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Parte 3 || Seilium

Continuando a série de artigos sobre a rota de Lisboa a Braga, chegamos agora à terceira estação mencionada no Itinerário XVI que, na maioria dos códices medievais é designada por «SELLIUM» ou «CELLIUM». A descoberta de duas inscrições de emigrantes Seilienses, uma encontrada perto de Porto do Son, Galiza (CIL II 2562) e outra dentro do Mosteiro de Lorvão (HEp 9, 1999, 743), sugere que a grafia correcta seria «SEILIUM». Estas divergências resultam muito provavelmente do facto do Itinerário que conhecemos hoje é o resultado de sucessivas cópias medievais produzidas desde a Alta Idade Média sobre o título de Itinerarium Antonini Augusti, acrescentando distorções ao documento original quer nos topónimos quer nas distâncias assinaladas. A sua identificação com Tomar reúne actualmente um grande consenso entre investigadores, no entanto, esta localização apresenta ainda algumas questões por resolver como veremos a seguir.

A primeira tentativa de localização desta estação deve-se a Gaspar Barreiros que no século XVI propunha a sua identificação com “a vila de Ceice, junto a Tomar” (Barreiros, 1561: fl. 48; actualmente designada por Seiça, Ourém) seguindo a similitude fonética com Ceilium. Esta proposta foi seguida por André de Resende no seu “Antiguidades…”, acabando por cristalizar na historiografia portuguesa. Só nos alvores do século XX é que alguns autores retomariam a questão, em particular o trabalho pioneiro de Vieira de Guimarães, alertando para os inúmeros vestígios romanos que iam aparecendo na cidade de Tomar, assim como a provável passagem da via romana nesta importante travessia do rio Nabão (Guimarães, 1927: 13-27). Vieira de Guimarães combatia assim os mitos e lendas que vinham associando esta povoação à antiga Nabância (seguramente guiados pelo hidrónimo Nabão) e ao martírio de Santa Iria, teses que viriam a revelar-se infundadas (Amendoeira e Martins, 2020: 109).

Do pouco que sabemos sobre este povoado, supõe-se que teria atingido estatuto municipal com base numa inscrição votiva dedicada ao Genio / municipi(i) que apareceu reutilizada na construção da torre de menagem do castelo templário (AE 1993, 881; RAP 256). Em concordância com esta hipótese, a marca de oficina “R. p. S.” registada em dois tijolos (HEp 11, 2001, 703 e 704) que apareceram próximo da cidade foi desdobrada em R(es) p(ublica) S(eiliensis) (Fernandes e Ferreira, 2002) Este estatuto administrativo parece ter continuidade na Alta Idade Média com base no Paroquial Suevo que menciona Selio como uma das sete paróquias que integravam a diocese Conimbricensis. Segundo um documento de 1317, transcrito por Pedro Alvares Seco da Ordem de Cristo, «Santa Maria de Thomar» (possivelmente a actual igreja templária de Santa Maria do Olival) seria anteriormente designada por «Santa Maria de Selio» (Guimarães, 1927: 103-107), mas a partir daí o topónimo entra na penumbra.

Apesar da escassez de informação é muito provável que toda esta área integrasse o território da Civitas Seilienis durante o período romano. A posterior identificação de estruturas romanas nas traseiras do quartel dos bombeiros, associadas a um possível forum, parecia vir confirmar esta localização (Ponte, 1995). No entanto, continuam a existir dúvidas entre os investigadores quanto à tipologia e funcionalidade dos edifícios que ali existiam. Nesse sentido, também seria possível associar estes vestígios à estação viária que aqui certamente existia, atendendo à importância desta travessia e ao achado de miliários (ver viasromanas.pt#tomar).

