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O Itinerário XX ‘per loca maritima’ por Santiago de Compostela

O chamado Itinerário XX de Antonino (dita Via XX) faz todo o seu percurso em território espanhol e por isso nunca foi abordado em detalhe no site viasromanas.pt, limitando-se a apresentar algumas das propostas recolhidas na bibliografia existente, em si bastante divergente (Maside, 2001; Vila Goméz, 2005). No entanto, na sequência do publicação da proposta completa de traçado do Itinerário XIX que ligava Braga a Lugo por Ponte de Lima e Tui (ver aqui postO Itinerário XVIII Bracara-Asturica pela Serra do Gerês‘), foi possível rever os dados disponíveis sobre esta variante também de Braga a Lugo, mas cognominada de ‘per loca maritima‘, algo como “por locais marítimos”. Com efeito, ao contrário daquele, a parte inicial do Itinerário XX segue um trajecto marítimo ao longo da costa galega, atendendo ao facto de as distâncias intermédias serem indicadas em estádios (um estádio = cerca de 185 m ou 1/8 da milha) , unidade habitualmente utilizada em itinerários marítimos ou fluviais.

A seguir apresenta-se uma nova proposta de traçado para este itinerário, em total consonância com as distâncias indicadas nos códices medievais do Itinerário de Antonino, assim como propostas inéditas de localização das estações intermédias, com destaque para a elusiva Brigantium, tradicionalmente associada à Coruña sem qualquer suporte factual, e que, segundo o trajecto seguido, estaria na área da actual povoação de Foro (Boimorto). A segunda estação referida é Caranico, presumivelmente localizada junto da Igreja de Santa Maria de Ramellle (Friol).

O Itinerário XX nos códices medievais

Códice Florentinus Laurentianus – Plutei 89, 67 (séc. X) – Biblioteca. Medicea Laurenziana
https://tecabml.contentdm.oclc.org/digital/collection/plutei/id/1086405/rec/3815

(Esq.) Códice Parisinus Regius 4808, f. 44v (séc. XII) – Bibliothèque Nationale de France
https://gallica.bnf.fr/ark:/12148/btv1b10546166w/f96.item
(Dir.) Códice Florentinus Laurentianus – Plutei 89, 68 (séc. XV) – Biblioteca. Medicea Laurenziana
https://tecabml.contentdm.oclc.org/digital/collection/plutei/id/909208/rec/3816

A localização de Aquis Celenis ou Quecelenis
A parte do Itinerário em território português entre Braga e a primeira estação referida no Itinerário, Aquis Celenis, tem suscitado muitas dúvidas, com diversos autores a proporem um rota terrestre alternativa à via Braga – Ponte de Lima – Tui, partindo de Braga rumo ao litoral, rumo a Esposense ou a Caminha. No entanto, é mais plausível que este itinerário siga o mesmo traçado do Itinerário XIX até Tui, simplesmente omitindo as duas primeiras estações, Limia e Tudae. Assim, os primeiros 165 estádios (cerca de 30 km) medidos a Aquis Celenis seriam referentes à rota fluvial através do rio Minho entre Tui e a sua foz em Caminha, um percurso que de facto ronda os 30 km ou 20 milhas (Crespán, 2015 e 2016).

Também a grafia desta estação é muito duvidosa dado que o mesmo topónimo surge também na Itinerário XIX , mas localizado muito mais a norte, presumivelmente em Caldas dos Reis (Pontevedra). Assim é mais provável que sejam diferentes estações, uma localizada na foz do Minho (a do Itinerário XX) e outra em Caldas dos Reis (a do Itinerário XIX).

Nesta discussão, importa recuperar o topónimo ‘Quecelenis‘ referido na geografia do Anónimo de Ravena, na mesma sequência de Tui, e que poderá ser a verdadeira designação desta estação na foz do Minho. A ser assim, o povoado de Quecelenis poderia corresponder ao Castro de Santa Tecla, ou ao respectivo porto marítimo na foz do rio Minho. Com efeito, Estrabão refere que “diante da sua embocadura situam-se uma ilha e dois quebra-mares com ancoradouros” (Deserto e Pereira, 2016) que poderá ser identificada com a pequena ilha onde assenta o Forte da Ínsua .

Representação dos Itinerários XIX e XX de Antonino (‘Mapa de Vias’ – Ver. 5.8, Junho 2024)

Itinerário de Aquis Celenis/Quecelenis a Santiago de Compostela
A rota continua para norte fazendo um périplo pelos portos da costa Galega rumo a Santiago de Compostela. Aliás, esta foi a rota utilizada pela barca que transportou o Apóstolo até Compostela, denunciando a manutenção deste percurso durante esse período. Inicialmente percorre 195 estádios (cerca de 35,8 km) até Vico Spacorum, distância que coloca esta paragem no acesso à ria de Vigo.

O topónimo Vico poderá ter relação com o Castro de Vigo, mas este localiza-se no interior da ria. Assim, Vico Spacorum poderá referir um local à entrada da ria, podendo este ser identificado com o sítio romano de Toralla. Aqui subsistem importantes vestígios de uma villa monumental, com um complexo sistema termal, portanto, compatível com uma estação viária. Aliás, o topónimo pode ser desdobrado em ‘spa-corum‘ (no sentido de ‘águas termais de Corum’), o que permite estabelecer uma relação com as termas ali existentes

Percorrendo mais 150 estádios (cerca de 27,5 km) atingia Ad Duos Pontes (literalmente ‘junto das duas pontes’) que poderá localizar-se no castro marítimo de Lanzada (Noalla), cuja ocupação remonta ao Bronze Final. Daqui penetrava na ria de Arousa, a maior das rias da Galiza rumo a Santiago de Compostela. Uma ara votiva encontrada em Lugo é dedicada à divindade Lucobo Arousa(ega) evidencia a relevância deste canal de penetração ao interior na Galiza através da ria de Arousa.

Entrando pela ria adentro, seguia para o porto romano do Adro Vello (Praia do Carreiro, Grove); ara aos lares viales), daqui seguia até à margem do castro marítimo de Vistalegre (Vilagarcia de Arousa; inscrição a Neptuno), percorrendo 180 estádios (cerca de 33 km) até ao porto de Grandimiro (Grandimuro ou Glandimiro), presumivelmente localizado na área da Cabo do Cepo em Quintáns, na base do Castro das Cercas.

A partir daqui o Itinerário XX passa a indicar as distância em milhas, sinal de que o percurso continuava por via terrestre, percorrendo as 22 milhas indicadas rumo à estação de Trigundo, seguindo pela margem direita do rio Ulla por Torres do Oeste (outra ara aos lares viales), Bexo e Tallós até Padrón, reunindo com o Itinerário XIX. Neste último local, dentro da Capela de Santiago, existe uma ara dedicada a Neptuno pelos Corienses (CIL II 2540) que a lenda diz ser a pedra onde foi amarrada a barca do Apóstolo Santiago, sugerindo assim que a barca poderia ter chegado até aqui através dos rios Ulla e Sar. O destino final do Apóstolo seria a estação viária de Trigundo, conforme é designada no Itinerário XX

Santiago de Compostela assenta assim num importante nó viário que estrutura a rede de vias antigas desta parte da Galiza, na confluência dos Itinerários XIX e XX e articulando estes coma as ligações à Coruña e a Lugo. Mais uma vez salta à vista a grande perenidade destas estações viárias antigas, na estruturação do mundo medieval, escolhendo como destino final para o corpo do Apóstolo uma estação romana situada num ponto absolutamente estratégico da rede viária regional, facilitando assim o acesso dos peregrinos vindos de todas as direcções.

Itinerário de Santiago de Compostela (Trigundo) a Lugo (Lucus Augusti)
Se até aqui a rota do itinerário é relativamente consensual (apesar das grandes divergências entre autores na localização das respectivas estações), o mesmo não se pode dizer das restantes etapas até Lugo. Com efeito, a maioria dos investigadores prolonga a rota do Itinerário XX por Arzúa e Vilamaior de Negral rumo a Lugo, via que de facto existe, mas que seria antes o trajecto descrito no Itinerário XIX. Assim, o Itinerário XX deveria seguir por uma variante norte, seguindo por Boimorto e Friol, locais onde apareceram miliários (Monteagudo, 1981; Gesto et al, 1997) .

Este trajecto deriva logo depois de Santiago de Compostela (San Marcos), seguindo junto da Capela da Agra de Santiso (provável mutatio; duas aras dedicadas aos lares viales e outras inscrições; Peréz Losada, 1988) e San Gregório, em direcção a Boimorto (miliário de Maximino, actualmente defronte da Casa do Concello; Monteagudo, 1981; Peréz Losada, 1988), continuando daqui até Foro, povoação que está a 30 milhas de Santiago, e onde se regista os topónimos viários Hospital e Mesón. Ora, esta distância acerta com a estação de Brigantium, sendo que nas proximidades regista-se o lugar de Arentia (Fonte e Capela de San Cidre/San Vitorio), divindade com mais expressão na Lusitânia (Castelo Branco e Estremadura espanhola), sinal de que por aqui passavam viandantes de outras paragens.

A partir de Foro (=Brigantium), a via deveria continuar para norte passando no acampamento romano de Ciadella (Cohors I Celtiberorum ), porém o Itinerário inflecte para nascente rumo a Lugo, seguindo junto do Mosteiro de Sobrado em direcção a Friol. Próximo desta última povoação (actual sede concelhia) assentaria a estação de Caranico, dado que este local se encontra a 18 milhas de Foro e a 17 milhas de Lugo, ou seja, as distâncias intermédias indicadas no Itinerário. Ora, segundo a contagem miliária, a estação estaria na área da Igreja de Santa Maria de Ramelle, cerca de duas milhas antes de atingir Friol. Daqui seguia pelo Monte Lodoso, onde apareceu um miliário indicando 13 milhas a Lugo (Gesto et al, 1997). Daqui segue por Guldriz de Abaixo, Ermida de Santa Marta, Locai e Astariz, atingia Lugo. O ponto de reunião com a variante sul (Itinerário XIX) seria junto do cruzamento da ribeira de Louzaneta em Areeiras (a última milha), seguindo depois a chamada ‘Estrada Vella de Santiago’ até à ponte romana de Lugo .

