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Parte 4 || Conímbriga

Continuando a descrição do Itinerário XVI, vamos agora analisar a sua passagem por Conimbriga, seguramente localizada nas ruínas romanas junto de Condeixa-a-Velha, subsistem ainda dúvidas sobre qual seria o trajecto da via. A indicação de 10 milhas a Aeminium, actual Coimbra, é também coerente com esta identificação.

Itinerário XVI
Seilium
Conimbriga m.p. XXXIIII
Aeminium m.p. X
Talabriga m.p. XL

A aproximação à cidade fazia-se sem dúvida pelo lugar de Tamazinhos, onde apareceu um miliário indicando oito milhas, valor compatível com a distância a Conímbriga, no entanto, subsistem dúvidas sobre o trajecto seguido até à cidade romana que, tal como as restantes estações deste itinerário, assenta sobre um povoado anterior pré-romano (Correia, 1993).

O primeiro traçado proposto seguia um trajecto directo à cidade, passando por Fonte Coberta e lugar do Poço. No entanto, este percurso era suspeito e avesso à normal tipologia da viação antiga dado que obriga a uma dupla travessia do Rio de Mouros.

Tentou-se assim uma alternativa que evitasse esse obstáculo, fazendo seguir a via mais a nascente, por Alcabideque, local onde subsiste o sistema romano de captação da água que alimentava a cidade por um aqueduto. Se por um lado, esta hipótese permitia um trajecto menos acidentado e mais directo Coimbra, por outro lado, não havia maneira de acertar a marcação miliária com as 10 milhas indicadas a Coimbra nem com as 8 milhas indicadas no miliário de Tamazinhos.

Fig. 1 – A vermelho as anteriores propostas e a azul o nova proposta de traçado da via cortando por Castelo/Ns. da Piedade (8 m.p), Ponte de Atadôa (9 m.p.) e Portela de Alfarda (10 m.p.).

Deste modo, procuramos uma alternativa que cumprisse com esses critérios. Depois de vários hipóteses, consideramos que o traçado mais provável seria aquele que vinha de Coimbra pela Venda do Cego, Eira Pedrinha e Ponte de Atadôa. Aliás, Gaspar Barreiros (com base num manuscrito de Acurcio) refere a existência de inscrições junto desta ponte, uma das quais mencionando um tal Valerius Avitus nascido em Conimbrica, o que permitiu associar este topónimo às ruínas junto a Condeixa-a-Velha (Barreiros, 1565: fl. 49-50; CIL II 391).

Fig. 2 – O nó viário de Conímbriga, cruzamento da Itinerário Olisipo-Bracara com o itinerário transversal de Collipo a Bobadela.

Ora, esta hipótese é reforçada pelo facto de Eira Pedrinha se encontrar a oito milhas de Coimbra, apontando para a existência de uma mutatio neste local. De facto, em torno da Capela da Sra. da Piedade apareceram vestígios romanos, nomeadamente tijolos de coluna e um pavimento de opus signinum. Por outro lado, no morro adjacente regista-se o topónimo “Castelo” que corresponde a um povoado do Bronze Final (Vilaça, 2012: 21). Apareceram também algumas pedras visigóticas, actualmente no Museu Machado de Castro, tendo uma delas sido reutilizada no arco cruzeiro (Gaspar, 1983: 189).

Continuando o percurso para sul, a nona milha era vencida junto da Capela de Atadôa, de onde partiria um ramal de acesso a Conímbriga perfazendo as 10 milhas indicadas no Itinerário. No entanto, para quem seguia para Olisipo poderia evitar a cidade seguindo em direcção à Portela da Mata da Alfarda, ponto que por sua vez está a 10 milhas de Coimbra e a 34 de Ceras como indicado no Itinerário (ver post anterior) .

O restante trajecto rumo à travessia do Rio Mondego não oferece grandes dificuldades, sendo a marcação miliária assinalada por vários sítios romanos que seguramente teriam uma função viária.