As dúvidas na identificação de Seilium com Tomar estão também relacionadas com a aparente incompatibilidade desta localização com a informação constante no Itinerário. De facto, é impossível ir de Tomar a Conímbriga percorrendo apenas as 34 milhas indicadas no Itinerário, seja qual for o percurso escolhido, dado que no terreno contam-se cerca de 42 milhas, havendo portanto um défice de oito milhas. Na maioria das edições esta parte do Itinerário XVI é transcrita da seguinte maneira:

SCALLABIN
SEILIUM XXXII (32)
CONIMBRIGA XXXIIII (34)

De facto, percorrendo oito milhas em direcção a norte partindo de Tomar, seguindo a proposta de traçado lançada por Vieira de Guimarães (hoje praticamente consensual), o trajecto por Calçadas, Freixo, Ceras, Portela de Vila Verde e Rego da Murta, rumo a Conímbriga (Guimarães, 1927: 13-27; Mantas, 1996), atingimos a oitava milha junto da travessia da ribeira de Ceras, local por sua vez a 34 milhas de Conímbriga conforme é indicado no Itinerário. Junto da ponte medieval que ali existe, Vieira de Guimarães fotografou um mais que provável miliário (entretanto perdido), apontando para a existência de uma estação viária neste local.

No entanto, a sua identificação com Seilium do Itinerário revela-se problemática. Desde logo, não há registo de vestígios romanos na área de Ceras (para além do miliário) que possam corroborar esta hipótese , nem evidências seguras do “castrum quod dicitur Cera“, referido no documento de doação do Termo de Cera de 1159, povoado a que Vieira de Guimarães chama de “castrum romano” sem precisar a sua localização. Para Salete Ponte esta fortificação estaria no Monte do Alqueidão, seguindo proposta anterior de Amorim Rosa (Ponte, 1995: 292). Por seu lado, João Romão apontou para o monte das Castelhanas, onde identificou um possível recinto amuralhado, ainda bem visível nas fotografias de satélite (Romão, 2012: 99).

Fig. 1 – Trajeto da via romana na área de Ceras e a possível localização de Seilium no Monte das Castelhanas (representando o eventual recinto amuralhado (com base em Romão, 2012: 99 )

A única referência a este local é do ano 1542 quando Pedro Álvares Seco refere a existência de vestígios de uma fortificação que associa ao “Castelo de Ceras”, mas cerca de dois séculos depois, em 1799, Viterbo já nada viu de relevante (Barroca, 1997: 178). Para Carlos Batata (coordenador da Carta Arqueológica da região), não há evidências materiais que suportem qualquer uma destas localizações (Batata, 1997). Este autor sugeriu a sua localização no Castro da Pena, a sudoeste de Ceras (Batata, 2023), onde há vestígios de um povoado romanizado. A distância de cerca de duas milhas que separam este povoado do trajecto da via não seria caso inédito (por ex.: Langóbriga), mas também fragiliza esta hipótese é neste caso . Como nenhum destes locais foi até hoje convenientemente escavado e estudado, a questão permanece em aberto.

Apesar desta dúvida na localização da sua sede, tudo indica que a Civitas Seiliensis cobria um território que deverá corresponder grosso-modo ao termo medieval de Cera. De facto, em diploma régio de 1159, D. Afonso Henriques doa o Termo de Cera aos templários, com a obrigação de estes reconstruirem a antiga fortaleza que é designada no documento por “castrum quod dicitur Cera” (DMP, DR I, doc. 271). Esta acção do primeiro rei de Portugal visava restabelecer o controlo do território recentemente conquistado aos “mouros” através de doações à ordem do templo com a obrigação destes reconstruirem as fortalezas entretanto arrasadas pelo conflito. Para isso escolhe pontos estratégicos da rede viária que permitiam consolidar o poder cristão nestes territórios. Porém, no caso do Castelo de Ceras isso não viria a acontecer, dado que cerca de um ano depois, Gualdim Pais abandona o projecto de construção do castelo sobre as ruínas do castrum antigo e inicia a sua construção em Tomar, futura sede templária em Portugal, por ter “melhor cabeço e melhores águas” (Barroca, 1997: 178).

Fig. 2 – Limites aproximados do Termo de Cera (amarelo) e rede viária antiga. Traçado da via Aeminium-Scallabis com estações em Rego da Murta, Ceras, Tomar e Paialvo.

Apesar de não haver dúvida de que o núcleo urbano romano viria a desenvolver-se em Tomar, local de cruzamento do Nabão, nada obsta a que o Itinerário refira a antiga cabeça de território, eventualmente localizada em Ceras. De resto, todas as estações do Itinerário XVI correspondem a povoados proto-históricos, muitas vezes remontando às antigas “chefaturas” do Bronze Final, o que é bem revelador da ancestralidade desta rota. A favor da sua localização no Monte das Castelhanas é o facto de este servir actualmente de quadrifinio entre as freguesias de Areias, Chãos, Casais e Alviobeira (sendo que Ceras integra esta última), mostrando que este local é de há muito utilizado como referencial geográfico.