Com a publicação desta proposta de trajecto para o Itinerário XX fica finalmente completa a descrição de todos os Itinerários de Antonino no actual território português, fechando assim um ciclo de estudos iniciados por mera brincadeira no já longínquo ano de 2004!


Bibliografia

CRESPÁN, César González (2015). Parte de la vía romana nº XX “per loca maritima” iba por el mar.
CRESPÁN, César M. González (2016). Nueva interpretación de la vía romana nº XX “per loca maritima. Glaucopis, Boletín do Instituto de Estudos Viguenses, Vigo, Ano XXI, Nº 21.
DESERTO, Jorge; PEREIRA, Susana (2016). Estrabão, Geografia. Livro III: introdução, tradução do grego e notas. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra.
GESTO, J.M.C. et al. (1997). El Miliario de Friol: aportaciones al conocimiento de la Vía XIX. Boletín do Museo Provincial de Lugo, 8, 1-18
MASIDE, Rosa M. F. (2001). Vía per loca maritima: un estudio sobre vías romanas en la mitad noroccidental de Galicia. Gallaecia, 20, 217-248.
MONTEAGUDO, L. (1981). Miliario romano de Boimorto. El Correo Gallego, 19-IV, 14-15.
PÉREZ LOSADA, F. (1988). Vías romanas nos concellos do Pino e Boimorto (A Coruña, Galicia). Vestixios arqueolóxicos e posible trazado. Porto: Trabalhos de Antropologia e Etnologia, XXVIII.
VILA GÓMEZ, J. (2005). Vías romanas de la actual provincia de Lugo. Tese Doutoral. Universidad de Santiago de Compostela.

O Itinerário XIX de Braga a Astorga

Em Março de 2024 foi publicada uma proposta de percurso detalhada desta rota que partia de Braga rumo a Lugo, passando em Ponte de Lima, Tui e Pontevedra, inflectindo depois para nascente rumo a Astorga. O seu trajecto continua a não ser consensual, mas esta proposta inédita tenta adequar as distâncias indicadas no itinerário aos valores obtidos no terreno. Assim, este post visa acima de tudo assinalar e justificar essas diferenças, que resultam da proposta de traçado agora apresentado, enquanto o o seu detalhe está descrito no site viasomanas.pt (ver #braga_tui ).

A necessidade destas correções radica no facto de a soma das distâncias intermédias não permitir chegar a Lugo. Em resultado dessa incongruência, vários investigadores, como por exemplo Rodriguez Colmenero, propõem um percurso mais directo a Lugo a partir de Iria Flaviae, tentando interligar alguns miliários dispersos por esta região mais interior (nomeadamente em Sales, Seteigrexas e Entrambasaguas). No entanto, não parece haver viabilidade neste traçado, para além da evidente continuidade do percurso para norte até Santiago de Compostela, o nó viário mais importante neste território.

A ser assim, a rota proposta segue até Santiago, e depois tomava a via Santiago-Lugo por Arzúa (actual ‘Caminho de Santiago’) , traçado habitualmente atribuído a outra rota também mencionada no Itinerário, a chamada Via XX per loca maritima, mas que será na verdade a rota seguida por este Itinerário.

As primeiras estações são relativamente consensuais entre os investigadores, mas a partir de Tui as divergências acentuam-se. O primeiro problema parece estar na distância indicada a Aquis Celenis que, apesar de consensualmente localizada em Caldas dos Reis, não acerta com a soma das distâncias intermédias (16 + 16 + 24 = 56) do trajecto até Tui que ronda as 50 milhas.

O mesmo acontece nas etapas seguintes pois, como referido atrás, há claramente um défice de milhas no trajecto de Aquis Celenis a Lucus Augusti, criando incertezas sobre a localização das estações intermédias, em particular Assegonia, para a qual ainda não se encontrou uma solução satisfatória. No entanto, com base em critérios geográficos, é possível que esta estivesse localizada um pouco a nordeste de Santiago de Composta, já na via para Lugo, sendo que a contagem miliária aponta para a sua localização junto da travessia do rio Sionlla em Lavacolla.

Item a BRACARA ASTURICAM
LIMIA m.p. XVIIII (Ponte de Lima)
TUDAE m.p. XXIIII (Tui)
BURBIDA
m.p. XVI (Santiaguinho de Antas)
TUROQUA
m.p. XVI (Pontevedra)
AQUIS CELENIS
m.p. XXIIII (Caldas dos Reis) -> XIIII
TRIA
m.p. XII (Iria Flaviae)
ASSEGONIA m.p. XIII (Lavacolla?) -> XVIII
BREVIS m.p. XXII (Boente)
MARCIE
m.p. XX (Vilamaior de Negral)
LUGO AUGUSTI
(Lugo) m.p. XIII
TIMALINO
m.p. XXII (Baralla)
PONTE NEVIAE
m.p. XII (Ponte de Navia)
UTTARIS m.p. XX (Ruitelán) -> XVIII
BERGIDO (Ventosa) m.p. XVI
INTERAMNIO FLUVIO (Bembibre) m.p. XX
ASTURICA (Astorga) m.p. XXX


A primeira correcção tem que ver com as 24 milhas indicadas entre Turoqua e Aquis Celenis, quando as suas presumíveis localizações (Pontevedra e Caldas dos Reis, respectivamente) estão separadas por apenas cerca de 14 milhas. Neste caso poderá ter havido troca entre os numerais «XXIIII» e «XIIII». A ser assim, a estação de Burbida estaria de facto a 16 milhas de Tui,
como indicado no Itinerário, o que coloca esta estação num local hoje designado por Santiaguiño de Antas, onde existia um miliário à margem da via.

O miliário de Santiaguiño das Antas (presumível localização de Burbida) ainda in situ junto à via.

Também a grafia da estação seguinte, TRIA, é duvidosa, devendo ser corrigida para IRIA, ou seja, a estação de Iria Flaviae, localizada a norte de Padrón. As 12 milhas indicadas a Aquis Celenis acertam com a distância daqui a Caldas dos Reis pelo que este valor deverá estar correcto.

A segunda correção proposta é na etapa entre Iria e Assegonia. Tudo indica que a via continua para norte rumo a Santiago de Compostela, importante nó viário onde haveria estação viária. A sua possível associação a Assegonia (também nas variantes Asseconia, Aseconia e Ascionia) é corroborada pela distância indicada no I.A. de 13 milhas, no entanto, os valores indicadas para a restantes etapas até Lugo (cerca de 68 milhas), Brevis e Marcie, são insuficientes para cumprir a distância que separa Compostela de Lugo (cerca de 73 milhas), restando portanto 5 milhas. Ora acrescentando este valor em falta à etapa de Iria Flaviae a Assegonia obtemos o valor de 18 milhas, colocando esta estação junto da travessia do rio Sionlla em Lavacolla. Ora, este local surge também na variante «Sioña», topónimo que permite estabelecer uma relação com o nome da estação romana, em particular na variante Ascionia.

Naturalmente que o erro poderá estar nas outras etapas, mas o registo arqueológico aponta para valores correctos no caso de Brevis e Marcie, com a primeira localizada em Boente (ara a Júpiter), entre Arzúa e Mélide, e segunda junto do cruzamento do rio Gamoira em Vilamaior de Negral, seguindo daqui até Lugo (trajecto que é assinalado por miliários em Retorta, Bacurín e Vilaestévez). A ser assim, a distância de Iria a Assegonia, deverá ser corrigida para 18 milhas. Neste caso poderá ter havido confusão entre os numerais «XIII» e «XVIII», novamente um erro bastante plausível.

Finalmente, a terceira correção proposta refere-se ao troço entre Lugo e Astorga, onde a única estação com localização segura é Bergido, identificada com o Castro Ventosa, em Cacabelos. Neste caso, a soma dos valores indicados no I.A. (70 milhas) é um valor excessivo face às cerca de 66 milhas medidas no terreno. As primeiras estações parecem correctas, com Timalino a 22 milhas de Lugo, colocando esta estação no local de cruzamento do rio Neira em Baralla (com miliários em Arxemil, Castrillón e Franqueán) e Ponte Neviae associada à travessia do rio Navia, em As Nogais.

O problema parece estar na distância de 20 milhas indicada na etapa Ponte NeviaeUttaris. Dado que a distância total medida no troço entre Ponte Neviae e Bergido é de 32 milhas, seria mais lógico que a estação estivesse a meio percurso, ou seja, a 16 milhas de ambas (aqui poderá ter havido novo erro de transcrição, trocando os numerais «XX» e «XVI»). A ser assim, as quatro milhas em excesso poderiam estar na etapa até Uttaris, que estaria, portanto, não a 20, mas a 16 milhas, o que coloca esta estação junto da Capela de Ruitelán, muito próximo de uma passagem incontornável desta rota para Lugo, a Portela de Valcarce.

A parte final do Itinerário a partir de Bergido é comum ao Itinerário XVIII (ou #via_nova), seguindo por Bembibre (Interamnio Fluvio) rumo a Astorga. Fica assim traçada a possível rota deste itinerário deste Braga até Astorga com acerto da contagem miliária do Itinerário, admitindo as correções propostas. Esta grande rota utiliza várias vias independentes: inicialmente segue a via sul-norte que liga Braga a Santiago, depois inflectia para nascente tomando a via de Santiago a Lugo, e daqui seguia para Astorga pelo grande eixo viário proveniente do porto da Coruña. A cartografia destas rotas em território Galego passa a estar representada no «Mapa de Vias» a partir da versão 5.7. 


Bibliografia:
ABASCAL, J.M. (2020). Miliarios romanos de la provincia de Pontevedra (Hispania citerior). Anuario Brigantino, n. 43, 47-86
RODRÍGUEZ COLMENERO, A. et al. (2004). Miliarios e outras inscricións viarias romanas no noroeste hispánico. Lugo: Consello da Cultura Galega.
VILA GÓMEZ, J. (2005). Vías romanas de la actual provincia de Lugo. Tese Doutoral. Universidad de Santiago de Compostela.

