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“Caminhos de Santiago” e a rede viária antiga

A recente proliferação dos chamados «Caminhos de Santiago», ainda que tenha os seus méritos, está a criar uma visão distorcida da viação antiga ao traçar percursos indiscriminados um pouco por todo o país sem bases históricas seguras. Seria necessário ter algum cuidado na elaboração destes percursos de modo a reflectir a verdadeira realidade da viação antiga, em vez de “forçar” um percurso que vai atalhando por aqui e acolá, vagamente em direcção a Santiago, e que na maioria da vezes nada têm de antigo.

Claro que se pode partir de qualquer ponto geográfico e seguir para Santiago, mas isso não significa que o caminho fosse utilizado para esse fim. O caminho utilizado pelos peregrinos seria seguramente pelas velhas vias herdadas do período romano (mas na realidade com origens bem mais antigas…), sendo que para além de umas pequenas variantes introduzidas ao longo dos tempos, estas rotas mantiveram-se praticamente inalterados até ao século XIX, momento a partir do qual foi necessária construir uma nova rede de estradas mais adaptada ao trânsito motorizado.

Ora, para quem partia do actual território português, as duas principais portas de acesso a Santiago seriam Tui e Chaves. A primeira corresponde à grande rota S-N oriunda de Lisboa que tal como hoje seguia paralela à costa passando por Santarém, Tomar, Coimbra e Porto, continuando depois pelo chamado «Caminho Central» por Barcelos até Valença. Naturalmente que para vinha das Beiras o caminho mais directo seria via Braga, continuando pela via Bracara-Tudae até Valença. Este eixo viário, agregava várias rotas que cruzavam o Rio Douro respectivamente em Porto Antigo, Caldas de Aregos e Régua. Deste último local partia uma via rumo a Chaves passando junto do Santuário de Panóias e cruzando depois por alturas da Serra da Padrela, onde recebia uma uma outra via também proveniente de outro importante cruzamento do Rio Douro em Numão (Vesúvio/Ns. da Ribeira) que vinha por Carlão e Alto do Pópulo até reunir com o eixo Régua-Chaves junto da importante exploração mineira romana de Trêsminas. A partir de Chaves, os peregrinos entravam na Galiza, seguindo na direcção de Torre de Sandiás (Ourense), a estação de Geminas referida no Itinerário XVIII de Bracara a Asturica, eixo que cruzava neste ponto, continuando daqui para Santiago.

A prevalência destes trajectos antigos por toda a Idade Média e mesmo em períodos bem posteriores, inviabiliza a hipótese de o caminho seguir uma “via medieval” para Santiago diferente da utilizada no período romano, apesar de aqui ou ali terem sido introduzidas algumas variantes ao longo dos séculos. Deste modo, o mapa que apresentamos acaba por ser panorama das rotas disponíveis para quem se dirigia para Santiago, que partindo de qualquer ponto rapidamente entrava na rede geral antiga pois esta cobria praticamente a totalidade do actual território português.

Miliário convertido em Alminhas junto da Igreja de Ns. de Cervães (Mangualde)

Daqui resulta que apesar de estarmos a falar de diferentes momentos temporais, o caminho romano e medieval é no essencial a mesma realidade física. Isso mesmo se verifica ao percorrer estes eixos viários pois a grande maioria das alminhas, ermidas, cruzeiros e marcos divisórios do período medieval assinalando a passagem da via estão posicionados em concordância com a marcação miliária de 1500 m, ou seja com a chamada “milha romana”. Ou seja, mesmo nos troços onde não há miliários, é possível seguir a marcação de mil em mil passos através desses marcadores da estrada que acompanham o peregrino ao longo do trajecto.

Miliário no adro da Igreja Românica de Rubiães reconvertido em sarcófago no período Medieval

A densidade histórica e tipologia destes percursos nada tem a ver com esta multiplicidade de percursos que têm sido criados rumo a Santiago, distorcendo a realidade histórica, tirando o peregrino da verdadeira experiência imersiva que estes caminhos históricos proporcionam.