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Transformações na orla costeira II – Costa Algarvia

As transformações do sistema portuário desde a antiguidade até à atualidade são particularmente evidentes na costa algarvia, onde muitos dos portos da antiguidade estão hoje completamente inutilizados. À partida, poderíamos pensar que estas alterações se devem a um lento e progressivo assoreamento das desembocaduras dos rios, num processo similar à costa ocidental, no entanto, há fortes sinais de que estas grandes alterações geomorfológicas da costa algarvia podem antes resultar de eventos sísmicos como foi o caso do famoso Terramoto de Lisboa de 1755.

A hipótese de algumas das alterações da costa terem ocorrido de forma repentina em resultado de eventos sísmicos que periodicamente afectam a região é reforçada pelas “cicatrizes” deixadas na paisagem de toda a orla costeira algarvia. Os impactos do terramoto e consequente maremoto de 1755 na costa algarvia foram bem documentados na época, mostrando consequências catastróficas para  pessoas, edifícios e estruturas portuárias (Hindson et al., 1996; Chester, 2010). 

No entanto, este evento mais recente está longe de ser um caso isolado, dado que há fortes indícios da ocorrência de eventos de grande energia muito similares ao de 1755, havendo indicadores arqueológicos e geofísicos que apontam para uma sucessão de três grandes eventos, um século III a.C. (Gómez et al., 2015: 68), outro no século I e ainda outro no século III d.C. (Roth et al., 2015). O impacto destes sucessivos tsunami terão afectado  importantes portos da antiguidade, outrora florescentes, como seja Baesuris, Balsa e Ossonoba (respectivamente Castro Marim, Tavira e Faro). A perda da função portuária parece estar na origem também do abandono dos portos de Vila Velha de Alvor, Vilamoura e Cacela Velha.

O caso da foz do rio Gilão, é particularmente interessante porque, ao contrário de Faro, Tavira  apresenta uma descontinuidade de ocupação que parece alinhar com este fenómenos naturais. Com efeito, a cidade assenta sobre uma povoação proto-histórico que recua até ao período Fenício, mas surpreendentemente o povoado é abandonado por volta do século III a.C, portanto, ainda antes da ocupação romana, facto que pode estar relacionado com o grande evento sísmico ocorrido em 218-209 a.C (Gómez et al., 2015: 68). 

Fig. 1 – O povoado pré-romano de Tavira e a cidade romana de Balsa na actualidade.

Os sinais de presença romana apontam para a ocupação do “Cerro do Cavaco”, um alto a montante do rio, durante o período Republicano. No entanto, por volta do século I, a administração romana decide construir uma uma nova cidade portuária, a cerca de quatro milhas a oeste de Tavira, a cidade de Balsa (Fabião, 1992-93: 233-234; Mantas, 2003: 85-94). No entanto, também esta viria a ser abandonada pelos finais do século III d.C., mais uma vez com paralelo temporal com o tsunami responsável pela destruição da cidade costeira de Baelo Claudia (localiza a cerca de 22 km oeste de Tarifa), dado que todas as colunas da cidade jaziam deitadas na mesma direcção, sinal que tinham sido derrubadas por acção de uma grandes onda (Silva et alli, 2005). 

O mesmo acontece no rio Guadiana, cuja geomorfologia na antiguidade era muito diferente da atual com base numa descrição detalhada em “Ora Marítima”, obra escrita pelo poeta latino Rúfio Avieno no século IV d.C., apesar da viagem nela relatada referir fatos ocorridos no século VI a.C. 

Ana amnis illic per Cynetas effluit sulcatque glaebam. panditur rursus sinus cavusque caespes in meridiem patet. memorato ab amni gemina sese flumina scindunt repente perque praedicti sinus crassum liquorem (quippe pinguescit luto omne hic profundum) lenta trudunt agmina. hic insularum semet alte subrigit vertex duarum. nominis minor indiga est, aliam vocavit mos tenax Agonida.
(Avieno, “Ora Marítima”, versos 201-211)

Segundo o texto de Avieno, o rio Ana dividia-se de repente em dois braços navegáveis antes de desaguar no mar, correndo para o mar em suas águas espessas (“flumina scindunt repente perque praedicti sinus crassum liquorem“), especificando que de facto em toda a sua profundidade era aqui carregada de lodo (quippe pinguescit luto omne hic profundum) onde há duas ilhas (“hic insularum semet alte subrigit“), possivelmente as atuais Isla Canela e Isla del Moral (fig. 1)