Fig. 3 – A via para Aeminium indicando a sequência de sítios romanos de acordo com a marcação miliária – Portela das Alfarda (10 m.p.), Atadôa (9 m.p.), Castelo (8 m.p.), Orelhudo (7 m.p.), Escoural (6 m.p.), Picoto/Malga (5 m.p.), Antanhol (4 m.p.), Ladeira da Paula (3 m.p.), Cruz dos Morouços (2 m.p.) e Carrascal (1 m.p.).

A meio percurso entre Eira Pedrinha e o Mondego viria a estabelecer-se um acampamento romano em Antanhol (destruído pela construção do aeródromo), permitindo exercer controlo sobre esta importante passagem.

Proposta de correção do trajecto a norte de Coimbra por um percurso mais directo a Sargento Mor, evitando o terreno acidentado de Cioga do Monte.

Depois de cruzar o rio, a via continuava para norte em direcção a Sargento Mor. Antes fazia-se passar a via por Cioga do Monte, mas o acidentado do terreno sugere uma ligação mais directa seguindo a rota da actual EN. A via seguia em direcção à povoação da Vimieira (Mealhada), local onde apareceu um miliário indicando doze milhas, ou seja, a distância daqui a Coimbra, indiciando a possível existência de uma estação viária neste local, possivelmente no sítio romano conhecido por «Cidade das Areias».

A via seguia depois por Anadia e Águeda rumo a Talabriga, estação que deverá estar relacionada com a travessia do Rio Vouga. No entanto, a sua localização continua a dividir os investigadores dado que o Itinerário indica 40 milhas entre Aeminium e Talabriga quando a distância entre o Mondego e o Vouga não ultrapassa as 34 milhas, problema que será abordado no próximo artigo centrado em Talabriga.

Bibliografia:
BARREIROS, Gaspar (1561) – “Chorographia de alguns lugares que stam em hum caminho que fez Gaspar Barreiros”. Coimbra: João Aluarez.
GASPAR, J.M. (1983) — “Condeixa‑a‑Nova de Augusto dos Santos Conceição”. Porto.
CORREIA, V.H. (1993) — “Os materiais pré‑romanos de Conímbriga e a presença fenícia no Baixo vale do Mondego”. Estudos Orientais [Os Fenícios no
Território Português]. Lisboa IV, p. 229‑283.
VILAÇA, R. (2012) – “Arqueologia do Bronze no Centro-Sul da Beira Litoral e Alta Estremadura (II-I milénios a.C.)”. Junta de Freguesia de Vila Nova: 16-32.

The crossing of the River Alva at the Mucela Bridge

One of the main itineraries that crossed the portuguese territory had origin in the city of Conímbriga, crossing the «Beira Alta» region towards the river Douro, passing in Bobadela, Celorico da Beira (where it crosses the Mondego River), and through the territory of the Civitas Aravorum (Marialva), linked to important crossings of the Douro, one in Quinta de Vesúvio/Sra. da Ribeira and another on Monte Meão/Foz do Sabor (and not for Salamanca as had been said).

This itinerary has been associated to the so called “Estrada da Beira” (Beira Road) that starts in the city Coimbra and links to Celorico da Beira, but the direction of this route clearly indicates that its origin was in Conímbriga and not in Coimbra. A possible branch connecting to Coimbra, although not impossible, does not seem feasible, since the derivations of the route connect not to Coimbra but to fluvial ports in the Mondego (namely Porto da Raiva and Penacova). Although there are tracks on the other bank, these seem to be heading northwest and not towards Coimbra, which further weakens this hypothesis. Inevitably, these tracks end up crossing the route coming from Viseu towards Coimbra, and thus can follow this way that city, but the various inflections in the way are not consistent with the existence of an independent track linking Coimbra to Bobadela.

If there are doubts about the final destinations of the road, the place where the road crossed the River Alva is unanimous, pointing to the area of «Ponte da Mucela», a traditional crossing point since the Middle Ages. In the book Monarquia Lusitana, Fray Francisco Brandão transcribes an inscription that was placed on the medieval bridge, commemorating its construction in 1295, during the reign of King Dinis. However, the identification of some Roman stones that were reused in the medieval construction supports the hypothesis of an earlier Roman bridge, perhaps further downstream, near the Roman settlement of Moura Morta, where the crossing is much easier.

