Tag Archives: cale

Rede viária entre Douro e Vouga

Fig. 1 – A rede viária antiga na região litoral entre Douro e Vouga (actualização 2024)

A recente revisão do trajecto do Itinerário XVI entre Lisboa e Porto que tem vindo a ser publicada em artigos recentes evidencia finalmente um acerto total do percurso com a contagem miliária. Daqui resultam as propostas de identificação das estações mais problemáticas referidas nesta rota, no caso, as estações de Ierabriga, Seilium e Talabriga, cuja localização continua em discussão, mas que segundo este estudo seriam identificadas respectivamente com os povoados proto-históricos do Monte dos Castelinhos (Castanheira do Ribatejo), Castro de Ceras (Tomar) e Castro da Ns. do Socorro (Albergaria-a-Velha). 

A solidificação do percurso proposto e coerência com a contagem miliária permite identificar os possíveis locais de cruzamento com outras vias, ditas secundárias. Em resultado desta análise, foi possível definir melhor o traçado das variantes e vias transversais a este eixo norte-sul que funcionava (e funciona ainda hoje), como coluna vertebral de toda a rede viária do litoral português. Em artigos anteriores referiu-se o caso da via transversal por Alenquer e da chamada Via Colimbriana, variante da rota XVI que partia também de Coimbra rumo ao Tejo, mas que seguia por uma trajecto alternativo (“saltando” Conímbriga), passando em Penela, Ansião e Fungalvaz, reunindo com o eixo principal a sul de Tomar, logo após esta cruzar o rio Nabão.

O mesmo se passou na região entre Vouga e Douro, onde as dúvidas eram muitas devido à incoerência com as distância indicadas nos roteiros romanos (possivelmente um erro), como discutido neste anterior post. Com a fixação da nova proposta de trajecto passando junto do Castro da Ns. do Socorro (Talábriga, segundo a contagem miliária), o traçado mais lógico seria este continuar directo ao Castro de Lações, actualmente ocupado pelo Santuário da Sra. de La-Salette (ver novo itinerário aqui #lacoes), dado que a sua passagem junto do Castro de Úl obrigaria a um desvio desnecessário e à difícil travessia do rio Úl na base do castro quando existem trajectos mais facilitados, tal como aquele posteriormente seguido pela Estrada Real passando por Travanca. Ora, então como explicar o achado de um miliário na Igreja Paroquial de Úl?

Dada a extrema raridade de miliários neste eixo (facto que não deve desvalorizar a importância desta rota desde a antiguidade), e o facto do exemplar de Úl indicar 12 milhas, valor que se ajusta à distância entre Úl e a próxima estação mencionada nos itinerários, Langobriga, cuja identificação com o Castro de Monte Redondo em Fiães (Almeida e Santos, 1971) não sofre actualmente qualquer contestação, justificava a sua inclusão neste trajecto . Deste modo este testemunho viário foi sempre associado (e diga-se, com a toda a lógica) ao trajecto principal rumo a Lisboa, dado se encontrar no alinhamento deste eixo viário (Almeida, 1956).

No entanto, o relativo afastamento da rota principal permite equacionar uma outra explicação, a possibilidade de este marco assinalar não a via para Lisboa mas um ramal desta estrada rumo ao litoral que partia do Castro de Lações para sudoeste, cruzando Oliveira de Azeméis rumo a Úl . Deste modo, estaria explicado o facto de o segundo miliário ter sido encontrado em Adães, na outra margem do rio Antuã, junto da Igreja de Ns. de Febres, que se encontra precisamente a uma milha da Igreja de Úl (e a quatro milhas de Lações). Daqui a via um percurso sensivelmente paralelo ao rio Antuã até às proximidades do Castro de Salreu.

Pouco antes de atingir a actual povoação de Salreu, junto a Santo Amaro, confluía na chamada via litoral que liga Porto a Estarreja (rota da actual EN109), seguindo até à Capela da Ns. da Luz, local a 10 milhas de Úl e 32 milhas de Cale. Seguia depois por esta última cruzando o rio Antuã na base do Castro de Salreu, continuando por Canelas até Roxico, local fulcral da rede viária dado que se encontra a 15 milhas do Castro de Lações (e a 40 milhas de Cale), mas em particular porque se encontra a 12 milhas da Igreja de Úl que é a distância indicada no miliário ali encontrado.