Fig. 2 – A orla costeira do tempo (A) romano e (B) na actualidade; Coastal Engineering, 1992 “The Punta Úmbria (Huelva) spit”, António Lechuga e José María Villaverde) https://icce-ojs-tamu.tdl.org/icce/index.php/icce/article/download/4849/4530

A foz do Guadiana era um local estratégico para a rota marítima do Mediterrâneo pois o rio é   navegável daqui até Mértola,  importante porto fluvial da antiguidade  (antiga Myrtilis) situado a 60 Km para interior, posição que oferecia excelentes condições para escoamento de produtos do hinterland alentejano. O acesso a partir do mar era dominado pelo povoado proto-histórico de Castro Marim, local onde apareceram muitos materiais de importação, sinal de uma pujante atividade comercial. Os materiais mais antigos foram datados do século V a.C. (Arruda, 1996: 97), no entanto, o registo arqueológico aponta para o abandono do povoado por volta do século III a.C., sendo novamente ocupado muito mais tarde, já em período romano Republicano (Arruda, 1984; 2002). 

Posteriormente, durante o Alto-Império há sinais de uma renovada atividade, dado o aparecimento de grande quantidade de terra sigillata desse período, após o qual se assiste a novo declínio (Viegas, 2011: 437). Com efeito, os materiais de importação cessam por completo pelos finais do século I, inícios do II d.C., sinal do acentuado declínio da atividade comercial (Fabião, 1992-93: 233; Viegas, 2006: 415; 2011: 518), eventualmente substituído pelo fundeadouro romano da Punta del Moral  (Encinas e Teyssandier, 2013).

Fig. 3 – Reconstituição paleogeográfica do estuário do Guadiana, mostrando a amarelo as áreas arenosas entretanto formadas e a vermelho os pontos de povoamento romano. Poster del “El Fondeadero Romano de Punta del Moral”, B. Cabaco Encinas y E. García Teyssandier; ArqueoGuadiana, 2012). https://www.academia.edu/19483918

O local só volta a ser ocupado já na Idade Média. Actualmente todo o cerro onde assenta o castelo (e o antigo povoado pré-romano) está rodeado de terra firme e zonas de sapal, mas no século XVI as águas ainda chegavam perto das muralhas do castelo, havendo referência à acostagem de “naus de 100 toneladas a tomar o sal que ali há” apesar das crescentes dificuldades de navegação nos esteiros (Garcia, 1996: 68).

Esta descontinuidade de ocupação de Castro Marim poderá assim também estar relacionada com estes fenómenos naturais, promovendo as grandes alterações geomorfológicas registadas no estuário do Guadiana, o que permite estabelecer uma relação causal (ver Quadro 1) entre estes dados arqueológicos e geofísicos (Gómez et al., 2015: 67).


Evento
Castro Marim Tavira
III a.CAbandono do povoado pré-romanoAbandono do povoado pré-romano
I d.CAbandono e estabelecimento do fundeadouro romano na Punta del Moral  Abandono e fundação da cidade romana de Balsa
III d.C.Castro Marim permanece deserto; abandono da Punta del MoralAbandono de Balsa e do seu porto de mar
1755Devastação do povoado medieval; sedimentação da orla costeira; abandono de Cacela Velha e fundação de Vila Real de Santo AntónioDevastação do povoado medieval; sedimentação da orla costeira

Quadro 1 – Tabela comparativa entre eventos sísmicos e históricos em Tavira e Castro Marim.

À medida que avançamos para nascente, já no território espanhol, este padrão repete-se nos restantes portos desta faixa costeira virada a sudoeste e portanto sujeita também aos impactos dos referidos fenómenos.  Por exemplo, na foz do rio Odiel, a cidade de Huelva foi muito afetada pelo terramoto de 1755, contando-se na época mais de 1000 mortos e inúmeros edifícios destruídos (Lima et al., 2010; 146). Na antiguidade esta povoação era designada por Onuba e constituía um porto importante desta rota marítima, mas que terá perdido a sua relevância à medida que o canal de acesso ao mar se ia estreitando, conforme é representado na reconstituição paleográfica da Fig. 2.

