot, 200, 143).

Esta estrada cruzava o rio Douro junto do importante entreposto comercial de Cale cuja actividade portuária se estendeu até ao século XVIII apesar das crescentes dificuldades criadas pelo assoreamento da barra do Douro face aos novos desafios de navegação à época, com navios maiores e maior intensidade de tráfego, limitando o alcance da ação económica da própria cidade do Porto, levando à construção de uma nova estrutura portuária na foz do rio Leça, o Porto de de Leixões (Alves e Dias, 2001: 94), estrutura apenas concluída já no século XX.

Depois de cruzar o rio, a estrada seguia por Santo Ovídeo, Canelas, Carvalhos, Fiães, São João da Madeira, Oliveira de Azeméis e Albergaria-a-Velha, de modo a evitar a vasta zona lagunar formada pela Ria de Aveiro que se estende entre Esmoriz e Vagos. No entanto, o cruzamento do rio Vouga fazia-se (tal como a antiga EN1) entre Serém e Lamas, na base do importante povoado romanizado do Cabeço do Vouga, local hoje muito afastado da costa (Fig. 1), mas que teria acesso ao mar através do rio Vouga, nomeadamente ligando ao seu porto de mar, localizado com toda a probabilidade na Torre da Marinha Baixa (Cacia), onde há forte evidências de actividade comercial portuária durante o período romano (Sarrazola, 2003: 160).

Fig. 1 – A foz do Vouga na actualidade e localização do porto romano da Marinha Baixa (Cacia)

Continuando o percurso, a estrada cruzando o vale da Mealhada rumo à travessia do rio Mondego junto a Coimbra, a antiga Aeminium,. Em ambas as margens do curso terminal deste rio há evidências de ancoradouros, nomeadamente uma possível feitoria fenícia junto do povoado de Santa Olaia, dominando visualmente o paleo-estuário do Mondego (Alarcão, 2004: 13-14). Aqui apareceu também um barco naufragado cujo espólio está em exposição na Sala de Arqueologia do Museu Municipal Santos Rocha na Figueira da Foz.

Fig. 2 – Povoamento e rede viária romana no curso terminal do Mondego.

Na margem esquerda há também vestígios de povoamento romano em Taveiro e Ameal, cuja proximidade ao rio permite também estabelecer uma relação com a actividade fluvial. O mesmo poderá acontecer no caso de Soure, que apesar de integrar a via terrestre que ligava Conimbriga a Collipo (c. Leiria), poderia funcionar como cais fluvial dado o seu posicionamento na confluência no Mondego dos rios Arunca e Anços, apesar da ausência de vestígios concludentes.

A estrada seguia até Leiria onde cruzava o rio Lis, na base do castelo medieval. O rio deveria permitir a ligação ao porto do período medieval localizado na foz deste rio (Blot, 2003: 145). O porto marítimo durante o período romano deveria localizar-se em Paredes, actualmente ocupado pelas grandes formações arenosas que formam o grande Pinhal de Leiria. Mais uma vez a posição aparentemente interior de Leiria encobre a vocação marítima desta estrada. De Leiria, a estrada seguia até Alcobaça, e daqui ascendia ao Castro de Parreitas, grande povoado romanizado com domínio visual sobre a paleo-lagoa da Pederneira (Valado de Frades).

Fig. 3 – Reconstituição dos limites aproximados da paleo-lagoa da Pederneira (linha branca), com o castro romanizado de Parreiras e passagem da via para Lisboa contornando este obstáculo natural.

No período romano este braço de mar era navegável, entrando bem para o interior, sendo possível estimar a antiga linha de costa pelos sítios romanos de Pederneira, Póvoa, Cós, Maiorga, Fervença, Parreitas, Cela Velha e Famalicão, rodeando a paleo-lagoa (Blot, 2003: 212-213).