Rede viária entre Douro e Vouga

Fig. 1 – A rede viária antiga na região litoral entre Douro e Vouga (actualização 2024)

A recente revisão do trajecto do Itinerário XVI entre Lisboa e Porto que tem vindo a ser publicada em artigos recentes evidencia finalmente um acerto total do percurso com a contagem miliária. Daqui resultam as propostas de identificação das estações mais problemáticas referidas nesta rota, no caso, as estações de Ierabriga, Seilium e Talabriga, cuja localização continua em discussão, mas que segundo este estudo seriam identificadas respectivamente com os povoados proto-históricos do Monte dos Castelinhos (Castanheira do Ribatejo), Castro de Ceras (Tomar) e Castro da Ns. do Socorro (Albergaria-a-Velha). 

A solidificação do percurso proposto e coerência com a contagem miliária permite identificar os possíveis locais de cruzamento com outras vias, ditas secundárias. Em resultado desta análise, foi possível definir melhor o traçado das variantes e vias transversais a este eixo norte-sul que funcionava (e funciona ainda hoje), como coluna vertebral de toda a rede viária do litoral português. Em artigos anteriores referiu-se o caso da via transversal por Alenquer e da chamada Via Colimbriana, variante da rota XVI que partia também de Coimbra rumo ao Tejo, mas que seguia por uma trajecto alternativo (“saltando” Conímbriga), passando em Penela, Ansião e Fungalvaz, reunindo com o eixo principal a sul de Tomar, logo após esta cruzar o rio Nabão.

O mesmo se passou na região entre Vouga e Douro, onde as dúvidas eram muitas devido à incoerência com as distância indicadas nos roteiros romanos (possivelmente um erro), como discutido neste anterior post. Com a fixação da nova proposta de trajecto passando junto do Castro da Ns. do Socorro (Talábriga, segundo a contagem miliária), o traçado mais lógico seria este continuar directo ao Castro de Lações, actualmente ocupado pelo Santuário da Sra. de La-Salette (ver novo itinerário aqui #lacoes), dado que a sua passagem junto do Castro de Úl obrigaria a um desvio desnecessário e à difícil travessia do rio Úl na base do castro quando existem trajectos mais facilitados, tal como aquele posteriormente seguido pela Estrada Real passando por Travanca. Ora, então como explicar o achado de um miliário na Igreja Paroquial de Úl?

Dada a extrema raridade de miliários neste eixo (facto que não deve desvalorizar a importância desta rota desde a antiguidade), e o facto do exemplar de Úl indicar 12 milhas, valor que se ajusta à distância entre Úl e a próxima estação mencionada nos itinerários, Langobriga, cuja identificação com o Castro de Monte Redondo em Fiães (Almeida e Santos, 1971) não sofre actualmente qualquer contestação, justificava a sua inclusão neste trajecto . Deste modo este testemunho viário foi sempre associado (e diga-se, com a toda a lógica) ao trajecto principal rumo a Lisboa, dado se encontrar no alinhamento deste eixo viário (Almeida, 1956).

No entanto, o relativo afastamento da rota principal permite equacionar uma outra explicação, a possibilidade de este marco assinalar não a via para Lisboa mas um ramal desta estrada rumo ao litoral que partia do Castro de Lações para sudoeste, cruzando Oliveira de Azeméis rumo a Úl . Deste modo, estaria explicado o facto de o segundo miliário ter sido encontrado em Adães, na outra margem do rio Antuã, junto da Igreja de Ns. de Febres, que se encontra precisamente a uma milha da Igreja de Úl (e a quatro milhas de Lações). Daqui a via um percurso sensivelmente paralelo ao rio Antuã até às proximidades do Castro de Salreu.

Pouco antes de atingir a actual povoação de Salreu, junto a Santo Amaro, confluía na chamada via litoral que liga Porto a Estarreja (rota da actual EN109), seguindo até à Capela da Ns. da Luz, local a 10 milhas de Úl e 32 milhas de Cale. Seguia depois por esta última cruzando o rio Antuã na base do Castro de Salreu, continuando por Canelas até Roxico, local fulcral da rede viária dado que se encontra a 15 milhas do Castro de Lações (e a 40 milhas de Cale), mas em particular porque se encontra a 12 milhas da Igreja de Úl que é a distância indicada no miliário ali encontrado.

A ser assim, indicaria a distância entre a travessia do rio Antuã e a área de Roxico em Fermelã, possível deturpação do topónimo Rio Seco (Bastos, 2006) mencionado num documento de (PMH DC 557), podendo indicar a distância do Castro de Úl ao acesso ao mar. Toda esta área está muito alterada devido ao actual assoreamento da ria, mas é possível aqui este local estivesse sobre a orla do paleo-estuário do Vouga, até porque na outra margem temos evidência de actividade portuário no povoado da Torre da Marinha Baixa, também hoje bem afastado do mar (Sarrazola, 2003: 160). Apesar da aparente relevância viária deste local não são conhecidos vestígios romanos ou anteriores em toda esta vasta área. Daqui haveria ligação ao eixo principal para Lisboa, quer partindo de Roxico rumo a Albergaria-a-Velha, quer continuando a sua directriz para sul, seguindo pelo Cabeço de Angeja rumo a Serém de Cima, isto é, entroncando no eixo para Lisboa a uma milha do local de cruzamento do rio Vouga.

Em síntese, estas propostas configuram uma variante da rota principal para Lisboa que desviava logo após a travessia do rio Douro em Cale e que seguia mais próxima do litoral até ao paleo-estuário do Vouga (ver #cale_vouga). A esta rota confluía o referido ramal que partia do Castro de Lações também rumo ao Vouga (e ao comércio marítimo), passando por Úl. O restante trajecto para Cale não sofreu alterações de monta.

Por fim, o ramal que partia do Picôto (EN1) pelo Castelo da Feira (reunindo com o eixo principal na Ponte da Pica, pouco antes de atingir o Castro de Lações), tem afinal continuação para o Castro de Crestuma, onde havia cais fluvial durante o período romano, criando assim o itinerário #crestuma_pica . Cruzando o rio seguia por Esposade, Compostela, Foz do Sousa e Alto do Jovim, seguindo a rota da Estrada de Dom Miguel  até ao nó viário de Monte Alto em Valongo onde entronca na via Cale-Tongóbriga (ver #porto_freixo), a 10 milhas do rio Douro. Uma variante desta rota cruzava o rio Douro no cais de Arnelas reunindo com variante por Crestuma, evitando assim o cruzamento do rio Sousa .

Fica assim completo o panorama geral da rede viária entre Douro e Vouga, em particular com a publicação destas novas propostas viasromanas.pt e cartografia dos respectivos trajectos no novo Mapa de Vias (ver. 5.5, Janeiro de 2024). A escassez de dados arqueológicos, nomeadamente de carácter epigráfico, não permite ainda confirmar estas identificações das estações viárias, mas tem a virtude de apontar o nosso olhar para locais de particular relevância para a rede viária, como a referida ligação de Cale ao estuário do Vouga, e dos sucessivos ramais que ligavam ao eixo principal para Lisboa, interligando os sucessivos povoados proto-históricos dispostos ao longo deste percurso como Lações e Ns. do Socorro ao mar.

Eventualmente, o nó viário viário do Rio Seco seria apenas o cais de passagem para a outra margem do paleo-estuário, assim explicando a ausência neste local de vestígios relevantes, enquanto na outra margem temos abundantes vestígios de um povoado portuário romano da Torre em Cacia, nomeadamente evidência de um complexo industrial para a produção de vidro, lugar simbólico de uma região ainda hoje com um forte carácter industrial.

Janeiro 2024

Bibliografia:

ALMEIDA, C.A.F.; SANTOS, E. (1971) – “O Castro de Fiães”. Revista da Faculdade de Letras. Série de História. II., 147-168.
ALMEIDA, F. de (1956) – “Marcos miliários da via romana «Aeminium-Cale»”. OAP, 2ª Série, Vol. III, 111-116.
BASTOS, M. R. (2006). O baixo Vouga em tempos medievos: do preâmbulo da Monarquia aos finais do reinado de D. Dinis. Diss. de Doutoramento – Universidade Aberta.
OLIVEIRA, Pa. M. de (1943) – “De Talabriga a Lancobriga pela Via Militar Romana”. Arquivo do Distrito de Aveiro, Vol. IX.
SARRAZOLA, A. (2003).- “Tentativa de enquadramento histórico dos contextos de abandono da Marinha Baixa/Torre (Cacia, Aveiro) – séc. V-VI”. Era Arqueologia 5: 150-163.

Passagem por Tomar

Num artigo anterior referiram-se as dúvidas existentes sobre o verdadeiro trajecto da via Santarém-Coimbra na sua aproximação a Tomar. Equacionaram-se três possíveis rotas entre Golegã e Tomar. Uma rota seguia rumo a Paialvo e daqui, cruzando a ribeira de Beselga, seguia rumo a Tomar, sendo esta a representada no mapa publicado. A segunda possibilidade seria a via passar junto do miliário de Santa Catarina em Delongo, cruzando a ribeira de Beselga para Marmeleiro e daqui a Tomar. Por último, havia ainda a possibilidade de existir uma rota mais directa pela povoação de Asseiceira, seguindo depois a margem direita do Nabão até Tomar.

Qualquer destas hipóteses não diverge significativamente, seja em termos de distância percorrida, seja por obstáculos a vencer, seja pela quantidade de vestígios arqueológicos nas suas proximidades, tornando difícil optar por um destes traçados (Fig. 1). Nestes casos é necessário recorrer a um outro critério – a contagem miliária – que apesar de mais trabalhosa e demorada, tem permitido solucionar este tipo de problemas na identificação do trajecto.

Fig. 1 – As várias rotas possíveis na aproximação a Tomar

Com efeito, a identificação dos pontos onde as milhas seriam vencidas em cada uma das hipóteses, permitiu analisar e identificar qual dos trajectos está mais de acordo com essa contagem. Com efeito a hipótese por Delongo parece ser a única que permite acertar a contagem miliária a partir de Santarém, contando-se exactamente 34 milhas entre a travessia do rio Alviela na base do morro de Scallabis e o local de travessia do rio Nabão, junto à Igreja de Santa Maria do Olival em Tomar (Fig. 2).