O mesmo acontece na foz do Guadalquivir que na antiguidade formava uma vasto estuário navegável que permitia o acesso aos portos abrigados e â via fluvial pelo Guadalquivir acima até Sevilha (antiga Hispalis), importante porto comercial da antiguidade que ainda no século XVI constituía a principal base de apoio às explorações marítimas espanholas. Atualmente este  estuário apresenta-se totalmente assoreado e o acesso a Sevilha é apenas possível com pequenas embarcações (Fig. 4).

Fig. 4 – Os portos de Onuba e Hispalis – a vermelho as vias antigas contornando o vasto paleo-estuário do Guadalquivir e a azul a via fluvial até Sevilha.
Fig. 5 – Pormenor das formações arenosas do Parque Doñana evidenciam o impacto de grandes ondas.

Em imagens de satélite desta parte da orla costeira (2022) é facilmente observável as grandes dimensões do paleo-estuário, hoje totalmente assoreado e que constitui em grande parte a área protegida do actual Parque Nacional de Doñana  (Ruiz et al., 2010), apresentando ainda sinais bem vincados do impacto de uma grande onda (ver fig. 5).

Síntese:
As transformações sofridas pela orla costeira portuguesa nos últimos dois milénios têm alterado dinâmicas portuárias, forçado as populações a abandonar povoados costeiros, procurando novos locais de ancoragem. Surpreende que algumas destas transformações surgem de forma muito repentina e bem vincada num determinado período temporal o que permite estabelecer uma relação entre esses eventos e acontecimentos históricos comprovados pela arqueologia, coincidência temporal que permite estabelecer uma relação causa-efeito entre estes dados.

Bibliografia:
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Encinas, B.C. ; Teyssandier, E. G. (2013) – “El fondeadero romano de Punta del Moral (Ayamonte, Huelva)”.  I Congreso de Arqueología Náutica y Subacuática Española – Cartagena, Maio, 2013.
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Silva, P.G., et alli (2005) – Archaeoseismic record at the ancient Roman city of Baelo Claudia (Cadiz, south Spain). Tectonophysics, 408(1-4), 129-146.
Terrinha, P.A.; Pinheiro, L.; Henriet, J.P.; Matias, L.; Ivanov, M.K.; Monteiro, J.H.; Azhmetzhanov, A.; Volkonskaya, A.; Cunha, T.; Shaskin, P.; Rovere, M. (2003). “Tsunamigenic-seismogenic structures, neotectonics, sedimentary process and slope instability on the southwest Portuguese margin”. Marine Geology, 195, 55-73.
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Transformações na orla costeira I – Costa Ocidental

Durante o estudo da viação romana chocamos com o facto de a linha de costa em
período romano ser muito diferente da actualidade. Com efeito, a conjugação dos dados históricos com a investigação geofísica mostra que a linha de costa era bem mais recortada do que na atualidade, formando grandes estuários que permitiam a navegação costa adentro até portos abrigados no interior. O progressivo assoreamento dos estuários, em particular a partir da Idade Média, acabou por inutilizar algumas destas rotas marítimas, resultando em grandes mudanças quer do sistema portuário quer das vias terrestres às quais estavam ligados.

As estruturas portuárias da antiguidade estavam articuladas com uma rede viária que permitia a circulação das mercadorias de e para o hinterland. O principal eixo viário interliga os dois maiores portos em território português, respectivamente a foz do rio Douro no Porto com a foz do rio Tejo em Lisboa. O percurso da estrada é sensivelmente paralelo à linha de costa, mas relativamente afastada desta. Este trajecto mais interior esconde, no entanto, a vocação portuária desta estrada, criando uma “rede simultaneamente marítima e terrestre que permitia o abastecimento do hinterland a partir de portos praticáveis no remanso de águas fluviais, ou estuarinas, cujas bacias estavam ainda livres dos grandes assoreamentos medievais e pós-medievais” (Blot, 200, 143).

