Transformações na orla costeira II – Costa Algarvia

As transformações do sistema portuário desde a antiguidade até à atualidade são particularmente evidentes na costa algarvia, onde muitos dos portos da antiguidade estão hoje completamente inutilizados. À partida, poderíamos pensar que estas alterações se devem a um lento e progressivo assoreamento das desembocaduras dos rios, num processo similar à costa ocidental, no entanto, há fortes sinais de que estas grandes alterações geomorfológicas da costa algarvia podem antes resultar de eventos sísmicos como foi o caso do famoso Terramoto de Lisboa de 1755.

A hipótese de algumas das alterações da costa terem ocorrido de forma repentina em resultado de eventos sísmicos que periodicamente afectam a região é reforçada pelas “cicatrizes” deixadas na paisagem de toda a orla costeira algarvia. Os impactos do terramoto e consequente maremoto de 1755 na costa algarvia foram bem documentados na época, mostrando consequências catastróficas para  pessoas, edifícios e estruturas portuárias (Hindson et al., 1996; Chester, 2010). 

No entanto, este evento mais recente está longe de ser um caso isolado, dado que há fortes indícios da ocorrência de eventos de grande energia muito similares ao de 1755, havendo indicadores arqueológicos e geofísicos que apontam para uma sucessão de três grandes eventos, um século III a.C. (Gómez et al., 2015: 68), outro no século I e ainda outro no século III d.C. (Roth et al., 2015). O impacto destes sucessivos tsunami terão afectado  importantes portos da antiguidade, outrora florescentes, como seja Baesuris, Balsa e Ossonoba (respectivamente Castro Marim, Tavira e Faro). A perda da função portuária parece estar na origem também do abandono dos portos de Vila Velha de Alvor, Vilamoura e Cacela Velha.

O caso da foz do rio Gilão, é particularmente interessante porque, ao contrário de Faro, Tavira  apresenta uma descontinuidade de ocupação que parece alinhar com este fenómenos naturais. Com efeito, a cidade assenta sobre uma povoação proto-histórico que recua até ao período Fenício, mas surpreendentemente o povoado é abandonado por volta do século III a.C, portanto, ainda antes da ocupação romana, facto que pode estar relacionado com o grande evento sísmico ocorrido em 218-209 a.C (Gómez et al., 2015: 68). 

Fig. 1 – O povoado pré-romano de Tavira e a cidade romana de Balsa na actualidade.

Os sinais de presença romana apontam para a ocupação do “Cerro do Cavaco”, um alto a montante do rio, durante o período Republicano. No entanto, por volta do século I, a administração romana decide construir uma uma nova cidade portuária, a cerca de quatro milhas a oeste de Tavira, a cidade de Balsa (Fabião, 1992-93: 233-234; Mantas, 2003: 85-94). No entanto, também esta viria a ser abandonada pelos finais do século III d.C., mais uma vez com paralelo temporal com o tsunami responsável pela destruição da cidade costeira de Baelo Claudia (localiza a cerca de 22 km oeste de Tarifa), dado que todas as colunas da cidade jaziam deitadas na mesma direcção, sinal que tinham sido derrubadas por acção de uma grandes onda (Silva et alli, 2005). 

O mesmo acontece no rio Guadiana, cuja geomorfologia na antiguidade era muito diferente da atual com base numa descrição detalhada em “Ora Marítima”, obra escrita pelo poeta latino Rúfio Avieno no século IV d.C., apesar da viagem nela relatada referir fatos ocorridos no século VI a.C. 

Ana amnis illic per Cynetas effluit sulcatque glaebam. panditur rursus sinus cavusque caespes in meridiem patet. memorato ab amni gemina sese flumina scindunt repente perque praedicti sinus crassum liquorem (quippe pinguescit luto omne hic profundum) lenta trudunt agmina. hic insularum semet alte subrigit vertex duarum. nominis minor indiga est, aliam vocavit mos tenax Agonida.
(Avieno, “Ora Marítima”, versos 201-211)

Segundo o texto de Avieno, o rio Ana dividia-se de repente em dois braços navegáveis antes de desaguar no mar, correndo para o mar em suas águas espessas (“flumina scindunt repente perque praedicti sinus crassum liquorem“), especificando que de facto em toda a sua profundidade era aqui carregada de lodo (quippe pinguescit luto omne hic profundum) onde há duas ilhas (“hic insularum semet alte subrigit“), possivelmente as atuais Isla Canela e Isla del Moral (fig. 1)

Fig. 2 – A orla costeira do tempo (A) romano e (B) na actualidade; Coastal Engineering, 1992 “The Punta Úmbria (Huelva) spit”, António Lechuga e José María Villaverde) https://icce-ojs-tamu.tdl.org/icce/index.php/icce/article/download/4849/4530

A foz do Guadiana era um local estratégico para a rota marítima do Mediterrâneo pois o rio é   navegável daqui até Mértola,  importante porto fluvial da antiguidade  (antiga Myrtilis) situado a 60 Km para interior, posição que oferecia excelentes condições para escoamento de produtos do hinterland alentejano. O acesso a partir do mar era dominado pelo povoado proto-histórico de Castro Marim, local onde apareceram muitos materiais de importação, sinal de uma pujante atividade comercial. Os materiais mais antigos foram datados do século V a.C. (Arruda, 1996: 97), no entanto, o registo arqueológico aponta para o abandono do povoado por volta do século III a.C., sendo novamente ocupado muito mais tarde, já em período romano Republicano (Arruda, 1984; 2002). 

