Apesar de ser uma região fortemente romanizada, a rede viária do Algarve na antiguidade continua com várias questões em aberto. As diferentes propostas que têm sido aventadas, muitas vezes incompatíveis entre si, não permitem traçar um quadro geral da rede com segurança. O primeiro investigador que abordou o problema de forma científica foi Estácio da Veiga nos finais do século XIX, iniciando um conjunto de estudos com base na evidência arqueológica que ia compilando e publicando durante as suas prospecções no terreno. Ao propor em definitivo a localização de Balsa na área da actual Quinta de Torre de Aires (em vez de Tavira) e de Baesuris no povoado sidérico de Castro Marim (em vez de Ayamonte), Veiga veio esclarecer muitas das dúvidas que permaneciam sobre a localização destes aglomerados desde as propostas iniciais de André de Resende no século XVI (Veiga, 1886). Por sua vez, a localização Ossonoba em Faro só ficou definitivamente estabelecida em meados do século XX por Abel Viana, desfazendo outro equívoco de Resende que associara Ossonoba aos vestígios monumentais da villa de Milreu em Estoi (Resende, 1593: fl.189; Viana, 1952: 250-285).
Segundo o Itinerário de Antonino (IA, 425.6), estes três povoados portuários do litoral Algarvio estavam interligados por uma via, seguindo presumivelmente paralela à linha de costa (Veiga, 1886). No início do século XX foi identificado próximo de Bias do Sul (Olhão) o único miliário até hoje conhecido do Algarve (IRCP 660), achado que parecia confirmar um trajecto próximo do litoral.
Fotos do miliário tombado aquando da sua descoberta, a sua reutilização numa nora de Bias, e detalhe da epígrafe com as letras realçadas (in Mascarenhas, 1967).
O marco foi desenterrado a uma profundidade de 50 cm já tombado junto da «Canada de Bias», aparentemente in situ, sendo posteriormente reutilizado numa nora ali próximo. Fernandes Mascarenhas refere a existência junto ao marco de “vestígios de construções, tais como caboucos espessos e bocados de telha e tijolo muitíssimo grossos” (Mascarenhas, 1967: 3-11). Mascarenhas também propôs que as 10 milhas gravadas no marco indicavam a distância a Faro que ronda de facto esse valor. Deste então, generalidade dos investigadores fazem passar a via litoral por Bias (Mantas, 1990: 184, 1997; Silva, 2002, 2005 e 2007; Rodrigues, 2004; Maia, 2006). Actualmente este marco encontra-se em exposição no Museu de Olhão depois de ter passado pelo Museu Paroquial de Moncarapacho.
Apesar da aparente consistência dos dados disponíveis, na verdade não há qualquer evidência no terreno da passagem por Bias de uma via na direcção este-oeste, facto que Mascarenhas contorna fazendo passar a via pela actual N125 (Mascarenhas, 1967: 9). A ser assim, então a via teria de seguir a norte da villa da Quinta do Marim em direcção a Faro. No entanto, tudo indica que este percurso é moderno, dado que cruza diversos esteiros que no período romano penetravam bem para interior da costa, nomeadamente através do Ribeiro do Tronco e da Ribeira de Marim. Pelo contrário, tudo indica que o percurso antigo seria por Moncarapacho, continuando depois em direcção à Ponte Velha de Quelfes e daqui a Faro (ver itinerário).
Mas a ser assim, então o miliário de Bias não poderia assinalar essa via ao longo do litoral, mas uma outra via, mas qual? Para sul, temos o oceano, logo a via só poderia correr para norte, perpendicular à estrada para Faro. E de facto o miliário apareceu tombado junto de um caminho antigo designado por «Canada de Bias» que parte para norte e que ainda hoje é utilizado como caminho rural, seguindo na direcção de Moncarapacho e daqui por São Brás de Alportel até Querença, entroncando aqui no itinerário principal de Faro a Alcácer do Sal (Salacia). Por sua vez, esta via cruzava a serrania Algarvia rumo ao povoado pré-romano do Castro da Cola (Ourique), presumível localização de Arannis, estação viária a 60 milhas de Faro de acordo com o Itinerário XXI de Antonino.
Muito próximo do local onde apareceu o miliário, existe uma encruzilhada de estradas junto da casa da Quinta do Neto que poderia ser o local original da sua implantação, dado que este local se encontra a cerca de 3 milhas de Moncarapacho. Nesta encruzilhada existe um bebedouro para animais e um poço em relação directa com a estrada, evidenciando o carácter viário deste local (fotos). Este acerto torna-se evidente logo na primeira milha que era vencida junto da Ermida de São Sebastião dos Matinhos (ou do Bitoito) em Belo Romão.