Esta estrada cruzava o rio Douro junto do importante entreposto comercial de Cale cuja actividade portuária se estendeu até ao século XVIII apesar das crescentes dificuldades criadas pelo assoreamento da barra do Douro face aos novos desafios de navegação à época, com navios maiores e maior intensidade de tráfego, limitando o alcance da ação económica da própria cidade do Porto, levando à construção de uma nova estrutura portuária na foz do rio Leça, o Porto de de Leixões (Alves e Dias, 2001: 94), estrutura apenas concluída já no século XX.

Depois de cruzar o rio, a estrada seguia por Santo Ovídeo, Canelas, Carvalhos, Fiães, São João da Madeira, Oliveira de Azeméis e Albergaria-a-Velha, de modo a evitar a vasta zona lagunar formada pela Ria de Aveiro que se estende entre Esmoriz e Vagos. No entanto, o cruzamento do rio Vouga fazia-se (tal como a antiga EN1) entre Serém e Lamas, na base do importante povoado romanizado do Cabeço do Vouga, local hoje muito afastado da costa (Fig. 1), mas que teria acesso ao mar através do rio Vouga, nomeadamente ligando ao seu porto de mar, localizado com toda a probabilidade na Torre da Marinha Baixa (Cacia), onde há forte evidências de actividade comercial portuária durante o período romano (Sarrazola, 2003: 160).

Fig. 1 – A foz do Vouga na actualidade e localização do porto romano da Marinha Baixa (Cacia)

Continuando o percurso, a estrada cruzando o vale da Mealhada rumo à travessia do rio Mondego junto a Coimbra, a antiga Aeminium,. Em ambas as margens do curso terminal deste rio há evidências de ancoradouros, nomeadamente uma possível feitoria fenícia junto do povoado de Santa Olaia, dominando visualmente o paleo-estuário do Mondego (Alarcão, 2004: 13-14). Aqui apareceu também um barco naufragado cujo espólio está em exposição na Sala de Arqueologia do Museu Municipal Santos Rocha na Figueira da Foz.

Fig. 2 – Povoamento e rede viária romana no curso terminal do Mondego.

Na margem esquerda há também vestígios de povoamento romano em Taveiro e Ameal, cuja proximidade ao rio, permite também estabelecer uma relação com a actividade fluvial. O mesmo poderá acontecer no caso de Soure, que apesar de integrar a via terrestre que ligava Conimbriga a Collipo (c. Leiria), poderia também funcionar como cais fluvial dado o seu posicionamento na confluência no Mondego dos rios Arunca e Anços, apesar da ausência de vestígios concludentes.

A estrada seguia até Leiria onde cruzava o rio Lis, na base do castelo medieval. O rio deveria permitir a ligação ao porto do período medieval localizado na foz deste rio (Blot, 2003: 145). O porto marítimo durante o período romano deveria localizar-se em Paredes, actualmente ocupado pelas grandes formações arenosas que formam o grande Pinhal de Leiria. Mais uma vez a posição aparentemente interior de Leiria encobre a vocação marítima desta estrada. De Leiria, a estrada seguia até Alcobaça, e daqui ascendia ao Castro de Parreitas, grande povoado romanizado com domínio visual sobre a paleo-lagoa da Pederneira (Valado de Frades).

Fig. 3 – Reconstituição dos limites aproximados da paleo-lagoa da Pederneira (linha branca), com o castro romanizado de Parreitas e passagem da via para Lisboa contornando este obstáculo natural.

No período romano este braço de mar era navegável, entrando bem para o interior, sendo possível estimar a antiga linha de costa pelos sítios romanos de Pederneira, Póvoa, Cós, Maiorga, Fervença, Parreitas, Cela Velha e Famalicão, rodeando a paleo-lagoa (Blot, 2003: 212-213).

Fig. 4 – Povoamento antigo em torno da paleo-lagoa da Pederneira (in Alarcão, 2008, fig. 3)

A via continuava até Alfeizerão (miliário de Adriano), onde temos novamente vestígios de um possível vicus portuário no sítio das Ramalheiras, sobranceiro à paleo-baía de São Martinho do Porto (Blot, 2003, 217-218) . Logo depois atingia Eburobrittium (actual Óbidos), cuja localização apenas foi confirmada em 2008 em resultado da construção da auto-estrada A8. De facto, no sopé da vila medieval, surgiram abundantes vestígios de um vicus portuário no limite da zona inundável da Lagoa de Óbidos que pela sua posição deverá corresponder à enigmática Eburobrittium referida por Plínio e no epitáfio de um duúnviro Eborobritiensis chamado Maximino, que apareceu na Igreja Paroquial de Ns. de Aboboriz em Amoreira de Óbidos (AE 1936, 106).

