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O Itinerário de Olisipo a Bracara – Parte 1

Item ab OLISIPONE BRACARAM AUGUSTAM  m.p. CCXLIII
Ierabriga m.p. XXX
Scallabis m.p. XXXII
Seilium m.p. XXXII
Conimbriga m.p. XXXIIII
Aeminium m.p. X
Talabriga m.p. XL
Langobriga m.p. XVIII
Cale m.p. XIII
Bracara m.p. XXXV

Este grande itinerário ligava o porto de Olisipo a Bracara, decalcado o antigo eixo viário que perdura até aos dias hoje. Apesar da sua importância e de conhecermos o seu trajecto em traços gerais, subsistem ainda grandes dúvidas na localização das estações intermédias. De facto, além dos caput viae, Lisboa e Braga, só temos certezas sobre a localização de Scallabis (Santarém), Conimbriga (Condeixa-a-Velha), Aeminium (Coimbra) e Cale (Porto/Gaia). Quantos às restantes estações, Ierabriga, Seilium, Talabriga e Longobriga, embora se consiga estimar a sua provável localização, ou pelo menos, a sua área de influência, o seu exacto posicionamento continua em dúvida, não havendo provas conclusivas que possam fechar em definitivo esta discussão iniciada pelos iluministas do século XVI. Permanece assim como uma das grandes questões em aberto na viação antiga do nosso país.

Desde logo, é muito provável que haja erros nos valores indicados pelo Itinerário para as distâncias intermédias, dado que a distância total indicada de 244 milhas é insuficiente para cumprir um percurso entre Lisboa e Braga que, segundo o traçado proposto, ronda as 259/260 milhas. Mas em que pontos estariam esses erros?

As dúvidas surgem logo na primeira estação para quem partia de Olisipo. Tradicionalmente, Ierabriga tem sido identificada com Alenquer, hipótese que foi sendo reforçada com a descoberta de muitos vestígios romanos no aro desta povoação (incluindo diversos miliários) que apontavam para a existência de uma estação viária nesta povoação. Apesar de ser praticamente consensual, esta identificação contraria a informação registada no Itinerário, dado que este indica 30 milhas para esta etapa quando a distância entre estes pontos ronda as 33 milhas.

Itinerário XVI – Olisipo, Ierabriga, Scallabis e Seilium, as três primeiras estações desta rota.

Ora, seguindo o percurso proposto por Loures, Alverca e Vila Franca de Xira, atingimos a milha 30 na base de um dos mais importantes povoados da margem do Tejo, o Povoado do Monte dos Castelinhos.

Aliás, sendo o topónimo terminado em briga, é muito mais provável tratar-se de um povoado pré-romano fortificado e não um povoado aberto como o assentamento romano de Alenquer.

Está localização no Povoado dos Castelinhos é também coerente com as 32 milhas indicadas no Itinerário entre Ierabriga e Scallabis, a estação seguinte. De facto, essa é a distância medida entre a base de Castelinhos e a base do morro de Santarém, o que vem reforçar este posicionamento. Neste local a via abandonava a margem do Tejo e seguia para Alenquer, de modo a evitar o vasto Paúl da Ota que seria intransitável.

Vista actual do Povoado dos Castelinhos, provável localização de Ierabriga. Na sua base passava a via Olisipo a Scallabis, a 30 milhas da primeira e 32 milhas da segunda.

Esta situação está longe de ser inédita na viação romana e é perfeitamente clara neste Itinerário, dado que a totalidade dos topónimos correspondem a povoados pré-romanos e não a estações viárias romanas. Estes povoados seriam seguramente as cabeças administrativas dos territórios atravessados pela via, continuando depois com sede das civitates do período romano, tendo em muitos casos continuidade como cabeça dos termos medievais.

O problema complica-se nas etapas seguintes, dado não ser possível ir de Santarém a Conímbriga percorrendo apenas as 66 milhas indicadas (32 + 34) quando a distância real entre estes pontos ronda as 76 milhas, sugerindo a existência de erros que suprimiram 10 milhas ao percurso. Consequentemente, a identificação de Seilium com Tomar não pode ser considerada fechada, apesar de esta proposta ser hoje praticamente unânime. De facto, admitindo que as 34 milhas indicadas a Conímbriga estariam correctas, então Seilium estaria oito milhas a norte de Tomar, o que posicionaria esta estação junto ao Castelo de Ceras, onde apareceu miliário.

Continuando o percurso, surgem novas dificuldades na determinação da localização de Talabriga. Esta estação tem sido associada ao cruzamento do Rio Vouga, atendendo à sequência de paragens, no entanto as 40 milhas indicadas a Coimbra (Aeminium) colocaria a estação a norte desse rio, dado que a distância entre o Mondego e o Vouga não ultrapassa as 34 milhas. Esta incongruência está na origem da grande discussão que se instalou em torno da localização desta estação ainda sem fim à vista, em particular porque as distâncias indicadas no Itinerário parecem invalidar a sua identificação com o povoado proto-histórico do Cabeço do Vouga como se tem pretendido.

Mais pacífica parece ser a identificação da estação seguinte, designada Langobriga, com o Castro de Fiães ou do Monte Redondo, em concordância com as 13 milhas indicadas a Cale, apesar deste assentamento estar relativamente afastado da via (cerca de duas milhas a nascente). Deste modo, o Itinerário não parece indicar propriamente as estações romanas ao longo do percurso, mas os povoados que eram cabeça dos territórios cruzados pela via.

Por último, para a etapa final entre Cale e Bracara são indicadas 35 milhas, valor que está de acordo com o percurso entre Porto e Braga pela rota da EN14, e que foi confirmado por diversos miliários (ver https://viasromanas.pt/blog/index.php/2020/06/05/via-bracara-cale/).

Depois desta visão geral sobre as principais questões ainda em aberto sobre o Itinerário XVI, vamos seguidamente analisar estes problemas em detalhe e propor possíveis soluções. Mas isso será o objecto dos próximos artigos deste blog.
Mantenham-se atentos!