A partir de Moncarapacho, a via prosseguia o seu percurso para norte até próximo do Cerro do Moinho de Pereiro (m.p. VI), junto do qual inflectia para noroeste rumo a São Brás de Alportel, passando junto do Poço do Cavaleiro (m.p. VIII) e do casal romano de Desbarato, situado a 9 milhas de Bias. Este lugar é mencionado na “Crónica da Conquista do Algarve“, como sendo o local onde Dom Paio Peres Correia e os seus cavaleiros pernoitaram, aquando da sua incursão a Tavira (Agostinho, 1792), possivelmente junto da fonte referida num auto de 1595 “…no primçipio das terras do desbarato domde esta húa fonte por marquo.” (Vinagre, 2006: 53).
É interessante notar que o nome deste lugar, ‘desbarato’, pode ser, segundo alguns autores, uma derivação da palavra árabe ‘bis-barat’ (Silva, 2002: 76) com a qual podemos relacionar o enigmático topónimo de ‘Bias’. Por sua vez, o termo ‘barat‘ poderia ser ‘balat‘ no nome original que tem o significado genérico de ‘via’ ou ‘caminho calcetado’. Se assim for, então o topónimo ‘bis-balat’ poderia ser lido como ‘calçada de Bias’, ou seja, seria uma referência directa à via na sua passagem por Desbarato, mas não dispomos de outros dados que o confirmem.
De Desbarato a via seguia até à décima milha que era vencida no sítio do Cerro da Mesquita, sendo a estrada aparentemente referida num auto de 1595 como “caminho do Chamso a dar no Ribeiro da Mesquita […] e dahi vai a partisão pelo ribeiro da fonte da mesquita que he muito antiga” (Vinagre, 2006:55). Na área são conhecidos diversos casais romanos relacionáveis com esta paragem, mas não há sinais de qualquer povoado nas proximidades. Deste modo, é possível que esta estação esteja relacionada com algum lugar de culto, presumível antecessor da mesquita aparentemente denunciada pelo respectivo topónimo.
A via continuava por São Brás Alportel, passando ligeiramente a norte desta povoação pelo lugar de Campina, onde deveria existir nova estação viária a 12 milhas de Bias. Daqui partia um ramal de ligação a Faro passando por Estoi (também com 12 milhas), mas a via que estamos a descrever continuava mantinha a sua directriz noroeste, seguindo em direcção a Querença pelo caminho de Almarjão. Em Querença, entroncava na principal via que saía do Algarve para norte rumo a Alcácer do Sal, passando por Arannis, estação rodoviária mencionada no Itinerário 21 de Antonino, presumivelmente localizada no povoado pré-romano de Castro da Cola (Ourique).
A utilidade da ligação a Bias é mais bem compreendida quando analisamos o seu percurso no sentido inverso. Para quem chegava ao Algarve por Querença poderia rumar a Faro por Loulé ou seguir pela «Canada de Bias» até ao litoral, cruzando em Moncarapacho com a via litoral de Faro a Castro Marim, seguindo por Balsa e Tavira. A existência desta via de Querença rumo a Bias só poderia ser explicada assumindo a existência aí de um porto durante o período romano. Em 1841, João da Silva Lopes escrevia: “No sitio de Bias tem-se encontrado muitas sepulturas, todas com uma pedra na cabeceira, outra aos pés, e duas no meio” (Silva Lopes, 1841: 372). Também Fernando de Mascarenhas refere “o achado de imensos materiais de construção de tipo romano, muito próximo do mar” (Mascarenhas, 1967: 4). A cerca de 500 m da encruzilhada de Bias, existem ainda vestígios de uma torre quadrangular fortificada (designada por «Torre de Bias do Sul 2») que poderá estar relacionada com esta função portuária, apesar de a sua cronologia não recuar aparentemente para além do século XI.
A ser assim, então o miliário assinalava a distância do porto de Bias à estação viária do Cerro da Mesquita, local que concorda com as 10 milhas indicadas. A importância desta estação decorre do facto se localizar exactamente a meio percurso desta via, dado que daqui a Querença são também 10 milhas, perfazendo um total de 20 milhas, módulo que aliás se repete na via de Castro Marim a Faro com um total 40 milhas, tendo Tavira como ponto intermédio, dado que se encontra a 20 milhas tanto de Faro como da margem direita do Guadiana junto a Castro Marim (e não Balsa, fundada apenas no século I). Esta surpreendente concordância nas distâncias entre etapas não pode ser uma mera coincidência, mas antes um acto deliberado de estruturar a rede com distâncias normalizadas.