Aliás, o povoado romano terá crescido em torno da actividade comercial deste porto que apesar de estar bem para o interior tinha acesso facilitado à rota oceânica através deste braço de mar (Blot, 2003, 220-223). O progressivo assoreamento da lagoa durante a Idade Média e a consequente inutilização deste acesso terá ditado o seu posterior declínio, cristalizando no tempo a antiga povoação medieval no cimo do morro de Óbidos que hoje conhecemos. Daqui a estrada seguia até Lisboa, povoado que pela sua posição absolutamente estratégica na desembocadura do rio Tejo, oferecia um porto abrigado na base do morro onde hoje assenta o Castelo de São Jorge.

Em síntese, estas estradas tocavam em pontos-chave de acesso aos principais portos marítimos permitindo a formação de uma rede de rotas comerciais na antiguidade. Este modelo repete-se a sul do Tejo, com as ligações viárias aos importantes portos do estuário do Sado, Caetobriga (Setúbal) e Salacia (Alcácer do Sal) (Mantas. 2010: 205) . Enquanto o primeiro está localizado na foz do rio Sado (tendo defronte a importante fábrica de salga de peixe da então ilha de Troia), o segundo encontra-se bem mais para o interior (a cerca de 30 km), aproveitando a navegabilidade do rio Sado até Alcácer do Sal (Blot, 2003, 259-269).

A antiga Salacia manteve o seu carácter de urbe portuária até à Idade Média, mas o posterior declínio desta rota fluvial poderá estar relacionada com a diminuição das condições de navegabilidade do rio como se verifica atualmente. A povoação mantém no entanto o importante papel de nó viário até à atualidade (e.g. local de passagem da auto-estrada para o Algarve), constituindo uma das principais portas de acesso às regiões do Alentejo e Algarve. De facto, do porto de Salacia partiam três importantes eixos viários, um ligando ao porto de Lisboa, outro ao porto de Mértola (via Beja), outro para Mérida (capital da Lusitânia, via Évora) e, finalmente, a rota para sul rumo ao Algarve.

Fig. 5 – Portos e rede viária no estuário do rio Sado

Destaque para a estrada para o Algarve que servia também os ancoradouros ao longo da costa alentejana. O trajecto desta via antiga partia de Alcácer do Sal em direcção a Alvalade, Garvão e Castro da Cola, rumo a Faro. No nó viário de Alvalade, a via cruzava uma outra via que corria transversal a esta e que ligava o porto marítimo de Sines ao porto fluvial de Mértola, estrada que passa na cidade romana de Mirobriga (c. Santiago de Cacém). O achado de âncoras romanas e outros vestígios na área de Sines atestam uma importante actividade deste porto comercial em período romano (Blot, 2003, 269-272), explicando a grande prosperidade atingida pela urbe romana ainda hoje visível através das suas estruturas monumentais ainda subsistentes.

Além do eixo principal para o Algarve rumo a Faro, parece existir uma variante desta estrada correndo mais próximo do litoral passando por Miróbriga rumo ao Cabo de São Vicente no barlavento algarvio. O trajecto inicial entre Alcácer do Sal e Grândola poderia ser por via fluvial, dado que a área é ainda hoje ocupada por vastas formações arenosas sem qualquer vestígio de povoamento romano. No centro de Grândola existem importantes vestígios de um grande estabelecimento romano que poderia servir esta rota. Ao longo do seu percurso, a via passava próximo dos diversos fundeadouros dispostos ao longo da Costa Alentejana, nomeadamente em Vila Nova de Mil Fontes, Sines, Porto Covo e Ilha do Pessegueiro, tocando depois nos portos fluviais de Odemira, Odeceixe e Aljezur até atingir a costa virada a sul.

As principais rotas comerciais na costa ocidental portuguesa eram suportadas numa eficaz articulação entre portos e rede viária. Alguns destes portos permanecem ainda hoje com grande vitalidade económica, como são os casos dos portos de Lisboa, Porto, Setúbal e Sines, no entanto, outros acabaram por perder a sua pujança económica em resultado destas sucessivas alterações da orla costeira que levaram à inutilização dos seus portos e consequente declínio económico.

