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Passagem por Tomar

Num artigo anterior referiram-se as dúvidas existentes sobre o verdadeiro trajecto da via Santarém-Coimbra na sua aproximação a Tomar. Equacionaram-se três possíveis rotas entre Golegã e Tomar. Uma rota seguia rumo a Paialvo e daqui, cruzando a ribeira de Beselga, seguia rumo a Tomar, sendo esta a representada no mapa publicado. A segunda possibilidade seria a via passar junto do miliário de Santa Catarina em Delongo, cruzando a ribeira de Beselga para Marmeleiro e daqui a Tomar. Por último, havia ainda a possibilidade de existir uma rota mais directa pela povoação de Asseiceira, seguindo depois a margem direita do Nabão até Tomar.

Qualquer destas hipóteses não diverge significativamente, seja em termos de distância percorrida, seja por obstáculos a vencer, seja pela quantidade de vestígios arqueológicos nas suas proximidades, tornando difícil optar por um destes traçados (Fig. 1). Nestes casos é necessário recorrer a um outro critério – a contagem miliária – que apesar de mais trabalhosa e demorada, tem permitido solucionar este tipo de problemas na identificação do trajecto.

Fig. 1 – As várias rotas possíveis na aproximação a Tomar

Com efeito, a identificação dos pontos onde as milhas seriam vencidas em cada uma das hipóteses, permitiu analisar e identificar qual dos trajectos está mais de acordo com essa contagem. Com efeito a hipótese por Delongo parece ser a única que permite acertar a contagem miliária a partir de Santarém, contando-se exactamente 34 milhas entre a travessia do rio Alviela na base do morro de Scallabis e o local de travessia do rio Nabão, junto à Igreja de Santa Maria do Olival em Tomar (Fig. 2).

Fig. 2 – A antiga proposta por Paialvo e, a azul, a nova proposta passando no miliário de Santa Catarina em Delongo (34 m.p.)

Deste modo, o miliário de Santa Catarina assinalava um ponto estratégico da rede viária, o ponto onde a via proveniente de Santarém bifurcava em duas grandes rotas alternativas rumo à travessia do rio Mondego em Coimbra. A primeira é referida no I.A., seguindo por Tomar, Ceras, Rego da Murta, Barqueiro, Aljazede e Conímbriga. A segunda rota seguia por Paialvo, Fungalvaz, Ansião, Penela e Aljazede até à estação viária de Eira Velha, continuando daqui para Coimbra.

Fig. 3 – Versão final após correcções.

Esta alteração do nó viário de Paialvo para Delongo tem também implicações na possível via que seguia para Tancos que, pelo alinhamento das ruas actuais, parece derivar também deste nó viário. Uma nova versão do mapa será publicada em breve com esta e outras correcções recentes, assim como a actualização das descrições destas rotas em viasromanas.pt

Parte 2 || Scallabis

Continuando a série de posts sobre o Itinerário XVI vamos agora analisar a sua passagem por Santarém rumo a Tomar. Não restam muitas dúvidas sobre a associação do povoado que ocupava o morro de Santarém a Scallabis. Segundo o Itinerário, esta estação estava a 32 milhas de Ierabriga, distância compatível com o percurso entre o Povoado dos Castelinhos e a base do morro de Santarém junto à margem direita do Tejo (ver post anterior).

Item ab OLISIPONE BRACARAM AUGUSTAM  m.p. CCXLIII
Ierabriga m.p. XXX
Scallabis m.p. XXXII
Seilium m.p. XXXII

Fig. 1 – Traçado da Via Ierabriga Scallabis passando por Alenquer (miliários) e Ota (castro). m.p. XXXII

De Scallabis a via continuava até Seilium percorrendo, segundo o Itinerário, 32 milhas. Ora, este valor parece insuficiente para cobrir o percurso entre Santarém e Tomar dado que a distância em linha recta se aproxima já das 31 milhas. Deste modo, é provável que a via seguisse pela margem do rio e não uma rota mais interior passando por Torres Novas como tem sido proposto (Mantas, 1996; Romão, 2012). Aliás, este corresponde ao trajecto descrito pelo Padre Castro no seu Roteiro Terrestre para a Estrada Real de Santarém a Tomar.

