Rede viária entre Douro e Vouga

Fig. 1 – A rede viária antiga na região litoral entre Douro e Vouga (actualização 2024)

A recente revisão do trajecto do Itinerário XVI entre Lisboa e Porto que tem vindo a ser publicada em artigos recentes evidencia finalmente um acerto total do percurso com a contagem miliária. Daqui resultam as propostas de identificação das estações mais problemáticas referidas nesta rota, no caso, as estações de Ierabriga, Seilium e Talabriga, cuja localização continua em discussão, mas que segundo este estudo seriam identificadas respectivamente com os povoados proto-históricos do Monte dos Castelinhos (Castanheira do Ribatejo), Castro de Ceras (Tomar) e Castro da Ns. do Socorro (Albergaria-a-Velha). 

A solidificação do percurso proposto e coerência com a contagem miliária permite identificar os possíveis locais de cruzamento com outras vias, ditas secundárias. Em resultado desta análise, foi possível definir melhor o traçado das variantes e vias transversais a este eixo norte-sul que funcionava (e funciona ainda hoje), como coluna vertebral de toda a rede viária do litoral português. Em artigos anteriores referiu-se o caso da via transversal por Alenquer e da chamada Via Colimbriana, variante da rota XVI que partia também de Coimbra rumo ao Tejo, mas que seguia por uma trajecto alternativo (“saltando” Conímbriga), passando em Penela, Ansião e Fungalvaz, reunindo com o eixo principal a sul de Tomar, logo após esta cruzar o rio Nabão.

O mesmo se passou na região entre Vouga e Douro, onde as dúvidas eram muitas devido à incoerência com as distância indicadas nos roteiros romanos (possivelmente um erro), como discutido neste anterior post. Com a fixação da nova proposta de trajecto passando junto do Castro da Ns. do Socorro (Talábriga, segundo a contagem miliária), o traçado mais lógico seria este continuar directo ao Castro de Lações, actualmente ocupado pelo Santuário da Sra. de La-Salette (ver novo itinerário aqui #lacoes), dado que a sua passagem junto do Castro de Úl obrigaria a um desvio desnecessário e à difícil travessia do rio Úl na base do castro quando existem trajectos mais facilitados, tal como aquele posteriormente seguido pela Estrada Real passando por Travanca. Ora, então como explicar o achado de um miliário na Igreja Paroquial de Úl?

Dada a extrema raridade de miliários neste eixo (facto que não deve desvalorizar a importância desta rota desde a antiguidade), e o facto do exemplar de Úl indicar 12 milhas, valor que se ajusta à distância entre Úl e a próxima estação mencionada nos itinerários, Langobriga, cuja identificação com o Castro de Monte Redondo em Fiães (Almeida e Santos, 1971) não sofre actualmente qualquer contestação, justificava a sua inclusão neste trajecto . Deste modo este testemunho viário foi sempre associado (e diga-se, com a toda a lógica) ao trajecto principal rumo a Lisboa, dado se encontrar no alinhamento deste eixo viário (Almeida, 1956).

No entanto, o relativo afastamento da rota principal permite equacionar uma outra explicação, a possibilidade de este marco assinalar não a via para Lisboa mas um ramal desta estrada rumo ao litoral que partia do Castro de Lações para sudoeste, cruzando Oliveira de Azeméis rumo a Úl . Deste modo, estaria explicado o facto de o segundo miliário ter sido encontrado em Adães, na outra margem do rio Antuã, junto da Igreja de Ns. de Febres, que se encontra precisamente a uma milha da Igreja de Úl (e a quatro milhas de Lações). Daqui a via um percurso sensivelmente paralelo ao rio Antuã até às proximidades do Castro de Salreu.

Pouco antes de atingir a actual povoação de Salreu, junto a Santo Amaro, confluía na chamada via litoral que liga Porto a Estarreja (rota da actual EN109), seguindo até à Capela da Ns. da Luz, local a 10 milhas de Úl e 32 milhas de Cale. Seguia depois por esta última cruzando o rio Antuã na base do Castro de Salreu, continuando por Canelas até Roxico, local fulcral da rede viária dado que se encontra a 15 milhas do Castro de Lações (e a 40 milhas de Cale), mas em particular porque se encontra a 12 milhas da Igreja de Úl que é a distância indicada no miliário ali encontrado.

A ser assim, indicaria a distância entre a travessia do rio Antuã e a área de Roxico em Fermelã, possível deturpação do topónimo Rio Seco (Bastos, 2006) mencionado num documento de (PMH DC 557), podendo indicar a distância do Castro de Úl ao acesso ao mar. Toda esta área está muito alterada devido ao actual assoreamento da ria, mas é possível aqui este local estivesse sobre a orla do paleo-estuário do Vouga, até porque na outra margem temos evidência de actividade portuário no povoado da Torre da Marinha Baixa, também hoje bem afastado do mar (Sarrazola, 2003: 160). Apesar da aparente relevância viária deste local não são conhecidos vestígios romanos ou anteriores em toda esta vasta área. Daqui haveria ligação ao eixo principal para Lisboa, quer partindo de Roxico rumo a Albergaria-a-Velha, quer continuando a sua directriz para sul, seguindo pelo Cabeço de Angeja rumo a Serém de Cima, isto é, entroncando no eixo para Lisboa a uma milha do local de cruzamento do rio Vouga.