Posteriormente, durante o Alto-Império há sinais de uma renovada atividade, dado o aparecimento de grande quantidade de terra sigillata desse período, após o qual se assiste a novo declínio (Viegas, 2011: 437). Com efeito, os materiais de importação cessam por completo pelos finais do século I, inícios do II d.C., sinal do acentuado declínio da atividade comercial (Fabião, 1992-93: 233; Viegas, 2006: 415; 2011: 518), eventualmente substituído pelo fundeadouro romano da Punta del Moral  (Encinas e Teyssandier, 2013).

Fig. 3 – Reconstituição paleogeográfica do estuário do Guadiana, mostrando a amarelo as áreas arenosas entretanto formadas e a vermelho os pontos de povoamento romano. Poster del “El Fondeadero Romano de Punta del Moral”, B. Cabaco Encinas y E. García Teyssandier; ArqueoGuadiana, 2012). https://www.academia.edu/19483918

O local só volta a ser ocupado já na Idade Média. Actualmente todo o cerro onde assenta o castelo (e o antigo povoado pré-romano) está rodeado de terra firme e zonas de sapal, mas no século XVI as águas ainda chegavam perto das muralhas do castelo, havendo referência à acostagem de “naus de 100 toneladas a tomar o sal que ali há” apesar das crescentes dificuldades de navegação nos esteiros (Garcia, 1996: 68).

Esta descontinuidade de ocupação de Castro Marim poderá assim também estar relacionada com estes fenómenos naturais, promovendo as grandes alterações geomorfológicas registadas no estuário do Guadiana, o que permite estabelecer uma relação causal (ver Quadro 1) entre estes dados arqueológicos e geofísicos (Gómez et al., 2015: 67).


Evento
Castro Marim Tavira
III a.CAbandono do povoado pré-romanoAbandono do povoado pré-romano
I d.CAbandono e estabelecimento do fundeadouro romano na Punta del Moral  Abandono e fundação da cidade romana de Balsa
III d.C.Castro Marim permanece deserto; abandono da Punta del MoralAbandono de Balsa e do seu porto de mar
1755Devastação do povoado medieval; sedimentação da orla costeira; abandono de Cacela Velha e fundação de Vila Real de Santo AntónioDevastação do povoado medieval; sedimentação da orla costeira

Quadro 1 – Tabela comparativa entre eventos sísmicos e históricos em Tavira e Castro Marim.

À medida que avançamos para nascente, já no território espanhol, este padrão repete-se nos restantes portos desta faixa costeira virada a sudoeste e portanto sujeita também aos impactos dos referidos fenómenos.  Por exemplo, na foz do rio Odiel, a cidade de Huelva foi muito afetada pelo terramoto de 1755, contando-se na época mais de 1000 mortos e inúmeros edifícios destruídos (Lima et al., 2010; 146). Na antiguidade esta povoação era designada por Onuba e constituía um porto importante desta rota marítima, mas que terá perdido a sua relevância à medida que o canal de acesso ao mar se ia estreitando, conforme é representado na reconstituição paleográfica da Fig. 2.

O mesmo acontece na foz do Guadalquivir que na antiguidade formava uma vasto estuário navegável que permitia o acesso aos portos abrigados e â via fluvial pelo Guadalquivir acima até Sevilha (antiga Hispalis), importante porto comercial da antiguidade que ainda no século XVI constituía a principal base de apoio às explorações marítimas espanholas. Atualmente este  estuário apresenta-se totalmente assoreado e o acesso a Sevilha é apenas possível com pequenas embarcações (Fig. 4).

Fig. 4 – Os portos de Onuba e Hispalis – a vermelho as vias antigas contornando o vasto paleo-estuário do Guadalquivir e a azul a via fluvial até Sevilha.
Fig. 5 – Pormenor das formações arenosas do Parque Doñana evidenciam o impacto de grandes ondas.

Em imagens de satélite desta parte da orla costeira (2022) é facilmente observável as grandes dimensões do paleo-estuário, hoje totalmente assoreado e que constitui em grande parte a área protegida do actual Parque Nacional de Doñana  (Ruiz et al., 2010), apresentando ainda sinais bem vincados do impacto de uma grande onda (ver fig. 5).

Síntese:
As transformações sofridas pela orla costeira portuguesa nos últimos dois milénios têm alterado dinâmicas portuárias, forçado as populações a abandonar povoados costeiros, procurando novos locais de ancoragem. Surpreende que algumas destas transformações surgem de forma muito repentina e bem vincada num determinado período temporal o que permite estabelecer uma relação entre esses eventos e acontecimentos históricos comprovados pela arqueologia, coincidência temporal que permite estabelecer uma relação causa-efeito entre estes dados.

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