Neste contexto, importa recuperar a velha discussão sobre a localização da Statio Sacra mencionada na obra geográfica do Anónimo de Ravena, aparentemente localizada por este autor entre Balsa e Ossonoba (Rav. IV.43). Em 1877 Estácio da Veiga propôs a sua localização na Quinta do Marim, hipótese muito disseminada, mas que sempre levantou muitas dúvidas entre investigadores (Veiga, 1887: 390-391; Mantas, 1997: 315). O nome sugere a existência de um local de culto ou santuário rural, mas em Marim apenas foi identificado um mausoléu privado relacionado com a villa romana que ali existia (Graen, 2007: 277). Por sua vez, Leite de Vasconcelos associou-a ao Promontorium Sacrum (actual Cabo de São Vicente), supondo que corresponderia aos vestígios do centro de produção de ânforas da Praia do Martinhal (Vasconcelos 1905:198); mais recentemente foi associada a Moncarapacho (Silva, 2002: 47) e à villa de Milreu (Mantas, 2008: 247), mas nenhuma destas proposta foi até hoje confirmada. Moncarapacho seria de facto um bom candidato dado que se trata de uma estação viária da via Ossonoba-Balsa, no entanto é difícil de explicar a razão do “Anónimo” mencionar uma estação tão próximo Balsa (apenas 6 milhas), sendo que esta estação não é mencionada no Itinerário de Antonino.
Perante estas incoerências nas fontes, é possível que a Statio Sacra não estivesse relacionada com a estrada Ossonoba-Balsa, mas com esta via de Bias a Querença. Com base nos dados actualmente disponíveis, não podemos excluir a sua localização em qualquer das respectivas estações (nomeadamente em Bias, Moncarapacho, Mesquita, Alportel ou Querença), mas o facto do miliário indicar 10 milhas não pode ser ignorado, sugerindo que existia algum lugar relevante a essa distânciaa de Bias.
A ser assim, então a Statio Sacra estaria a 10 milhas de BIas, ou seja, nas proximidades da Fonte da Mesquita, remetendo eventualmente para um santuário rural, mas para já não passa de uma mera hipótese de trabalho, até porque o inverso também é possível, ou seja, a palavra “statio” também designava um ‘pequeno porto’, viabilizando a sua localização em Bias do Sul. Por sua vez, o epíteto “sacra” poderá, neste contexto, ter o sentido de “imperial” (Tovar, 1976: 206), sugerindo uma consagração do lugar ao culto imperial. O contexto arqueológico aponta também nesse sentido, nomeadamente uma inscrição consagrada a Augusto por um administrador (‘dispensator’) da vizinha cidade de Balsa (IRCP 74), assim como o próprio marco de Bias que terá sido colocado durante a dinastia júlio-cláudia, ou seja, em algum momento entre 27 a.C. e 68 d.C. (Encarnação, 1984: 720). A fundação de Balsa neste período (possivelmente em resultado do progressivo assoreamento do porto Tavira, do qual dista apenas 6 km), poderá ter implicado também a reforma do sistema viário, das quais a statio sacra e o miliário fariam eco.
Porém, seja qual for a verdadeira localização da misteriosa Statio Sacra, a importância desta estrada de Bias a Querença no contexto viário romano (e anterior) parece inquestionável, permitindo solucionar muitas das incongruências observadas nas anteriores propostas que em geral fazem seguir a estrada Ossonoba-Balsa por Torre de Aires, Bias e Marim, enquanto consideram que a estrada proveniente de Querença seguia pelo Cerro da Mesquita directo a Tavira, o que não se verifica no terreno. Naturalmente que estas propostas têm fortes implicações no quadro geral da rede viária do Algarve, com os itinerários revistos disponíveis em www.viasromanas.pt e os respectivos traçados no Mapa de Vias (a partir da versão 4.4).
Coordenadas dos pontos-chave desta rota:
Milha zero em Bias: 37.049608, -7.776432
Ermida de São Sebastião (m.p. I): 37.060587, -7.785435,
Desbarato (m.p. IX): 37.143647, -7.842630
Fonte da Mesquita: 37.146892,-7.854586
Cerro da Mesquita (m.p. X): 37.149943,-7.855184
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