Fig. 2 – A antiga proposta por Paialvo e, a azul, a nova proposta passando no miliário de Santa Catarina em Delongo (34 m.p.)

Deste modo, o miliário de Santa Catarina assinalava um ponto estratégico da rede viária, o ponto onde a via proveniente de Santarém bifurcava em duas grandes rotas alternativas rumo à travessia do rio Mondego em Coimbra. A primeira é referida no I.A., seguindo por Tomar, Ceras, Rego da Murta, Barqueiro, Aljazede e Conímbriga. A segunda rota seguia por Paialvo, Fungalvaz, Ansião, Penela e Aljazede até à estação viária de Eira Velha, continuando daqui para Coimbra.

Fig. 3 – Versão final após correcções.

Esta alteração do nó viário de Paialvo para Delongo tem também implicações na possível via que seguia para Tancos que, pelo alinhamento das ruas actuais, parece derivar também deste nó viário. Uma nova versão do mapa será publicada em breve com esta e outras correcções recentes, assim como a actualização das descrições destas rotas em viasromanas.pt

Travessias do Douro entre Régua e Numão

O acidentado terreno das margens do rio Douro não permite a circulação de carros paralelamente ao rio. Assim, por regra, todas as vias na região assumem uma orientação norte-sul, aproveitando as lombadas das encostas que caiem para o rio, e cruzando este (por barca), ascendia na outra margem por nova lombada rumo à zona planáltica.

A imperativa necessidade de cruzar este grande rio da Península, em conjunto com a sua orografia particularmente difícil, moldou uma densa rede de vias norte-sul com inúmeros pontos de travessia não muito distantes entre si. Muitos dos estudos sobre viação antiga no Douro ignoram esta regra, sugerindo ligações paralelas ao rio que apesar de parecerem lógicas no mapa são inviáveis no terreno, com fortes pendente e difíceis travessias dos seus afluentes que se precipitam encosta abaixo para o rio Douro.

Os principais pontos de passagem do rio estão razoavelmente identificados, mas subsistiam muitas dúvidas no troço do rio que medeia entre Peso da Régua e terras de Numão. Os achados arqueológicos e alguns troços de via antiga apontavam para alguns nós viários importantes como Moimenta da Beira, Paredes da Beira, Penedono e São João da Pesqueira. No entanto, os trajectos finais destas vias continuavam incertos tanto para norte como para sul do rio. Deste modo, os achados que apontavam para a existência de um vicus viarum em cada um destes nós, permaneciam descontextualizados do ponto de vista viário.

Uma via anteriormente identificada provinha de Chaves em direcção ao rio Douro passando na região mineira de Trêsminas e junto do Santuário de Panóias, cruzando o rio junto a Covelinhas. Seguia depois próximo do Castro de Goujoim rumo a Moimenta da Beira. Uma derivação desta estrada desviava em Campo de Jales para sudeste por Alto do Pópulo rumo à travessia do rio Tua junto das Caldas de Carlão. Daqui seguia para a travessia do Douro junto do povoado mineiro da Senhora da Ribeira, cruzando depois o território de Numão.

Havia suspeitas da existência de outras vias no espaço que medeia entre Covelinhas e Numão, nomeadamente a via que cruzava Paredes da Beira no concelho de São João da Pesqueira (onde se regista um povoado romano), e um outro troço que ligava as povoações de Longa e Riodades, no concelho de Tabuaço, passando no vicus de Fontelo.

A recente identificação pelo arqueólogo José Carlos Santos de um possível miliário na povoação da Longa foi o factor que veio despoletar um novo estudo da rede viária na área que permitiu resolver finalmente as questões que permaneciam em aberto. Em concreto, toda a bibliografia consultada prolongava o troço da via este-oeste entre Arcos e Longa em direcção à travessia do rio Tedo, junto da actual povoação de Granja do Tejo. Na outra margem, temos o Castro de Coujoim e a via Chaves-Moimenta, sugerindo uma ligação entre estas duas vias.

As dúvidas que se mantinham sobre esta solução resultam das fortes pendentes da descida para o rio Tedo, portanto, incompatíveis com uma via para carros. A identificação do referido miliário em Longa permitiu finalmente esclarecer a questão. Desde logo, o achado de um miliário em Longa vem confirmar a existência de uma rota romana através deste caminho milenar.

Mas o detalhe que apontou em definitivo para a solução foi a informação precisa da sua localização que o colocava junto de um caminho de saída da aldeia para oeste, como seria expectável, sugerindo que estaria in situ (hipótese que se veio posteriormente a confirmar). No entanto, o referido caminho não se dirige para Granja do Tedo, mas para norte, inflectindo portanto o seu trajecto rumo ao rio Douro.

Estava assim levantada a forte possibilidade de o troço de via entre Longa e Arcos integrar uma grande rota romana. Seguindo o trajecto mais provável até ao Douro, verifica-se que a via se dirige à foz do rio Tedo (foz do rio Ceira na outra margem), local onde atravessava o rio Douro. Tal como neste caso, muitas das travessias do Douro são feitas junto da foz dos principais afluentes, evitando assim a necessidade de os cruzar próximo da sua confluência no Douro.

Medindo a distância entre a margem do rio e o marco que está em Longa, contam-se cerca de 12 milhas, mostrando que há acerto da contagem miliária, ainda por cima em torno do valor típico entre estações viárias e o rio, como por exemplo, no caso Panóias, também a 12 milhas do Douro. Resolvido o trajecto da via para norte, havia que estudar a sua continuação na direcção oposta.

Fig.1 – A rede viária cruzando o rio Douro em Covelinhas, Foz do Tedo e Foz do Pinhão.

Partindo da povoação Longa, seguia então o troço de via anteriormente cartografado, passando em Arcos e próximo do vicus do Fontelo em direcção a Riodades, onde cruzava o rio Távora. Daqui seguia por Carapito e Chosendo, onde recentemente apareceu um miliário epigrafado (FE 864, 2023). A via continuava até à povoação de Guilheiro, importante nó viário no planalto, onde se cruzavam diversas rotas da região da Beira Alta.

Depois de Guilheiro, a via continuava para sul por Queiriz e Muxagata (miliário na igreja) rumo à travessia do rio Mondego no sítio da actual Ponte de Juncais. Esta rota seguia depois por Carrapichana e Linhares, e daqui, cruzando a Serra da Estrela, atingia a estação viária de Centum Celas em Belmonte, entroncando na grande rota para Mérida por Igaeditana (Idanha-a-Velha), cruzando o rio Tejo na famosa Ponte Romana de Alcântara.

Fig.2 – Confluência das vias da região no nó viário de Guilheiro

Em síntese, a descoberta do marco de Longa ainda in situ permitiu finalmente identificar esta grande rota que última análise ligava as importantes explorações mineiras da região Flaviense à capital da província, Emerita Augusta. Com efeito, ao prolongar a via para norte a partir do rio Douro, esta rota vai de encontro à via Chaves-Covelinhas referida acima, entroncando nesta junto do Castro de Lamares.

A identificação do trajecto desta rota, levou à resolução dos traçados prováveis de outras vias na região das quais apenas se tinha dados pontuais. De facto, tudo indica que existiam outras travessias do rio Douro a montante da passagem na foz do Tedo. Com efeito, foi também cartografada uma derivação da via que cruzava o Douro junto ao Pinhão, seguindo depois por Paredes da Beira, Penedono e Antas (estes últimos com possíveis miliários) rumo também ao nó viário de Guilheiro, evidenciando ainda mais a importância deste local como uma verdadeira encruzilhada de vias de toda esta região a sul do rio Douro.

Por fim, agradeço a José Carlos Santos a partilha do achamento destes marcos em resultado do seu aturado estudo da região, identificando e interpretando o imenso património arqueológico da região, que em geral continua praticamente desconhecido apesar de se encontrar numa zona turística por excelência como é a Região do Douro.

Ver mais detalhes nas entradas de Setembro e Outubro de 2023 do histórico de alterações em: https://viasromanas.pt/vrhist.html

Ver itinerários em:
https://viasromanas.pt/#tedo_guilheiro
https://viasromanas.pt/#selores_guilheiro
https://viasromanas.pt/#torto_belmonte

SANTOS, J. C. e ENCARNAÇÃO, J. d’ (2023a). Miliário em Chosendo, Sernancelhe. Ficheiro Epigráfico 255 (864).

Passagem por Alenquer

A rota antiga de Lisboa a Santarém seguia por Loures, Alverca, Vila Franca de Xira e Castanheira do Ribatejo, passando assim na base do Povoado dos Castelinhos, onde localizamos Ierabriga (a 30 milhas de Lisboa tal como indicado no Itinerário de Antonino). A partir daqui a via inflecte para o interior, afastando-se da margem do rio Tejo, rumo a Alenquer, de modo a evitar o cruzamento do Paúl de Ota. A sua passagem em Alenquer é atestada por diversos miliários, nomeadamente um exemplar muito danificado na Quinta de Santa Teresa, onde ainda se pode ler o numeral XV (Mantas, 2016), e outro, de Adriano, na Quinta do Bravo (CIL II 4633), actualmente no Museu Arqueológico do Carmo em Lisboa.

Fig. 1 – A antigo e nova proposta de traçado (linha azul) da passagem da via por Alenquer

A proposta inicial de trajecto fazia seguir a via por Quinta da Ferraguda e Pacheca rumo ao lugar de Paredes em Alenquer, passando deste modo junto do miliário da Quinta de Santa Teresa (Fig. 1). No entanto, uma análise mais cuidada do terreno permitiu identificar um caminho alternativo desviando na Quinta da Ferraguda por Carambancha, Estrada do Cemitério, Rua Francisco Ferreira e Rua Joaquim Falé, que segue em direcção à Quinta do Bravo, onde vencia a 33ª milha contadas a partir da margem do Tejo em Lisboa. Este caminho alternativo não provoca alterações significativas na contagem miliária de Lisboa a Santarém dado que as duas variantes têm sensivelmente a mesma distância
(rota azul na Fig. 1) .