A partir de Santarém a via seguia por quatro milhas (uma légua) até à “Cruz da Entrada”, também designada por Cruz da Légua , havendo vestígios romanos nas proximidades (Cirne). Logo depois fazia a travessia o rio Alviela para daí cruzar a antiga Ilha de Alvisquer por Azinhaga rumo à Golegã (Figura 2). Inicialmente fizemos passar a via próximo do importante povoado fortificado de Chões de Alpompé (a 8 milhas a norte de Santarém) e do povoado de Pombalinho (vestígios de ocupação que remonta à Idade do Bronze).

Fig. 2 – Novo traçado da via a norte de Santarém (azul), seguindo pela antiga Ilha de Alvisquer. A marcação miliária coloca a milha XII em Azinhaga, possível mutatio.

No entanto, a marcação miliária aponta para um traçado mais recto seguindo em direcção a Azinhaga, a 12 milhas a Santarém, sugerindo que neste local haveria estação viária, provavelmente uma mutatio.  Aliás, o topónimo Azinhaga remete para a existência da via (do árabe, “o-caminho”). O troço em causa começa na Cruz da Légua (4 m.p. a Santarém), onde há vestígios romanos (Cirne) e segue pela antiga Ilha de Alvisquer até Azinhaga (Figura 2).

Cruzava depois o Rio Almonda em direcção à Golegã, mas a partir daqui as dúvidas acentuam-se, dado que não foi ainda possível determinar o local onde se fazia a travessia da Ribeira de Beselga. Existem várias possibilidades que reduzimos a três hipóteses. A primeira hipótese seguia mais a ocidente por Paialvo, trajecto mais de acordo com a viação antiga pois cruza a Ribeira da Beselga mais a montante . A segunda hipótese (cor rosa) seguia um percurso mais recto a Tomar cruzando a Ribeira de Beselga junto do miliário dos Santos Mártires. Por fim, existe ainda a hipótese da via seguir o percurso da antiga “Estrada Real” Santarém-Tomar passando em Atalaia e Asseiceira e Santa Cita, seguindo depois a margem direita do Nabão até Tomar.

Fig. 3 – Possíveis variantes entre a Golegã e Tomar. A actual proposta faz passar a via por Paialvo. A rosa o traçado por Atalaia, bifurcando em duas variantes, uma passando junto do miliário de Santos Mártires e outro por Asseiceira.

Na Carta de Doação da albergariam de Saiceira em 1222 a Pedro Ferreiro e a Maria Vasques, sua mulher, com a “condição de a aproveitarem e utilizarem melhor do que os seus antecessores”, refere como limite oeste da propriedade a ‘strata colimbriana ad Sanctarem’ desde a “Conchada de Beselga” até ao término ‘inter ambas lagonas´ (PMM doc 72), no entanto, a localização destes locais é incerta e não sabemos a qual das hipóteses se refere.

Em síntese, a via de Santarém a Tomar seguia uma rota paralela ao rio Tejo até à Golegã, mas a partir daqui parece bifurcar, um ramo seguindo mais a oeste por Paialvo, Fungalvaz, Ansião e Eira Velha, em direcção a Coimbra, e outro, o referido no Itinerário, seguia directo a Tomar para aí cruzar o rio Nabão, continuando por Ceras rumo a Conímbriga. No entanto, não há acerto com as distâncias indicadas no documento para a etapa seguinte entre Seilium e Conimbriga, pois o Itinerário indica 34 milhas, valor manifestamente insuficiente para cumprir o percurso entre Tomar e Conímbriga, problema que será abordado na Parte 3 desta série de artigos, a propósito da localização de Seilium.