A ser assim, indicaria a distância entre a travessia do rio Antuã e a área de Roxico em Fermelã, possível deturpação do topónimo Rio Seco (Bastos, 2006) mencionado num documento de (PMH DC 557), podendo indicar a distância do Castro de Úl ao acesso ao mar. Toda esta área está muito alterada devido ao actual assoreamento da ria, mas é possível aqui este local estivesse sobre a orla do paleo-estuário do Vouga, até porque na outra margem temos evidência de actividade portuário no povoado da Torre da Marinha Baixa, também hoje bem afastado do mar (Sarrazola, 2003: 160). Apesar da aparente relevância viária deste local não são conhecidos vestígios romanos ou anteriores em toda esta vasta área. Daqui haveria ligação ao eixo principal para Lisboa, quer partindo de Roxico rumo a Albergaria-a-Velha, quer continuando a sua directriz para sul, seguindo pelo Cabeço de Angeja rumo a Serém de Cima, isto é, entroncando no eixo para Lisboa a uma milha do local de cruzamento do rio Vouga.

Em síntese, estas propostas configuram uma variante da rota principal para Lisboa que desviava logo após a travessia do rio Douro em Cale e que seguia mais próxima do litoral até ao paleo-estuário do Vouga (ver #cale_vouga). A esta rota confluía o referido ramal que partia do Castro de Lações também rumo ao Vouga (e ao comércio marítimo), passando por Úl. O restante trajecto para Cale não sofreu alterações de monta.

Por fim, o ramal que partia do Picôto (EN1) pelo Castelo da Feira (reunindo com o eixo principal na Ponte da Pica, pouco antes de atingir o Castro de Lações), tem afinal continuação para o Castro de Crestuma, onde havia cais fluvial durante o período romano, criando assim o itinerário #crestuma_pica . Cruzando o rio seguia por Esposade, Compostela, Foz do Sousa e Alto do Jovim, seguindo a rota da Estrada de Dom Miguel  até ao nó viário de Monte Alto em Valongo onde entronca na via Cale-Tongóbriga (ver #porto_freixo), a 10 milhas do rio Douro. Uma variante desta rota cruzava o rio Douro no cais de Arnelas reunindo com variante por Crestuma, evitando assim o cruzamento do rio Sousa .

Fica assim completo o panorama geral da rede viária entre Douro e Vouga, em particular com a publicação destas novas propostas viasromanas.pt e cartografia dos respectivos trajectos no novo Mapa de Vias (ver. 5.5, Janeiro de 2024). A escassez de dados arqueológicos, nomeadamente de carácter epigráfico, não permite ainda confirmar estas identificações das estações viárias, mas tem a virtude de apontar o nosso olhar para locais de particular relevância para a rede viária, como a referida ligação de Cale ao estuário do Vouga, e dos sucessivos ramais que ligavam ao eixo principal para Lisboa, interligando os sucessivos povoados proto-históricos dispostos ao longo deste percurso como Lações e Ns. do Socorro ao mar.

Eventualmente, o nó viário viário do Rio Seco seria apenas o cais de passagem para a outra margem do paleo-estuário, assim explicando a ausência neste local de vestígios relevantes, enquanto na outra margem temos abundantes vestígios de um povoado portuário romano da Torre em Cacia, nomeadamente evidência de um complexo industrial para a produção de vidro, lugar simbólico de uma região ainda hoje com um forte carácter industrial.

Janeiro 2024

Bibliografia:

ALMEIDA, C.A.F.; SANTOS, E. (1971) – “O Castro de Fiães”. Revista da Faculdade de Letras. Série de História. II., 147-168.
ALMEIDA, F. de (1956) – “Marcos miliários da via romana «Aeminium-Cale»”. OAP, 2ª Série, Vol. III, 111-116.
BASTOS, M. R. (2006). O baixo Vouga em tempos medievos: do preâmbulo da Monarquia aos finais do reinado de D. Dinis. Diss. de Doutoramento – Universidade Aberta.
OLIVEIRA, Pa. M. de (1943) – “De Talabriga a Lancobriga pela Via Militar Romana”. Arquivo do Distrito de Aveiro, Vol. IX.
SARRAZOLA, A. (2003).- “Tentativa de enquadramento histórico dos contextos de abandono da Marinha Baixa/Torre (Cacia, Aveiro) – séc. V-VI”. Era Arqueologia 5: 150-163.

Notas sobre a via Bracara – Cale

O percurso da via romana que ligava Braga ao Porto está relativamente bem definido quer pelos muitos miliários que foram descobertos ao longo do seu trajecto como pela concordância geral com as 35 milhas indicadas no chamado “Itinerário de Antonino” e confirmadas pelo miliário encontrado em Braga indicando precisamente essa distância a Cale. No entanto, há vários troços que continuam duvidosos o que afecta o apuramento da marcação miliária e consequentemente também da distância total percorrida; a recente descoberta de um miliário no lugar da Barca (Maia) indicando 27 milhas a Braga veio (re)confirmar o percurso pela rota da actual EN14 (Ribeiro, 2016). Por outro lado, o lugar da Barca está a cerca de 8 milhas do Porto, perfazendo as 35 milhas necessárias para atingir Cale; mais difícil é explicar a distância a Braga pois os percursos actualmente propostos excedem esse valor, sugerindo que o trajecto seria mais curto em alguns troços. A análise da marcação miliária permitiu identificar dois tramos onde essa diferença é mais notória: a parte inicial à saída de Braga e o segmento que atravessa o Rio Ave para a Trofa.