O acerto da contagem miliária com a Quinta do Bravo sugere que o miliário estaria muito provavelmente in situ, tendo sido recolhido na quinta. No que resta da epígrafe lê-se a palavra refecit, sinal de que estrada sofreu obras de restauro durante o consulado de Adriano, mas infelizmente não sabemos qual seria a milha indicada. No entanto, pela sua posição é muito provável que indicasse a 33ª milha desde Lisboa (Fig. 2).

Fig. 2 – Mapa corrigido com localização do nó viário junto da Quinta do Bravo.

Há ainda notícia do achamento de vários outros vestígios na quinta, nomeadamente um pavimento em mosaico, uma árula votiva e três epígrafes funerárias, assim como moedas, lucernas, terra sigillata, taças de vidro e outros achados (Costa, 2012), que apontam para a existência de uma estação viária neste local .

Deste modo, é muito provável que o povoado romano se tenha desenvolvido em torno desta paragem (i.e. umvicus viarum), sendo que a maior concentração de vestígios se encontra numa área delimitada pela Quinta do Bravo, Quinta das Sete Pedras, Quinta de Santa Teresa e lugar de Paredes.

Um outro argumento que reforça a localização da estação na Quinta do Bravo, prende-se com a via transversal que cruzava Alenquer rumo ao Tejo. Como antes fazíamos o cruzamento destas vias em Paredes, não havia acerto na marcação miliária, mas ao colocarmos a intersecção das estradas na Quinta do Bravo obtemos um acerto da marcação também nesta via transversal.

De facto, a distância daqui ao Tejo é cerca de cinco milhas, enquanto para oeste, a via seguia até Dois Portos, onde cruzava o Rio Sizandro (a 13 milhas da Quinta do Bravo), seguindo daqui até Runa, onde entroncava na via Lisboa-Óbidos (Olisipo-Eburobrittium). Ora, a povoação de Runa encontra-se a quinze milhas da Quinta do Bravo, o que se somarmos as cinco milhas que levam à margem do Tejo, perfaz um total de 20 milhas, valor típico entre estações na rede viária antiga.

Esta nova configuração da rede viária em Alenquer, permite também equacionar a hipótese do miliário de Santa Teresa poder assinalar, não a via Lisboa-Santarém, mas esta via transversal entre Runa e o rio Tejo passando por Alenquer. Com efeito, as 15 milhas indicadas poderão corresponder à distância entre Runa e Alenquer que é também desse valor.

Esta possibilidade do marco assinalar uma outra via já tinha sido equacionada (Mantas, 2016), embora sem especificar a rota em concreto. Com esta nova proposta, fica assim explicado o facto de aparecer um miliário com este numeral num local que está a 33 milhas de Lisboa e a 29 de Santarém.

Bibliografia citada:
COSTA, M. C. (2010). Redes viárias de Alenquer e suas dinâmicas. Um estudo de arqueogeografia. Coimbra: Diss. de Mestrado FLUC.
COSTA, M. C. (2012). Apontamentos sobre a presença romana no Concelho de Alenquer. Vila Franca de Xira: Atas da Mesa Redonda “De Olisipo a Scallabis”, 115-130
MANTAS, Vasco G. (2016). O Miliário da Quinta de Santa Teresa (Alenquer) e outros problemas viários associados. Revista Cira Arqueologia nº 5, 76-85.

Parte 6 || Cale

Concluímos esta viagem pelo Itinerário XVI com algumas notas sobre a sua passagem por Cale, estação seguramente associada à travessia do rio Douro, apesar de permanecer a dúvida na sua exacta localização, oscilando entre os dois povoados proto-históricos que dominavam esta passagem, ou seja, o Morro da Pena Ventosa (Sé) e o Castelo de Gaia, dúvida que, no entanto, não afecta a contagem miliária que segundo o Itinerário era a seguinte:

Langobriga
Cale m.p. XIII
Bracara m.p. XXXV

Como referido no artigo anterior, a distância de 13 milhas de Langobriga a Cale é coerente com o percurso entre Vendas Novas (Fiães/Castro Redondo) e o Douro, seguindo paralela ou coincidente com a EN1, que em muitas troços ainda é designada por “Rua da Via Romana”. O trajecto fazia-se (e faz-se) por Vergada, Picoto, Vendas de Grijó (8 m.p.), Carvalhos (6 m.p.), Canelas (4 m.p.), Santo Ovídio (2 m.p.), Jardim de Soares dos Reis (1 m.p.) e finalmente, descendo talvez pela Rua Direita, atingia o cais de Gaia.

Fig. 1 – Via Langobriga – Cale com estação a 8 milhas do Douro

Depois de cruzar o rio, a via dirigia-se para Bracara, seguindo aproximadamente a rota da EN14, percorrendo cerca de 35 milhas, tal como indicado no Itinerário, trajecto já analisado em artigo anterior. A parte inicial do percurso continua em utilização como ruas da cidade. Partindo da Porta do Olival, junto do Jardim da Cordoaria, seguia pela lateral do edifício da Universidade do Porto, antiga «Calçada dos Órfans» e actual Rua Dr. Ferreira da Silva, cortava a Praça dos Leões em direcção ao Largo do Moinho de Vento, continuava pela Rua Mártires da Liberdade até à Praça da República e daqui pela Rua Antero de Quental rumo à travessia do rio Leça na Ponte da Pedra (São Mamede de Infesta). Daqui seguia para a travessia do rio Ave na Trofa, passando em Pinta (Maia) e Forca (8 m.p.), percurso recentemente (re)confirmado pelo descoberta de um miliário numa casa do lugar da Barca, indicando precisamente 27 milhas a Braga, ou seja, oito milhas a Cale.

Fig. 2 – Rede viária a norte do rio Douro com pontos focais Cale e Bracara Augusta.

Do mesmo modo, os trajectos das outras vias que partiam de Cale continuam em utilização pelos séculos seguintes, sendo progressivamente absorvidos pela expansão urbana da cidade. Apesar de estas vias não serem mencionados nos Itinerários de Antonino e da ausência de miliários, não há qualquer dúvida sobre a sua utilização já nesse período (e mesmo em períodos anteriores), formando a rede principal de estradas que partiam de Cale.

Uma destas vias é designada na documentação medieval por «karraria vetera», «via publica» e «estrada mourisca» em diferentes pontos do seu percurso e que hoje está assinalado como «Caminho de Santiago». Partindo do mesmo local da estrada para Braga, Campo do Olival, seguia pela Rua de Cedofeita (antiga «Cacarreira») até ao Padrão da Légua (4 m.p.), e daqui à Ponte Romana de Barreiros sobre o Leça (Maia).

Daqui poderia ligar por uma ramal ao nó viário da Forca (8 m.p.) na via para Bracara (onde apareceu miliário), mas é provável que a «karraria» seguisse para noroeste por Vilar do Pinheiro e pela base do Castro de Boi (15 m.p.), rumo à travessia do rio Ave junto do Castro de Santagões.

Daqui seguia para a Igreja de São Pedro de Rates (23 m.p.), provável estação viária onde a via bifurcava em dois trajectos, um seguindo para noroeste rumo à travessia do rio Cávado na Barca do Lago (ligando a Viana do Castelo), e outro seguia para nordeste rumo à travessia do mesmo rio em Barcelos (o chamado «Caminho de Santiago Central»), continuando depois até Ponte de Lima. (ver https://viasromanas.pt/#porto_barcelos).

Admite-se uma variante a este trajecto mais próxima do litoral, desviando da «karraria vetera» no Padrão da Légua, seguindo na direcção do Castro de São João em Vila do Conde, local de cruzamento do rio Ave. Daqui seguia próximo dos castros de Terroso e Laúndos rumo à travessia do rio Cávado na Barca do Lago, reunindo com a «karraria» cerca de três milhas antes de atingir esta passagem. (ver viasromanas.pt/#porto_caminha).

As restantes vias seguiam na direcção nordeste. A primeira delas partia de Cale rumo a Guimarães, seguindo junto do Castro de Águas Santas (6 m.p.), Castro do Monte Padrão (18 m.p.), Citânia de Sanfins (22 m.p.) e Castro da Polvoreira/ Santo Amaro (30 m.p.). (ver viasromanas.pt/#via_vimaranes).

A segunda via para nordeste, ligava Cale a Tongóbriga, seguindo próximo do Castro de Vandoma (15 m.p.) e do Castro de Quires (26 m.p.), de onde descia à travessia do rio Tâmega, a trinta milhas de Cale. Daqui ascendia por Marco de Canaveses à cidade romana de Tongóbriga, da qual subsistem importantes vestígios, mas como vimos ao longo do Itinerário XVI, assenta ela própria sobre um antigo povoado da Idade do Ferro do qual teria herdado o nome.

A parte inicial do trajecto desta via subsiste ainda hoje, partindo da antiga Porta de Vandoma e seguindo pela Rua Cimo de Vila, percursos que mantém a tipologia antiga, ascendendo a ladeira por patamares suaves até à actual Praça da Batalha. Daqui seguia por St. Ildefonso, Bonfim (1 m.p.), Corujeira/ Campanhã (2 m.p.), São Roque da Lameira (3 m.p.), continuando pelos topónimos viários, Cavada, Ferraria, Carreira e Vale de Ferreiro até Valongo, provável estação viária a oito milhas de Cale, relacionada com a exploração mineira identificada nas proximidades. (ver viasromanas.pt/#porto_freixo)

Notar que esta distância de oito milhas à primeira estação já tinha sido identificada nas outras vias que partiam de Cale, nomeadamente em Vendas de Grijó e Barca, sugerindo que o seu estabelecimento não foi arbitrário. Notar também a grande resiliência destes trajectos apesar das enormes transformações sofridas pela cidade nos últimos séculos.

Fig. 3 – Vias antigas na actual área urbana da cidade do Porto.

Na ausência de factores externos como terramotos ou grandes planos urbanísticos (felizmente) as principais vias que partiam da cidade do Porto acabaram por permanecer em utilização até aos nossos dias. Seria interessante um dia fazer um roteiro destas vias pela cidade.