Fig. 4 – Povoamento antigo em torno da paleo-lagoa da Pederneira (in Alarcão, 2008, fig. 3)

A via continuava até Alfeizerão (miliário de Adriano), onde temos novamente vestígios de um possível vicus portuário no sítio das Ramalheiras, sobranceiro à paleo-baía de São Martinho do Porto (Blot, 2003, 217-218) . Logo depois atingia Eburobrittium (actual Óbidos), cuja localização apenas foi confirmada em 2008 em resultado da construção da auto-estrada A8. De facto, no sopé da vila medieval, surgiram abundantes vestígios de um vicus portuário no limite da zona inundável da Lagoa de Óbidos que pela sua posição deverá corresponder à enigmática Eburobrittium referida por Plínio e no epitáfio de um duúnviro Eborobritiensis chamado Maximino, que apareceu na Igreja Paroquial de Ns. de Aboboriz em Amoreira de Óbidos (AE 1936, 106).

Aliás, o povoado romano terá crescido em torno da atividade comercial deste porto que apesar de estar bem para o interior tinha acesso facilitado à rota oceânica através deste braço de mar (Blot, 2003, 220-223). Aliás, o progressivo assoreamento da lagoa durante a Idade Média e a consequente inutilização deste acesso terá ditado o seu posterior declínio, cristalizando no tempo a antiga povoação medieval no cimo do morro de Óbidos que hoje conhecemos. Daqui a estrada seguia até Lisboa, povoado que pela sua posição absolutamente estratégica na desembocadura do rio Tejo, oferecia um porto abrigado na base do morro onde hoje assenta o Castelo de S. Jorge.

Em síntese, estas estradas tocavam em pontos-chave de acesso aos principais portos marítimos permitindo a formação de uma rede de rotas comerciais na antiguidade. Este modelo repete-se a sul do Tejo, com as ligações viárias aos importantes portos do estuário do Sado, Caetobriga (Setúbal) e Salacia (Alcácer do Sal) (Mantas. 2010: 205) . Enquanto o primeiro está localizado na foz do rio Sado (tendo defronte a importante fábrica de salga de peixe da então ilha de Troia), o segundo encontra-se bem mais para o interior (a cerca de 30 km), aproveitando a navegabilidade do rio Sado até Alcácer do Sal (Blot, 2003, 259-269).

A antiga Salacia manteve o seu carácter de urbe portuária até à Idade Média, mas o posterior declínio desta rota fluvial poderá estar relacionada com a diminuição das condições de navegabilidade do rio como se verifica atualmente. A povoação mantém no entanto o importante papel de nó viário até à atualidade (e.g. local de passagem da auto-estrada para o Algarve), constituindo uma das principais portas de acesso às regiões do Alentejo e Algarve. De facto, do porto de Salacia partiam três importantes eixos viários, um ligando ao porto de Lisboa, outro ao porto de Mértola (via Beja), outro para Mérida (capital da Lusitânia, via Évora) e, finalmente, a rota para sul rumo ao Algarve.

Fig. 5 – Portos e rede viária no estuário do rio Sado

Destaque para a estrada para o Algarve que servia também os ancoradouros ao longo da costa alentejana. O trajecto desta via antiga partia de Alcácer do Sal rumo Alvalade, Garvão e Castro da Cola rumo a Faro. No nó viário de Alvalade, a via cruzava uma outra via que corria transversal a esta e que ligava o porto marítimo de Sines ao porto fluvial de Mértola, estrada que passa na cidade romana de Mirobriga (c. Santiago de Cacém). O achado de âncoras romanas e outros vestígios na área de Sines atestam uma importante actividade deste porto comercial em período romano (Blot, 2003, 269-272), explicando a grande prosperidade atingida pela urbe romana ainda hoje visível através das suas estruturas monumentais ainda subsistentes.