Deste modo, tanto Ceras como Tomar apresentam argumentos favoráveis à sua identificação com Seilium, mas em ambos os casos, haveria que corrigir o Itinerário, possivelmente em resultado de um erro introduzido pelos copistas medievais na marcação miliária. Se, por um lado, admitirmos a sua localização em Ceras, temos conformidade com a distância a Conímbriga (34 m.p.), mas haveria que corrigir a distância de Seilium a Scallabis de 32 para 42 milhas, a distância aproximada entre Ceras e Santarém. Eventualmente houve troca entre os numerais “XXXXII” (42) e “XXXII” (32, omitindo o primeiro “X”) dado que esta forma de representar quatro dezenas surge em outras rotas do Itinerário (“XXXXX” em vez de “XL”).

Se por outro lado posicionarmos esta estação em Tomar, haveria que corrigir a distância de Seilium a Conimbriga, passando neste caso de 34 para 42 milhas, o que poderia ser explicado por eventual troca entre os numerais “XXXXII” (42) e “XXXIIII” (34), confundindo o terceiro “X” por dois traços verticais “II”.

Assim, haveria duas hipóteses de correcção:
Correcção com Seilium em Ceras
SCALLABIN
SEILIUM XXXXII (42)
CONIMBRIGA XXXIIII (34)

Correcção com Seilium em Tomar
SCALLABIN
SEILIUM XXXIIII (34)
CONIMBRIGA XXXXII (42)

Em síntese, a localização de Seilium em Tomar está longe de estar fechada e nada nos dados disponíveis permite descartar a hipótese da sua identificação com a arruinada fortificação referida na Carta de Doação do Termo de Cera à Ordem de Cristo. Acima de tudo, mais que resolver a questão, pretendemos alertar para as incertezas que ainda rodeiam a identificação de muitos destes topónimos, cujas localizações são por vezes dadas como seguras, quando na verdade estamos bem longe dessas supostas certezas. No próximo artigo analisaremos a passagem da via por Conímbriga.

Bibliografia citada:
AMENDOEIRA, J. ; MARTINS, A. C. (2020) – “Vieira Guimarães (1864-1939) e a arqueologia em Tomar: uma abordagem sobre o território e as gentes”. In J. M. Arnaud, C. Neves, & A. Martins (Eds.), Arqueologia em Portugal: 2020 – Estado da Questão (pp. 101-112). Associação dos Arqueólogos Portugueses | CITCEM.
BARREIROS, Gaspar (1561) – “Chorographia de alguns lugares que stam em hum caminho que fez Gaspar Barreiros”. Coimbra: João Aluarez.
BATATA, C. (1997) – “As origens de Tomar: a carta arqueológica do concelho”. Tomar: Centro de Estudos e Protecção do Património da Região de Tomar.
BATATA, C. (2023) – “O termo de Cera, os Templários e o povoamento do espaço”. Tomar: II Colóquio Internacional da Rota Templária Europeia. Cadernos Culturais Nabantinos, Vol. 3, 127-133.
BARROCA, M. J. (1997) – “A Ordem do Templo e a arquitectura militar portuguesa”. Portvgália, Nova Série, Vols. XVII-XVIII (1996-1997), 171-209.
FERNANDES, L. S.; FERREIRA, R. (2002) – “Marcas de oficina em tijolos romanos de Seilium. Conimbriga, 41, 257-267.
GUIMARÃES, Vieira (1927) – “Thomar. Sta. Iria”. Lisboa: Livraria Coelho.
MANTAS, Vasco G. (1996) – “A Rede Viária Romana da Faixa Atlântica entre Lisboa e Braga”. Dissertação de doutoramento (policopiada), Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
PONTE, Salete da (1995) – “Achegas para a Carta Arqueológica – Tomar”. Porto: in Portugália, Vol. XVI, 291-309.
ROMÃO, João M. (2012) – “No encalço do passo do Homem medieval: as vias de comunicação do antigo termo e atual concelho de Tomar”. Dissertação de Mestrado em Arqueologia – FCSH.