Com este artigo sobre Cale termina esta série de seis artigos sobre o itinerário de Olisipo a Bracara ou Itinerário XVI. No próximo post será abordada a problemática das alterações da orla costeira e as suas implicações na rede viária antiga.

Parte 5 || Talábriga

Neste percurso pelo Itinerário XVI chegamos agora a uma das questões mais discutidas na historiografia nacional, a problemática localização de Talábriga. Pela sequência de estações não há qualquer dúvida que esta se deveria localizar nas proximidades do Rio Vouga que constitui o maior obstáculo entre Aeminium e Cale. No entanto, o seu exacto posicionamento é alvo de grande controvérsia entre investigadores.

Segundo o Itinerário XVI, teríamos:
Aeminium m.p. X
Talabriga m.p. XL
Langobriga m.p. XVIII
Cale m.p. XIII

Como é habitual, as primeiras tentativas de localização surgem no século XVI, tendo os iluministas portugueses proposto a sua identificação com Cacia (Barreiros, 1561) e Aveiro (Brito, 1597). A hipótese Cacia era baseada no achado de vestígios romanos na Torre da Marinha Baixa. No entanto, a passagem neste local é inviável dado que aqui era a antiga linha de costa em período romano, podendo corresponder a um vicus portuário. Aliás, toda a área de Aveiro estaria submersa, inviabilizando portanto a hipótese lançada por Brito.

A questão só é retomada no início do século XX, com diversos autores tentando compatibilizar as distâncias medidas no terreno com a informação contida no Itinerário. Entre eles, destaca-se Félix Alves Pereira que publica em 1907 um seminal artigo intitulado “Situação Conjectural de Talábriga”, onde alerta para a necessidade de posicionar Talábriga a norte do Vouga, dado que as 40 milhas indicadas são superiores à distância entre o Mondego e o Vouga (c. 34 milhas).

Com base na distância indicada a Langobriga (18 m.p.), equaciona a hipótese de Talabriga estar na área da povoação de Branca, apontando como possíveis localizações o Castro de São Julião e o vicus de Cristelo, hipótese seguida por autores posteriores (Souto, 1941; Vaz, 1983: 32-38).

Fig. 1 – Esboço do trajecto entre Coimbra e o Porto elaborado em 1941 por Alberto Souto

O problema desta proposta é que não acerta com o Itinerário dado que este local não está a 40 milhas de Aeminium. De facto a distância deste local ao Vouga é de cerca de 10 milhas perfazendo um total de 44 milhas a Aeminium (34+10) quando o Itinerário indica 40.

Admitindo que está distância está correcta (não havendo razões objectivas para duvidar deste valor), então Talabriga teria de estar 6 milhas a norte do Vouga, distância que permite associar esta estação ao povoado castrejo da Ns. do Socorro em Albergaria a Velha. Aliás, na Carta do Couto de Osseloa do ano 1117 (DMP DR 49) é referida a «strada que currit de Portugal in directo de Petra de Aquila», sendo que a generalidade dos autores identificam a “Pedra de Águia” com o actual Bico do Monte no Santuário da Ns. do Socorro (Ribeiro, 1810:243-246, Oliveira, 1943), sinal evidente que a via corria por ali. O Monte da Sra. do Socorro é mencionado em documentos medievais como «Albergarie veteris de Meigonfrio», topómimo com possível origem no termo latino mansio (Oliveira, 1943). João de Almeida refere a existência no local de uma antiquíssima fortaleza de um possícel castro “luso-romano” (Almeida, 1948:46), mas até hoje não há registo de qualquer vestígio de povoamento no local.

Esta hipótese não é inteiramente nova, tendo sido sugerida inicialmente pelo Tenente-Coronel Costa Veiga em 1943, ao contestar a sua identificação com Branca, proposta por Félix Pereira. Com efeito, com base nas distâncias medidas no terreno, este investigador propôs a localização de Talábriga no Monte da Ns. do Socorro dada a concordância das distâncias (Veiga, 1943). No entanto, o Padre Miguel de Oliveira publicava no mesmo ano uma súmula destas hipóteses, avidando prudentemente que o problema da localização de Talábriga permanecia tal como Félix Pereira o tinha deixado, isto é, por resolver (Oliveira, 1943: 61-62).

Entretanto, uma segunda hipótese foi lançada por Amorim Girão no início do século XX, a sua identificação com as ruínas que emergiam no chamado Cabeço do Vouga (Girão, 1922) , proposta entretanto reforçada pelos sucessivos achados arqueológicos no topo deste outeiro sobranceiro ao local de travessia do Vouga, levando autores posteriores, como Jorge de Alarcão e Seabra Lopes, a subscreverem esta proposta (Alarcão, 1988; Lopes, 1995, 2000), apesar do evidente desacerto com a informação do Itinerário (Mantas, 2018: 44).

Apesar do seu relativo esquecimento, a hipótese de identificação de Talabriga com o povoado fortificado da Ns. do Socorro, tem vindo a ser recuperada (Mantas, 2014: 247) atendendo à concordância com a distância indicada de 40 milhas a Coimbra. Apesar da notícia de achados arqueológicos no local (que foram enquadrados no Bronze Final), pouco sabemos sobre a ocupação deste povoado dado que este foi totalmente arrasado com a construção do actual santuário.

Seguindo esta hipótese, foi criado um percurso alterativo à “Estrada Real” (que passa no vale, junto a Branca e Albergaria-a-Nova), o verdadeiro percurso da via poderia ser pelo alto da serra, em altitude, tocando nos referidos povoados proto-históricos e que está representado no mapa abaixo (linha azul).

Fig. 2 – Nova proposta de traçado da via entre Albergaria-a-Velha e Oliveira de Azeméis seguindo junto dos povoados castrejos de Ns. do Socorro, São Julião e Lações.

Esta proposta de trajecto apresenta pouca variação de cota e acerta a marcação miliária com os referidos povoados, com Ns. do Socorro na milha 6, São Julião na milha 10 e Lações a 17 milhas do Vouga, outro povoado fortificado que daria origem a Oliveira de Azeméis e que foi destruído com a construção do Santuário de Ns. de La Salete.

A etapa seguinte ligava Talábriga a Langóbriga que tem sido identificada com o Castro do Monte Redondo em Fiães com base no vasto espólio recolhido no local (Corrêa, 1925; Almeida e Santos, 1971). De facto, a sua posição é compatível com as 13 milhas indicadas a Cale. No entanto, as 18 milhas indicadas são claramente insuficientes para cumprir a distância entre Monte Redondo e o Castro da Ns. Socorro, percurso que ronda as 23 milhas. Poderá tratar-se de um erro do copista medieval pois não seria difícil haver confundir os numerais “XXIII” e “XVIII”, bastando a troca do segundo “X” por um “V”, explicando deste modo, o diferencial de 5 milhas encontrado no trajecto até Cale.

Corrigindo este valor obtemos acerto da marcação miliária, isto é, somando as distâncias intermédias entre o Vouga e o Douro (6 + 23 + 13) obtemos um total de 42 milhas que é a distância que separa os dois rios. Esta divisão pouco usual entre etapas resulta do posicionamento dos povoados indígenas ao longo da via. No entanto, verifica-se que as estações romanas viriam a instalar-se num módulo mais regular de 4 milhas (1 légua) com
Albergaria-a-Velha (a 4 milhas do Vouga), a Albergaria de Souto Redondo (a 16 milhas de Cale), com outra estação a meio percurso, ou seja, a oito milhas do rio Douro, em Vendas de Grijó, nó viário de onde partia a via para Viseu, situado na base do maior povoado desta região, o Castro do Monte Murado (Carvalhos).

Assim o Itinerário corrigido seria o seguinte:
AEMINIUM X
TALABRIGA XL
LANGOBRIGA XXIII
CALEM XIII

Naturalmente de que não dispomos de provas conclusivas, nomeadamente de ordem epigráfica, que possam fechar a discussão, mas a concordância com as distâncias medidas no terreno pelo percurso proposto constitui um forte argumento para a sua validação. Os dados arqueológicos conhecidos também parecem apontar para esta hipótese com a via a passar junto dos principais povoados castrejos, denunciando mais uma vez a origem pré-romana destas rotas.

Por último, admitindo que Talabriga corresponde ao assentamento da Ns. do Socorro, então o Cabeço do Vouga teria outra designação, o que obriga a reconsiderar a antiga hipótese lançada por Brito de que ali se encontrava o antigo Oppidum Vacca (Brito, 1597). De facto, Plínio refere o flumen Vacca (NH, IV, 113) , mas segundo Gaspar Barreiros, num manuscrito de Toledo podia ler-se oppidum et flumen Vacca, do mesmo modo que no mesmo trecho Plínio menciona o oppidum et flumen Aeminium (Barreiros, 1561).

A existir o povoado de Vacca (Vacua em Estrabão; Geo. I, 3, 4), este poderia corresponder ao Cabeço do Vouga, explicando o miliário que Brito refere junto do Castro de S. Julião (S. Gião no original), indicando 12 milhas a «VAC», abreviatura que desdobrou em VACCA ou VACUA. Em suporte à veracidade desta notícia, notar que tanto o miliário da Vimieira (Mealhada) como de Úl (Oliveira de Azeméis) indicam 12 milhas, um valor típico entre estações viárias.

Neste nova proposta de traçado, o miliário em Úl fica algo afastado da via. No entanto, este miliário poderia ter um carácter mais territorial, definindo o limite sul da Civitas Langobrigensis, aliás, em concordância com o terminus augustalis, actualmente encastrado na parede traseira da Igreja Paroquial de Úl, indicando a distância de doze milhas a Langobriga (Castro de Fiães).

Como é visível pelos argumentos enunciados acima, estamos ainda longe de resolver o problema de localização de Talabriga. A ausência de provas epigráficas torna o Itinerário a única fonte primária para a localização destas estações apesar de eventuais erros e omissões. O que não podemos é pura e simplesmente descartar a informação nele contida quando esta não se adequa a uma outra proposta de localização.