Além do eixo principal para o Algarve rumo a Faro, parece existir uma variante desta estrada correndo mais próximo do litoral passando por Miróbriga rumo ao Cabo de São Vicente no barlavento algarvio. O trajeto inicial entre Alcácer do Sal e Grândola poderia ser por via fluvial, dado que a área é ainda hoje ocupada por vastas formações arenosas sem qualquer vestígio de povoamento romano. No centro de Grândola existem importantes vestígios de um grande estabelecimento romano que poderia servir esta rota. Ao longo do seu percurso, a via passava próximo dos diversos fundeadouros dispostos ao longo da Costa Alentejana, nomeadamente em Vila Nova de Mil Fontes, Sines, Porto Covo e Ilha do Pessegueiro, tocando depois nos portos portos fluviais de Odemira, Odeceixe e Aljezur até atingir a costa virada a sul.

Em síntese, as principais rotas comerciais na costa ocidental portuguesa eram suportadas numa eficaz articulação entre portos e rede viária. Alguns destes portos permanecem ainda hoje com grande vitalidade económica, como são os casos dos portos de Lisboa, Porto, Setúbal e Sines, no entanto, outros acabaram por perder a sua pujança económica em resultado destas sucessivas alterações da orla costeira que levaram à inutilização dos seus portos e consequente declínio económico.

Em síntese, os principais fluxos comerciais do sudoeste peninsular eram suportados numa eficaz articulação entre as estruturas portuárias e a rede viária. A maioria destes portos permanecem com grande vitalidade económica até aos nossos dias, mantendo-se ainda hoje como os principais portos do nosso território, como são os casos de Porto, Lisboa, Setúbal, e mais recentemente, o porto de Sines. No entanto, como vimos, outros acabaram por perder a sua pujança económica devido às sucessivas alterações sofridas pela orla costeira ao longos dos tempos e que em muitos casos levaram à sua total inutilização.

Bibliografia:
ALARCÃO, J. de (2004) – “In territorio Colimbrie: lugares velhos (e alguns deles, deslembrados) do Mondego”. Trabalhos de Arqueologia. N° 38. Lisboa: IPA.
ALARCÃO , J. de (2008) – “Notas de arqueologia, epigrafia e toponímia V“. In RPA 11, 103-121.
ALVES, J.F.; DIAS, E.B. (2001) – “O fio de água : o Porto e as obras portuárias (Douro-Leixões)” Revista da FLUP, III Série, Vol. 2, 93-106.
BLOT, M. (2003) – “Os portos na origem dos centros urbanos”. Lisboa: IPA, Trabalhos de Arqueologia, 46.
MANTAS, V. G. (2010) – “Atlântico e Mediterrâneo nos portos romanos do Sado”. Coimbra: Revista Portuguesa de História, 41. 195-221
SARRAZOLA, A. (2003).- “Tentativa de enquadramento histórico dos contextos de abandono da Marinha Baixa/Torre (Cacia, Aveiro) – séc. V-VI”. Era Arqueologia 5: 150-163.

A book about Roman Itineraries in Alentejo

(Originally published on April 6, 2009)

A new book about Roman roads has just been published by researcher André Carneiro. The book entitled «Itinerários Romanos do Alentejo» ( “Roman Itineraries of the Alentejo”) is a rereading fifty years later of the singular work of Mario Saa (1893-1971) entitled «As Grandes Vias da Lusitânia – o Itinerário de Antonino Pio» (“The Great Roads of Lusitania – The Itinerary of Antoninus Pius”) published in six volumes between 1951 and 1967. Despite its imperfections, the work of Mário Saa is still of primordial importance for the study of the Roman roads in Portugal. He has been widely criticized for its fanciful interpretations, errors and inaccuracies. However, the pioneering spirit of the work and the amount of archaeological information contained in it deserve this rereading entirely in the light of current knowledge. André Carneiro thus tries to mark the routes proposed by Saa with the remaining evidence on the ground while integrating the enormous advances of recent years in the knowledge of the Roman road. Although this work is still far from being completed by pointing a direction and a way, André Carneiro’s work will certainly have a strong impact on future work on the study of Roman itineraries in the Alentejo.