Bibliografia:
ALARCÃO, J. de (2004) – “In territorio Colimbrie: lugares velhos (e alguns deles, deslembrados) do Mondego”. Trabalhos de Arqueologia. N° 38. Lisboa: IPA.
ALARCÃO , J. de (2008) – “Notas de arqueologia, epigrafia e toponímia V“. In RPA 11, 103-121.
ALVES, J.F.; DIAS, E.B. (2001) – “O fio de água : o Porto e as obras portuárias (Douro-Leixões)” Revista da FLUP, III Série, Vol. 2, 93-106.
BLOT, M. (2003) – “Os portos na origem dos centros urbanos”. Lisboa: IPA, Trabalhos de Arqueologia, 46.
MANTAS, V. G. (2010) – “Atlântico e Mediterrâneo nos portos romanos do Sado”. Coimbra: Revista Portuguesa de História, 41. 195-221
SARRAZOLA, A. (2003).- “Tentativa de enquadramento histórico dos contextos de abandono da Marinha Baixa/Torre (Cacia, Aveiro) – séc. V-VI”. Era Arqueologia 5: 150-163.

Parte 6 || Cale

Concluímos esta viagem pelo Itinerário XVI com algumas notas sobre a sua passagem por Cale, estação seguramente associada à travessia do rio Douro, apesar de permanecer a dúvida na sua exacta localização, oscilando entre os dois povoados proto-históricos que dominavam esta passagem, ou seja, o Morro da Pena Ventosa (Sé) e o Castelo de Gaia, dúvida que, no entanto, não afecta a contagem miliária que segundo o Itinerário era a seguinte:

Langobriga
Cale m.p. XIII
Bracara m.p. XXXV

Como referido no artigo anterior, a distância de 13 milhas de Langobriga a Cale é coerente com o percurso entre Vendas Novas (Fiães/Castro Redondo) e o Douro, seguindo paralela ou coincidente com a EN1, que em muitas troços ainda é designada por “Rua da Via Romana”. O trajecto fazia-se (e faz-se) por Vergada, Picoto, Vendas de Grijó (8 m.p.), Carvalhos (6 m.p.), Canelas (4 m.p.), Santo Ovídio (2 m.p.), Jardim de Soares dos Reis (1 m.p.) e finalmente, descendo talvez pela Rua Direita, atingia o cais de Gaia.

Fig. 1 – Via Langobriga – Cale com estação a 8 milhas do Douro

Depois de cruzar o rio, a via dirigia-se para Bracara, seguindo aproximadamente a rota da EN14, percorrendo cerca de 35 milhas, tal como indicado no Itinerário, trajecto já analisado em artigo anterior. A parte inicial do percurso continua em utilização como ruas da cidade. Partindo da Porta do Olival, junto do Jardim da Cordoaria, seguia pela lateral do edifício da Universidade do Porto, antiga «Calçada dos Órfans» e actual Rua Dr. Ferreira da Silva, cortava a Praça dos Leões em direcção ao Largo do Moinho de Vento, continuava pela Rua Mártires da Liberdade até à Praça da República e daqui pela Rua Antero de Quental rumo à travessia do rio Leça na Ponte da Pedra (São Mamede de Infesta). Daqui seguia para a travessia do rio Ave na Trofa, passando em Pinta (Maia) e Forca (8 m.p.), percurso recentemente (re)confirmado pelo descoberta de um miliário numa casa do lugar da Barca, indicando precisamente 27 milhas a Braga, ou seja, oito milhas a Cale.

Fig. 2 – Rede viária a norte do rio Douro com pontos focais Cale e Bracara Augusta.

Do mesmo modo, os trajectos das outras vias que partiam de Cale continuam em utilização pelos séculos seguintes, sendo progressivamente absorvidos pela expansão urbana da cidade. Apesar de estas vias não serem mencionados nos Itinerários de Antonino e da ausência de miliários, não há qualquer dúvida sobre a sua utilização já nesse período (e mesmo em períodos anteriores), formando a rede principal de estradas que partiam de Cale.