O sexto e último artigo desta série abordará a travessia do Douro e as vias que daqui partiam de Cale

Bibliografia:
ALARCÃO, Jorge de (1988) – “Roman Portugal”. Warminster: Aris & Phillips, 3 Vols.
ALMEIDA, C.A.F.; SANTOS, E. (1971) – “O Castro de Fiães”. Revista da Faculdade de Letras. Série de História. II., 147-168.
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ALMEIDA, João de (1948). Roteiro dos Monumentos Militares Portugueses. Lisboa
BARREIROS, Gaspar (1561) – “Chorographia de alguns lugares que stam em hum caminho que fez Gaspar Barreiros”. Coimbra: João Aluarez.
BRITO, Bernardo de (1597) – “Monarchia Lusytana”. Lisboa: Mosteiro de São Bernardo. Vol. I.
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SOUTO, A. (1941) – “Romanização no Baixo-Vouga (Novo Oppidum na Zona de Talábriga)”. Trabalhos de Antropologia e Etnologia, vol. 9 (1939), 4, 283-328.
VAZ, J. L. da Inês (1983) – “Escavações no Cristelo da Branca”, Munda 5: 32-38.
VEIGA, A. B. da Costa (1943) – “Algumas estradas romanas e medievais”. Estudos de História Militar Portuguesa. Vol. I. Lisboa: Imp. Tip. Torres

Parte 4 || Conímbriga

Continuando a descrição do Itinerário XVI, vamos agora analisar a sua passagem por Conimbriga, seguramente localizada nas ruínas romanas junto de Condeixa-a-Velha, subsistem ainda dúvidas sobre qual seria o trajecto da via. A indicação de 10 milhas a Aeminium, actual Coimbra, é também coerente com esta identificação.

Itinerário XVI
Seilium
Conimbriga m.p. XXXIIII
Aeminium m.p. X
Talabriga m.p. XL

A aproximação à cidade fazia-se sem dúvida pelo lugar de Tamazinhos, onde apareceu um miliário indicando oito milhas, valor compatível com a distância a Conímbriga, no entanto, subsistem dúvidas sobre o trajecto seguido até à cidade romana que, tal como as restantes estações deste itinerário, assenta sobre um povoado anterior pré-romano (Correia, 1993).

O primeiro traçado proposto seguia um trajecto directo à cidade, passando por Fonte Coberta e lugar do Poço. No entanto, este percurso era suspeito e avesso à normal tipologia da viação antiga dado que obriga a uma dupla travessia do Rio de Mouros.

Tentou-se assim uma alternativa que evitasse esse obstáculo, fazendo seguir a via mais a nascente, por Alcabideque, local onde subsiste o sistema romano de captação da água que alimentava a cidade por um aqueduto. Se por um lado, esta hipótese permitia um trajecto menos acidentado e mais directo Coimbra, por outro lado, não havia maneira de acertar a marcação miliária com as 10 milhas indicadas a Coimbra nem com as 8 milhas indicadas no miliário de Tamazinhos.

Fig. 1 – A vermelho as anteriores propostas e a azul o nova proposta de traçado da via cortando por Castelo/Ns. da Piedade (8 m.p), Ponte de Atadôa (9 m.p.) e Portela de Alfarda (10 m.p.).

Deste modo, procuramos uma alternativa que cumprisse com esses critérios. Depois de vários hipóteses, consideramos que o traçado mais provável seria aquele que vinha de Coimbra pela Venda do Cego, Eira Pedrinha e Ponte de Atadôa. Aliás, Gaspar Barreiros (com base num manuscrito de Acurcio) refere a existência de inscrições junto desta ponte, uma das quais mencionando um tal Valerius Avitus nascido em Conimbrica, o que permitiu associar este topónimo às ruínas junto a Condeixa-a-Velha (Barreiros, 1565: fl. 49-50; CIL II 391).

Fig. 2 – O nó viário de Conímbriga, cruzamento da Itinerário Olisipo-Bracara com o itinerário transversal de Collipo a Bobadela.

Ora, esta hipótese é reforçada pelo facto de Eira Pedrinha se encontrar a oito milhas de Coimbra, apontando para a existência de uma mutatio neste local. De facto, em torno da Capela da Sra. da Piedade apareceram vestígios romanos, nomeadamente tijolos de coluna e um pavimento de opus signinum. Por outro lado, no morro adjacente regista-se o topónimo “Castelo” que corresponde a um povoado do Bronze Final (Vilaça, 2012: 21). Apareceram também algumas pedras visigóticas, actualmente no Museu Machado de Castro, tendo uma delas sido reutilizada no arco cruzeiro (Gaspar, 1983: 189).

Continuando o percurso para sul, a nona milha era vencida junto da Capela de Atadôa, de onde partiria um ramal de acesso a Conímbriga perfazendo as 10 milhas indicadas no Itinerário. No entanto, para quem seguia para Olisipo poderia evitar a cidade seguindo em direcção à Portela da Mata da Alfarda, ponto que por sua vez está a 10 milhas de Coimbra e a 34 de Ceras como indicado no Itinerário (ver post anterior) .

O restante trajecto rumo à travessia do Rio Mondego não oferece grandes dificuldades, sendo a marcação miliária assinalada por vários sítios romanos que seguramente teriam uma função viária.

Fig. 3 – A via para Aeminium indicando a sequência de sítios romanos de acordo com a marcação miliária – Portela das Alfarda (10 m.p.), Atadôa (9 m.p.), Castelo (8 m.p.), Orelhudo (7 m.p.), Escoural (6 m.p.), Picoto/Malga (5 m.p.), Antanhol (4 m.p.), Ladeira da Paula (3 m.p.), Cruz dos Morouços (2 m.p.) e Carrascal (1 m.p.).

A meio percurso entre Eira Pedrinha e o Mondego viria a estabelecer-se um acampamento romano em Antanhol (destruído pela construção do aeródromo), permitindo exercer controlo sobre esta importante passagem.

Proposta de correção do trajecto a norte de Coimbra por um percurso mais directo a Sargento Mor, evitando o terreno acidentado de Cioga do Monte.

Depois de cruzar o rio, a via continuava para norte em direcção a Sargento Mor. Antes fazia-se passar a via por Cioga do Monte, mas o acidentado do terreno sugere uma ligação mais directa seguindo a rota da actual EN. A via seguia em direcção à povoação da Vimieira (Mealhada), local onde apareceu um miliário indicando doze milhas, ou seja, a distância daqui a Coimbra, indiciando a possível existência de uma estação viária neste local, possivelmente no sítio romano conhecido por «Cidade das Areias».

A via seguia depois por Anadia e Águeda rumo a Talabriga, estação que deverá estar relacionada com a travessia do Rio Vouga. No entanto, a sua localização continua a dividir os investigadores dado que o Itinerário indica 40 milhas entre Aeminium e Talabriga quando a distância entre o Mondego e o Vouga não ultrapassa as 34 milhas, problema que será abordado no próximo artigo centrado em Talabriga.

Bibliografia:
BARREIROS, Gaspar (1561) – “Chorographia de alguns lugares que stam em hum caminho que fez Gaspar Barreiros”. Coimbra: João Aluarez.
GASPAR, J.M. (1983) — “Condeixa‑a‑Nova de Augusto dos Santos Conceição”. Porto.
CORREIA, V.H. (1993) — “Os materiais pré‑romanos de Conímbriga e a presença fenícia no Baixo vale do Mondego”. Estudos Orientais [Os Fenícios no
Território Português]. Lisboa IV, p. 229‑283.
VILAÇA, R. (2012) – “Arqueologia do Bronze no Centro-Sul da Beira Litoral e Alta Estremadura (II-I milénios a.C.)”. Junta de Freguesia de Vila Nova: 16-32.

Parte 3 || Seilium

Continuando a série de artigos sobre a rota de Lisboa a Braga, chegamos agora à terceira estação mencionada no Itinerário XVI que, na maioria dos códices medievais é designada por «SELLIUM» ou «CELLIUM». A descoberta de duas inscrições de emigrantes Seilienses, uma encontrada perto de Porto do Son, Galiza (CIL II 2562) e outra dentro do Mosteiro de Lorvão (HEp 9, 1999, 743), sugere que a grafia correcta seria «SEILIUM». Estas divergências resultam muito provavelmente do facto do Itinerário que conhecemos hoje é o resultado de sucessivas cópias medievais produzidas desde a Alta Idade Média sobre o título de Itinerarium Antonini Augusti, acrescentando distorções ao documento original quer nos topónimos quer nas distâncias assinaladas. A sua identificação com Tomar reúne actualmente um grande consenso entre investigadores, no entanto, esta localização apresenta ainda algumas questões por resolver como veremos a seguir.

A primeira tentativa de localização desta estação deve-se a Gaspar Barreiros que no século XVI propunha a sua identificação com “a vila de Ceice, junto a Tomar” (Barreiros, 1561: fl. 48; actualmente designada por Seiça, Ourém) seguindo a similitude fonética com Ceilium. Esta proposta foi seguida por André de Resende no seu “Antiguidades…”, acabando por cristalizar na historiografia portuguesa. Só nos alvores do século XX é que alguns autores retomariam a questão, em particular o trabalho pioneiro de Vieira de Guimarães, alertando para os inúmeros vestígios romanos que iam aparecendo na cidade de Tomar, assim como a provável passagem da via romana nesta importante travessia do rio Nabão (Guimarães, 1927: 13-27). Vieira de Guimarães combatia assim os mitos e lendas que vinham associando esta povoação à antiga Nabância (seguramente guiados pelo hidrónimo Nabão) e ao martírio de Santa Iria, teses que viriam a revelar-se infundadas (Peixoto e Martins, 2020: 109).