Changes introduced to the route Via Conímbriga – Bobadela at the crossing of the Alva River (red line), near the Roman settlement of Moura Morta and crossing of «Serra do Bidueiro» near the megalithic «mamoa» of S. Pedro Dias.

The settlement is located on a meander of the River Alva, which surrounds the settlement on all sides but the southern side, from where the site was accessed. However, the strong cliffs on the other bank make it impossible to cross at the base of the settlement. However, between this place and the bridge, there is a more favourable area to cross the river, taking advantage of a hump that exists there to start the ascent of the hillside in gentle steps. In fact, the passage through this area might not even require the construction of a bridge, in which case, the Roman ashlars  could have come from the village of Moura Morta itself, which is only about 1 km from the current bridge.

But independently of the question if the existence of a Roman bridge, everything points for the crossing here of the river for the reasons explained above and also because this tracing is in line with the mile sequence between Conímbriga and Bobadela. In fact, the distance from Conímbriga to the Alva River through the proposed route totals 29 miles (typical value between stages), and the 27th mile points to the top of the mountain gateway of Serra do Bidueiro, next to megalithic monument called «Mamoa of S. Pedro Dias» (a pilgrimage to this site takes place everyear), showing once again the great antiquity of this route, at least as a footpath.

This correction also allows us to match the sequence of miles with the only known station in this route, located in Eira Velha (unfortunately recently destroyed by the construction of the Coimbra-Tomar section of the A13 highway, another avoidable destruction of Roman structures next to the road), which is located 22 miles from Rio Alva and seven miles from Conímbriga. This track continued westwards until the town of Soure (eventually a river port of the Mondego), where a milestone was found.

Regarding milestones, there are only three on this route, all of them found near Seia, at the crossing with another major road, the route from Viseu to São Romão castrum (c. Seia), so we do not know for sure which of the two routes was marked by milestones.

The only one that still keeps part of the inscription is from Imperor Maximiano, indicating XXI miles, a distance compatible with Bobadela and Celorico da Beira, but which seems more appropriate to the latter, in this case marking the distance to the Mondego River. It is currently located in the garden of a rural tourism house in Paços da Serra. Recently, another milestone (anepigraphic) was identified near the Santa Comba cemetery, which is most probably in situ, and is therefore decisive to adjust the milestone sequence. The third one was identified nearby, in the village of Vila Chã, and it was reused as support of a balcony of a house, whose morphology and proximity to Santa Comba supports the hypothesis that it is in fact another milestone of this route.

Returning to the crossing of the Alva river at Mucela, the Moura Morta site does not have any sign of a previous Iron Age occupation, which means that it was established by the romans, eventually to control this passage (possibly a statio). However, until the settlement is excavated, nothing more can be added.

O cruzamento do Rio Alva na Ponte da Mucela

Um dos grandes itinerários que cruzava o nosso território tinha origem em Conímbriga e cruzava a Beira Alta rumo ao Rio Douro, seguindo por Bobadela, Celorico da Beira (onde cruza o Mondego), seguindo depois por Mêda Civitas Aravorum, bifurcando para duas importantes travessias do Douro, na Quinta de Vesúvio/Sra. da Ribeira e Monte Meão/Foz do Sabor ( e não para Salamanca como é comum afirmar-se).

Este itinerário tem sido associado à chamada “Estrada da Beira” que partia de Coimbra rumo a Celorico da Beira, mas directriz deste trajecto aponta claramente para que sua origem estivesse em Conímbriga e não em Coimbra. Um possível ramal ligando a Coimbra, ainda que não impossível, não parece viável, sendo que as derivações da via ligam a portos fluviais no Mondego (nomeadamente Porto da Raiva e Penacova), podendo o restante percurso até Coimbra ser por via fluvial. Ainda que haja caminhos na outra margem, estes parecem dirigir-se para noroeste e não para Coimbra, o que fragiliza ainda mais esta hipótese. Estes acabam inevitavelmente por ter de cruzar a via proveniente de Viseu rumo a Coimbra, podendo seguir por esta até essa cidade, mas as diversas inflexões do percurso não se coadunam com a existência de uma via independente ligando Coimbra a Bobadela.