Uma destas vias é designada na documentação medieval por «karraria vetera», «via publica» e «estrada mourisca» em diferentes pontos do seu percurso e que hoje está assinalado como «Caminho de Santiago». Partindo do mesmo local da estrada para Braga, Campo do Olival, seguia pela Rua de Cedofeita (antiga «Cacarreira») até ao Padrão da Légua (4 m.p.), e daqui à Ponte Romana de Barreiros sobre o Leça (Maia).

Daqui poderia ligar por uma ramal ao nó viário da Forca (8 m.p.) na via para Bracara (onde apareceu miliário), mas é provável que a «karraria» seguisse para noroeste por Vilar do Pinheiro e pela base do Castro de Boi (15 m.p.), rumo à travessia do rio Ave junto do Castro de Santagões.

Daqui seguia para a Igreja de São Pedro de Rates (23 m.p.), provável estação viária onde a via bifurcava em dois trajectos, um seguindo para noroeste rumo à travessia do rio Cávado na Barca do Lago (ligando a Viana do Castelo), e outro seguia para nordeste rumo à travessia do mesmo rio em Barcelos (o chamado «Caminho de Santiago Central»), continuando depois até Ponte de Lima. (ver https://viasromanas.pt/#porto_barcelos).

Admite-se uma variante a este trajecto mais próxima do litoral, desviando da «karraria vetera» no Padrão da Légua, seguindo na direcção do Castro de São João em Vila do Conde, local de cruzamento do rio Ave. Daqui seguia próximo dos castros de Terroso e Laúndos rumo à travessia do rio Cávado na Barca do Lago, reunindo com a «karraria» cerca de três milhas antes de atingir esta passagem. (ver viasromanas.pt/#porto_caminha).

As restantes vias seguiam na direcção nordeste. A primeira delas partia de Cale rumo a Guimarães, seguindo junto do Castro de Águas Santas (6 m.p.), Castro do Monte Padrão (18 m.p.), Citânia de Sanfins (22 m.p.) e Castro da Polvoreira/ Santo Amaro (30 m.p.). (ver viasromanas.pt/#via_vimaranes).

A segunda via para nordeste, ligava Cale a Tongóbriga, seguindo próximo do Castro de Vandoma (15 m.p.) e do Castro de Quires (26 m.p.), de onde descia à travessia do rio Tâmega, a trinta milhas de Cale. Daqui ascendia por Marco de Canaveses à cidade romana de Tongóbriga, da qual subsistem importantes vestígios, mas como vimos ao longo do Itinerário XVI, assenta ela própria sobre um antigo povoado da Idade do Ferro do qual teria herdado o nome.

A parte inicial do trajecto desta via subsiste ainda hoje, partindo da antiga Porta de Vandoma e seguindo pela Rua Cimo de Vila, percursos que mantém a tipologia antiga, ascendendo a ladeira por patamares suaves até à actual Praça da Batalha. Daqui seguia por St. Ildefonso, Bonfim (1 m.p.), Corujeira/ Campanhã (2 m.p.), São Roque da Lameira (3 m.p.), continuando pelos topónimos viários, Cavada, Ferraria, Carreira e Vale de Ferreiro até Valongo, provável estação viária a oito milhas de Cale, relacionada com a exploração mineira identificada nas proximidades. (ver viasromanas.pt/#porto_freixo)

Notar que esta distância de oito milhas à primeira estação já tinha sido identificada nas outras vias que partiam de Cale, nomeadamente em Vendas de Grijó e Barca, sugerindo que o seu estabelecimento não foi arbitrário. Notar também a grande resiliência destes trajectos apesar das enormes transformações sofridas pela cidade nos últimos séculos.

Fig. 3 – Vias antigas na actual área urbana da cidade do Porto.

Na ausência de factores externos como terramotos ou grandes planos urbanísticos (felizmente) as principais vias que partiam da cidade do Porto acabaram por permanecer em utilização até aos nossos dias. Seria interessante um dia fazer um roteiro destas vias pela cidade.

Com este artigo sobre Cale termina esta série de seis artigos sobre o itinerário de Olisipo a Bracara ou Itinerário XVI. No próximo post será abordada a problemática das alterações da orla costeira e as suas implicações na rede viária antiga.