No primeiro caso, a generalidade dos autores faz passar a via junto da “Igreja de Lomar” baseando-se numa notícia de Contador de Argote sobre um miliário a Crispo que ali existia (“Memórias…”, I, 236). Ora esta “Igreja de Lomar” seria a Igreja Paroquial de São Pedro (associada ao antigo mosteiro beneditino). Deste forma o percurso que tem sido proposto segue pela Ponte da Pedrinha, Mouta, Igreja de Lomar, Esporões, Trandeiras e Santo Estevão do Penso, cruzando depois a Portela do Castro do Monte Redondo rumo a Famalicão; no entanto, existe um percurso mais curto que partindo do Largo de Maximinos em Braga, seguia pela rua do Cruzeiro rumo a Figueiredo e a São Vicente do Peso, evitando assim o cruzamento do Rio da Veiga. Neste trajecto há uma coincidência da marcação miliária com alguns vestígios relevantes; de facto a primeira milha era vencida no lugar da Gandra na rua do Cruzeiro, junto a um possível marco romano; trata-se de bloco granítico bem talhado (eventual marco gromático) que terá “saído”, segundo vizinhos, das ruínas da casa anexa (ver no street view).

Pouco depois, a via cruza a linha férrea junto das «Alminhas da Estrada» e segue por Quintela onde subsiste um troço de via em razoável estado de conservação.

“Alminhas da Estrada” em Lomar, onde cruza a linha férrea
Possível troço da via romana em Quintela (Lomar)

A segunda milha seria atingida junto da travessia do Rio Este no lugar da Ponte Nova. Neste local existe uma ponte antiga (talvez medieval) e defronte temos a Capela de Lomar, conferindo-lhe uma função eminentemente viária. Tremenda coincidência que leva a pensar se o miliário de Crispo referido por Argote não estaria antes neste local; realmente é possível que o miliário tenha sido deslocado para a Igreja em data posterior ou poderá ter havido uma imprecisão no relato de Argote, visto que ele próprio reproduz uma notícia que lhe chegou por terceiros. Nas «Memórias Paroquiais» do século XVIII escrevia-se sobre Lomar: “Tem huma ponte de cantaria muito antiga que se chama a Ponte Nova“, indiciando uma velha passagem do rio muito mais antiga do que o topónimo sugere, até porque este local delimitava na época a Paróquia de Lomar, confrontando com Ferreiros.

Ponte de Lomar sobre o rio Este no lugar da Ponte Nova
Ponte e Capela de Lomar no lugar da Ponte Nova

Da Ponte Nova a via continua por Costa e Bemposta, atingindo a terceira milha junto das alminhas de São Miguel, continuando depois por Figueiredo (onde se assinalam vestígios na «Casa da Vila» e um tesouro monetário em Pipe) até São Vicente do Peso; seguia depois talvez pelas Alminhas da Senhor do Padrão (outro sugestivo topónimo), seguindo por Hospital (albergaria medieval), rumo à Portela do Monte Redondo, de onde descia a Vila Nova de Famalicão com miliários em Carreiras e São Cosme do Vale.

Ponte Medieval da Lagoncinha

O segundo desacerto está relacionado com a problemática questão do cruzamento do Rio Ave. A tradição historiográfica tem colocada esta travessia na Ponte Lagoncinha (construção medieval sem qualquer indício romano), solução que nunca foi convincente pois o alinhamento da ponte aponta na direcção de Santo Tirso e não da Trofa como seria expectável, obrigando a um percurso para a Trofa pela margem do rio, solução sempre evitada na viação antiga. Aliás, documentos medievais do Mosteiro de Santo Tirso referem a «Ponte Petrina» no rio Ave no limite norte do couto do mosteiro, sugerindo a ponte servia esta área e não a Trofa.

Proposta de traçado da via romana Bracara-Cale junto do Rio Ave

Deste modo, é mais provável que via continue por Montezelo para depois cruzar o rio Ave provavelmente na «Barca da Esprela», junto da foz do rio Pelhe (rio que vem a seguir deste a Portela do Monte Redondo), trajecto que é confirmado pelo miliário encontrado na Igreja Paroquial de Lousado em Montezelo (que estaria assim praticamente in situ), dado que este local se encontra a cerca de 2 milhas de Santa Catarina, onde apareceu outro miliário. Tudo leva a crer que este seria o verdadeiro traçado da via durante o período romano, encurtando o percurso algumas centenas de metros, o que permite acertar a marcação milária . ver itinerário aqui.