Do pouco que sabemos sobre este povoado, supõe-se que teria atingido estatuto municipal com base numa inscrição votiva dedicada ao Genio / municipi(i) que apareceu reutilizada na construção da torre de menagem do castelo templário (AE 1993, 881; RAP 256). Em concordância com esta hipótese, a marca de oficina “R. p. S.” registada em dois tijolos (HEp 11, 2001, 703 e 704) que apareceram próximo da cidade foi desdobrada em R(es) p(ublica) S(eiliensis) (Fernandes e Ferreira, 2002) Este estatuto administrativo parece ter continuidade na Alta Idade Média com base no Paroquial Suevo que menciona Selio como uma das sete paróquias que integravam a diocese Conimbricensis. Segundo um documento de 1317, transcrito por Pedro Alvares Seco da Ordem de Cristo, «Santa Maria de Thomar» (possivelmente a actual igreja templária de Santa Maria do Olival) seria anteriormente designada por «Santa Maria de Selio» (Guimarães, 1927: 103-107), mas a partir daí o topónimo entra em total penumbra.

Apesar da escassez de informação é muito provável que toda esta área integrasse o território da Civitas Seilienis durante o período romano. A posterior identificação de estruturas romanas nas traseiras do quartel dos bombeiros, associadas a um possível forum, parecia vir confirmar esta localização (Ponte, 1995). No entanto, continuam a existir dúvidas entre os investigadores quanto à tipologia e funcionalidade dos edifícios que ali existiam. Nesse sentido, também seria possível associar estes vestígios à estação viária que aqui certamente existia, atendendo à importância desta travessia e ao achado de miliários (ver viasromanas.pt#tomar).

As dúvidas na identificação de Seilium com Tomar estão também relacionadas com a aparente incompatibilidade desta localização com a informação constante no Itinerário. De facto, é impossível ir de Tomar a Conímbriga percorrendo apenas as 34 milhas indicadas no Itinerário, seja qual for o percurso escolhido, dado que no terreno contam-se cerca de 42 milhas, havendo portanto um défice de oito milhas. Na maioria das edições esta parte do Itinerário XVI é transcrita da seguinte maneira:

SCALLABIN
SEILIUM XXXII (32)
CONIMBRIGA XXXIIII (34)

De facto, percorrendo oito milhas em direcção a norte partindo de Tomar, seguindo a proposta de traçado lançada por Vieira de Guimarães (hoje praticamente consensual), o trajecto por Calçadas, Freixo, Ceras, Portela de Vila Verde e Rego da Murta, rumo a Conímbriga (Guimarães, 1927: 13-27; Mantas, 1996), atingimos a oitava milha junto da travessia da ribeira de Ceras, local por sua vez a 34 milhas de Conímbriga conforme é indicado no Itinerário. Junto da ponte medieval que ali existe, Vieira de Guimarães fotografou um mais que provável miliário (entretanto perdido), apontando para a existência de uma estação viária neste local.

No entanto, a sua identificação com Seilium do Itinerário revela-se problemática. Desde logo, não há registo de vestígios romanos na área de Ceras (para além do miliário) que possam corroborar esta hipótese , nem evidências seguras do “castrum quod dicitur Cera“, referido no documento de doação do Termo de Cera de 1159, povoado a que Vieira de Guimarães chama de “castrum romano” sem precisar a sua localização. Para Salete Ponte esta fortificação estaria no Monte do Alqueidão, seguindo proposta anterior de Amorim Rosa (Ponte, 1995: 292). Por seu lado, João Romão apontou para o monte das Castelhanas, onde identificou um possível recinto amuralhado, ainda bem visível nas fotografias de satélite (Romão, 2012: 99).

Fig. 1 – Trajeto da via romana na área de Ceras e a possível localização de Seilium no Monte das Castelhanas (representação do possível recinto amuralhado (com base em Romão, 2012: 99 )

A única referência a este local é do ano 1542 quando Pedro Álvares Seco refere a existência de vestígios de uma fortificação que associa ao “Castelo de Ceras”, mas cerca de dois séculos depois, em 1799, Viterbo já nada viu de relevante (Barroca, 1997: 178). Para Carlos Batata (coordenador da Carta Arqueológica da região), não há evidências materiais que suportem qualquer uma destas localizações (Batata, 1997). Este autor sugeriu a sua localização no Castro da Pena, a sudoeste de Ceras (Batata, 2023), onde há vestígios de um povoado romanizado. A distância de cerca de duas milhas que separam este povoado do trajecto da via não seria caso inédito (por ex.: Langóbriga), mas também não deixa de fragilizar esta hipótese. Como nenhum destes locais foi até hoje convenientemente escavado e estudado, a questão permanece em aberto.

Apesar desta dúvida na localização, tudo indica que a sede da Civitas Seiliensis cobria um território que corresponderia grosso-modo ao termo medieval de Cera. De facto, em diploma régio de 1159, D. Afonso Henriques doa o Termo de Cera aos templários com a obrigação destes reconstruirem a antiga fortaleza de Ceras, designada no documento por “castrum quod dicitur Cera” (DMP, DR I, doc. 271). Esta acção do primeiro rei de Portugal visava restabelecer o controlo do território recentemente conquistado aos “mouros” através de doações à ordem do templo com a obrigação destes reconstruirem as fortalezas entretanto arrasadas pelo conflito. Para isso escolhe pontos estratégicos da rede viária que permitiam consolidar o poder cristão nestes territórios. Porém, no caso do Castelo de Ceras isso não viria a acontecer, dado que cerca de um ano depois, Gualdim Pais abandona o projecto de construção do castelo sobre as ruínas do castrum antigo e inicia a sua construção em Tomar, futura sede templária em Portugal, por ter “melhor cabeço e melhores águas” (Barroca, 1997: 178).

Fig. 2 – Limites aproximados do Termo de Cera (amarelo) e rede viária antiga. Traçado da via Aeminium-Scallabis com estações em Rego da Murta, Ceras, Tomar e Paialvo.

Apesar de não haver dúvida de que o núcleo urbano romano viria a desenvolver-se em Tomar, local de cruzamento do Nabão, nada obsta a que o Itinerário refira a antiga cabeça de território, eventualmente localizada em Ceras. De resto, todas as estações do Itinerário XVI correspondem a povoados proto-históricos, muitas vezes remontando às antigas “chefaturas” do Bronze Final, o que é bem revelador da ancestralidade desta rota. A favor da sua localização no Monte das Castelhanas é o facto de este servir actualmente de quadrifinio entre as freguesias de Areias, Chãos, Casais e Alviobeira (sendo que Ceras integra esta última), mostrando que este local é de há muito utilizado como referencial geográfico.

Deste modo, tanto Ceras como Tomar apresentam argumentos favoráveis à sua identificação com Seilium, mas em ambos os casos, haveria que corrigir o Itinerário, possivelmente em resultado de um erro introduzido pelos copistas medievais na marcação miliária. Se, por um lado, admitirmos a sua localização em Ceras, temos conformidade com a distância a Conímbriga (34 m.p.), mas haveria que corrigir a distância de Seilium a Scallabis de 32 para 42 milhas, a distância aproximada entre Ceras e Santarém. Eventualmente houve troca entre os numerais “XXXXII” (42) e “XXXII” (32, omitindo o primeiro “X”) dado que esta forma de representar quatro dezenas surge em outras rotas do Itinerário (“XXXXX” em vez de “XL”).

Se por outro lado posicionarmos esta estação em Tomar, haveria que corrigir a distância de Seilium a Conimbriga, passando neste caso de 34 para 42 milhas, o que poderia ser explicado por eventual troca entre os numerais “XXXXII” (42) e “XXXIIII” (34), confundindo o terceiro “X” por dois traços verticais “II”.

Assim, haveria duas hipóteses de correcção:
Correcção com Seilium em Ceras
SCALLABIN
SEILIUM XXXXII (42)
CONIMBRIGA XXXIIII (34)

Correcção com Seilium em Tomar
SCALLABIN
SEILIUM XXXIIII (34)
CONIMBRIGA XXXXII (42)

Em síntese, a localização de Seilium em Tomar está longe de estar fechada e nada nos dados disponíveis permite descartar a hipótese da sua identificação com a arruinada fortificação referida na Carta de Doação do Termo de Cera à Ordem de Cristo. Acima de tudo, mais que resolver a questão, pretendemos alertar para as incertezas que ainda rodeiam a identificação de muitos destes topónimos, cujas localizações são por vezes dadas como seguras, quando na verdade estamos bem longe dessas supostas certezas. No próximo artigo analisaremos a passagem da via por Conímbriga.

Bibliografia citada:
PEIXOTO, J. ; MARTINS, A. C. (2020) – “Vieira Guimarães (1864-1939) e a arqueologia em Tomar: uma abordagem sobre o território e as gentes”. In J. M. Arnaud, C. Neves, & A. Martins (Eds.), Arqueologia em Portugal: 2020 – Estado da Questão (pp. 101-112). Associação dos Arqueólogos Portugueses | CITCEM.
BARREIROS, Gaspar (1561) – “Chorographia de alguns lugares que stam em hum caminho que fez Gaspar Barreiros”. Coimbra: João Aluarez.
BATATA, C. (1997) – “As origens de Tomar: a carta arqueológica do concelho”. Tomar: Centro de Estudos e Protecção do Património da Região de Tomar.
BATATA, C. (2023) – “O termo de Cera, os Templários e o povoamento do espaço”. Tomar: II Colóquio Internacional da Rota Templária Europeia. Cadernos Culturais Nabantinos, Vol. 3, 127-133.
BARROCA, M. J. (1997) – “A Ordem do Templo e a arquitectura militar portuguesa”. Portvgália, Nova Série, Vols. XVII-XVIII (1996-1997), 171-209.
FERNANDES, L. S.; FERREIRA, R. (2002) – “Marcas de oficina em tijolos romanos de Seilium. Conimbriga, 41, 257-267.
GUIMARÃES, Vieira (1927) – “Thomar. Sta. Iria”. Lisboa: Livraria Coelho.
MANTAS, Vasco G. (1996) – “A Rede Viária Romana da Faixa Atlântica entre Lisboa e Braga”. Dissertação de doutoramento (policopiada), Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
PONTE, Salete da (1995) – “Achegas para a Carta Arqueológica – Tomar”. Porto: in Portugália, Vol. XVI, 291-309.
ROMÃO, João M. (2012) – “No encalço do passo do Homem medieval: as vias de comunicação do antigo termo e atual concelho de Tomar”. Dissertação de Mestrado em Arqueologia – FCSH.