O cruzamento do Rio Alva na Ponte da Mucela

Um dos grandes itinerários que cruzava o nosso território tinha origem em Conímbriga e cruzava a Beira Alta rumo ao Rio Douro, seguindo por Bobadela, Celorico da Beira (onde cruza o Mondego), seguindo depois por Mêda rumo a duas importantes travessias do rio Douro, uma na Quinta de Vesúvio/Sra. da Ribeira e outra no Monte Meão/Foz do Sabor (e não rumo Salamanca como é comum afirmar-se).

Este itinerário tem sido associado à chamada “Estrada da Beira” que partia de Coimbra rumo a Celorico da Beira, mas a directriz deste trajecto aponta claramente para que sua origem em Conímbriga. A eventual ligação a Coimbra não parece viável no terreno, podendo o trajecto ser fluvial, nomeadamente a partir do Porto da Raiva ou Penacova. Ainda que haja caminhos na margem direita do Mondego, estes parecem dirigir-se a noroeste e não a Coimbra, o que fragiliza ainda mais a hipótese de uma via terrestre até essa cidade.

Se existem dúvidas no destino final da estrada, o local onde estrada cruzava o Rio Alva recolhe unanimidade, apontando para a área da Ponte da Mucela, tradicional ponto de passagem desde a Idade Média. No Monarquia Lusitana, o Fr. Francisco Brandão transcreve uma inscrição que estava colocada na ponte medieval, comemorando a sua construção no ano de 1295, durante o o reinado de D. Dinis. No entanto, a identificação de alguns silhares romanos reutilizados na construção medieval, permitia sustentar a hipótese de uma ponte romana anterior, talvez mais a jusante, próximo do povoado romano da Moura Morta, onde a travessia é bem mais facilitada.

Alterações introduzidas no traçado da Via Conímbriga – Bobadela na travessia do Rio Alva (linha vermelha), junto ao povoado romano de Moura Morta e a Serra do Bidueiro junto da mamoa de S. Pedro Dias.

O povoado assenta num meandro do rio Alva que rodeia o assentamento por todos lados menos do lado sul, por onde se acedia ao local. Contudo, as fortes arribas na outra margem inviabilizam a passagem junto ao assentamento. No entanto, entre este e a ponte, existe uma zona mais favorável ao cruzamento do rio, aproveitando depois uma lombada que ali existe para iniciar a ascensão da encosta em suaves patamares. Aliás a passagem neste local poderia até não exigir a construção de uma ponte, sendo que nesse caso, os silhares romanos poderão ter vindo do próprio povoado de Moura Morta que dista apenas cerca de 1 km da ponte actual.

Mas independentemente da questão se haveria ponte romana ou não, tudo indica que a travessia seria neste local pelas razões apontadas e também porque este traçado vem acertar a marcação miliária entre Conímbriga e Bobadela. De facto, a distância medida de Conímbriga ao Alva pelo percurso proposto totaliza 29 milhas (valor típico entre etapas), sendo que a milha 27 corresponde ao alto da portela da Serra do Bidueiro, onde se regista um monumento megalítico, a mamoa de S. Pedro Dias (local de romaria em torno da capela ali existente), evidenciando mais uma vez a grande antiguidade deste trajecto, pelo menos como caminho de pé-posto.

Esta correção permite também acertar a marcação miliária com a única paragem comprovada arqueologicamente no percurso entre o Alva e Conímbriga, a estação viária romana da Eira Velha (infelizmente recentemente destruída pela construção do troço Coimbra-Tomar da A13, em mais um atentado perfeitamente evitável), localizada a 22 milhas do Rio Alva e a sete milhas de Conímbriga. Esta via continuava para ocidente até Soure (possível cais fluvial do Mondego), onde apareceu um miliário.

A propósito de miliários, nesta via não se contam mais que três marcos, todos identificados nas proximidades de Seia, assinalando, aliás, o cruzamento com outro grande eixo viário, a via oriunda de Viseu que ligava ao Castro de São Romão (c. Seia), criando dúvidas sobre qual destas estradas seria assinalada por estes marcos.

O único que ainda mantém parte da epígrafe é de Maximiano e indicada XXI milhas, distância compatível com Bobadela e, mais ainda, com Celorico da Beira, que nesse caso, indicaria a distância ao Rio Mondego. No entanto, não podemos excluir a hipótese deste marco indicar a outra rota para Viseu, sendo que as 21 milhas são compatíveis com a distância daqui à travessia do Rio Dão na Ponte Romana de Alcafache. Actualmente encontra-se deslocado no jardim de uma casa de turismo rural em Paços da Serra. Recentemente foi identificado uma outro miliário (anepígrafo) junto do cemitério de Santa Comba que estará muito provavelmente in situ pelo que é decisivo par ao acerto da marcação miliária desta via. O terceiro foi identificado ali próximo, em Vila Chã, reutilizado como suporte de uma varanda de uma casa da aldeia, cuja morfologia e proximidade a Santa Comba sustenta a hipótese de se tratar de outro miliário.

Voltando à travessia do Alva na Mucela, o sítio da Moura Morta não apresenta ocupação da Idade do Ferro pelo que se trata de uma estabelecimento de fundação romana para apoio e controlo da via (eventualmente uma statio). No entanto, enquanto não houver um escavação do povoado nada mais se pode acrescentar.