Se existem dúvidas no destino final da estrada, o local onde estrada cruzava o Rio Alva recolhe unanimidade, apontando para a área da Ponte da Mucela, tradicional ponto de passagem desde a Idade Média. No Monarquia Lusitana, o Fr. Francisco Brandão transcreve uma inscrição que estava colocada na ponte medieval, comemorando a sua construção no ano de 1295, durante o o reinado de D. Dinis. No entanto, a identificação de alguns silhares romanos reutilizados na construção medieval, permitia sustentar a hipótese de uma ponte romana anterior, talvez mais a jusante, próximo do povoado romano da Moura Morta, onde a travessia é bem mais facilitada.

Alterações introduzidas no traçado da Via Conímbriga – Bobadela na travessia do Rio Alva (linha vermelha), junto ao povoado romano de Moura Morta e a Serra do Bidueiro junto da mamoa de S. Pedro Dias.

O povoado assenta num meandro do rio Alva que rodeia o assentamento por todos lados menos do lado sul, por onde se acedia ao local. Contudo, as fortes arribas na outra margem inviabilizam a passagem junto ao assentamento. No entanto, entre este e a ponte, existe uma zona mais favorável ao cruzamento do rio, aproveitando depois uma lombada que ali existe para iniciar a ascensão da encosta em suaves patamares. Aliás a passagem neste local poderia até não exigir a construção de uma ponte, sendo que nesse caso, os silhares romanos poderão ter vindo do próprio povoado de Moura Morta que dista apenas cerca de 1 km da ponte actual.

Mas independentemente da questão se haveria ponte romana ou não, tudo indica que a travessia seria neste local pelas razões apontadas e também porque este traçado vem acertar a marcação miliária entre Conímbriga e Bobadela. De facto, a distância medida de Conímbriga ao Alva pelo percurso proposto totaliza 29 milhas (valor típico entre etapas), sendo que a milha 27 corresponde ao alto da portela da Serra do Bidueiro, onde se regista um monumento megalítico, a mamoa de S. Pedro Dias (local de romaria em torno da capela ali existente), evidenciando mais uma vez a grande antiguidade deste trajecto, pelo menos como caminho de pé-posto.

Esta correção permite também acertar a marcação miliária com a única paragem comprovada arqueologicamente no percurso entre o Alva e Conímbriga, a estação viária romana da Eira Velha (infelizmente recentemente destruída pela construção do troço Coimbra-Tomar da A13, em mais um atentado perfeitamente evitável), localizada a 22 milhas do Rio Alva e a sete milhas de Conímbriga. Esta via continuava para ocidente até Soure (possível cais fluvial do Mondego), onde apareceu um miliário.

A propósito de miliários, nesta via não se contam mais que três marcos, todos identificados nas proximidades de Seia, assinalando, aliás, o cruzamento com outro grande eixo viário, a via oriunda de Viseu que ligava ao Castro de São Romão (c. Seia), criando dúvidas sobre qual destas estradas seria assinalada por estes marcos.

O único que ainda mantém parte da epígrafe é de Maximiano e indicada XXI milhas, distância compatível com Bobadela e, mais ainda, com Celorico da Beira, que nesse caso, indicaria a distância ao Rio Mondego. No entanto, não podemos excluir a hipótese deste marco indicar a outra rota para Viseu, sendo que as 21 milhas são compatíveis com a distância daqui à travessia do Rio Dão na Ponte Romana de Alcafache. Actualmente encontra-se deslocado no jardim de uma casa de turismo rural em Paços da Serra. Recentemente foi identificado uma outro miliário (anepígrafo) junto do cemitério de Santa Comba que estará muito provavelmente in situ pelo que é decisivo par ao acerto da marcação miliária desta via. O terceiro foi identificado ali próximo, em Vila Chã, reutilizado como suporte de uma varanda de uma casa da aldeia, cuja morfologia e proximidade a Santa Comba sustenta a hipótese de se tratar de outro miliário.

Voltando à travessia do Alva na Mucela, o sítio da Moura Morta não apresenta ocupação da Idade do Ferro pelo que se trata de uma estabelecimento de fundação romana para apoio e controlo da via (eventualmente uma statio). No entanto, enquanto não houver um escavação do povoado nada mais se pode acrescentar.