Em síntese, estas propostas configuram uma variante da rota principal para Lisboa que desviava logo após a travessia do rio Douro em Cale e que seguia mais próxima do litoral até ao paleo-estuário do Vouga (ver #cale_vouga). A esta rota confluía o referido ramal que partia do Castro de Lações também rumo ao Vouga (e ao comércio marítimo), passando por Úl. O restante trajecto para Cale não sofreu alterações de monta.

Por fim, o ramal que partia do Picôto (EN1) pelo Castelo da Feira (reunindo com o eixo principal na Ponte da Pica, pouco antes de atingir o Castro de Lações), tem afinal continuação para o Castro de Crestuma, onde havia cais fluvial durante o período romano, criando assim o itinerário #crestuma_pica . Cruzando o rio seguia por Esposade, Compostela, Foz do Sousa e Alto do Jovim, seguindo a rota da Estrada de Dom Miguel  até ao nó viário de Monte Alto em Valongo onde entronca na via Cale-Tongóbriga (ver #porto_freixo), a 10 milhas do rio Douro. Uma variante desta rota cruzava o rio Douro no cais de Arnelas reunindo com variante por Crestuma, evitando assim o cruzamento do rio Sousa .

Fica assim completo o panorama geral da rede viária entre Douro e Vouga, em particular com a publicação destas novas propostas viasromanas.pt e cartografia dos respectivos trajectos no novo Mapa de Vias (ver. 5.5, Janeiro de 2024). A escassez de dados arqueológicos, nomeadamente de carácter epigráfico, não permite ainda confirmar estas identificações das estações viárias, mas tem a virtude de apontar o nosso olhar para locais de particular relevância para a rede viária, como a referida ligação de Cale ao estuário do Vouga, e dos sucessivos ramais que ligavam ao eixo principal para Lisboa, interligando os sucessivos povoados proto-históricos dispostos ao longo deste percurso como Lações e Ns. do Socorro ao mar.

Eventualmente, o nó viário viário do Rio Seco seria apenas o cais de passagem para a outra margem do paleo-estuário, assim explicando a ausência neste local de vestígios relevantes, enquanto na outra margem temos abundantes vestígios de um povoado portuário romano da Torre em Cacia, nomeadamente evidência de um complexo industrial para a produção de vidro, lugar simbólico de uma região ainda hoje com um forte carácter industrial.

Janeiro 2024

Bibliografia:

ALMEIDA, C.A.F.; SANTOS, E. (1971) – “O Castro de Fiães”. Revista da Faculdade de Letras. Série de História. II., 147-168.
ALMEIDA, F. de (1956) – “Marcos miliários da via romana «Aeminium-Cale»”. OAP, 2ª Série, Vol. III, 111-116.
BASTOS, M. R. (2006). O baixo Vouga em tempos medievos: do preâmbulo da Monarquia aos finais do reinado de D. Dinis. Diss. de Doutoramento – Universidade Aberta.
OLIVEIRA, Pa. M. de (1943) – “De Talabriga a Lancobriga pela Via Militar Romana”. Arquivo do Distrito de Aveiro, Vol. IX.
SARRAZOLA, A. (2003).- “Tentativa de enquadramento histórico dos contextos de abandono da Marinha Baixa/Torre (Cacia, Aveiro) – séc. V-VI”. Era Arqueologia 5: 150-163.

Passagem por Tomar

Num artigo anterior referiram-se as dúvidas existentes sobre o verdadeiro trajecto da via Santarém-Coimbra na sua aproximação a Tomar. Equacionaram-se três possíveis rotas entre Golegã e Tomar. Uma rota seguia rumo a Paialvo e daqui, cruzando a ribeira de Beselga, seguia rumo a Tomar, sendo esta a representada no mapa publicado. A segunda possibilidade seria a via passar junto do miliário de Santa Catarina em Delongo, cruzando a ribeira de Beselga para Marmeleiro e daqui a Tomar. Por último, havia ainda a possibilidade de existir uma rota mais directa pela povoação de Asseiceira, seguindo depois a margem direita do Nabão até Tomar.

Qualquer destas hipóteses não diverge significativamente, seja em termos de distância percorrida, seja por obstáculos a vencer, seja pela quantidade de vestígios arqueológicos nas suas proximidades, tornando difícil optar por um destes traçados (Fig. 1). Nestes casos é necessário recorrer a um outro critério – a contagem miliária – que apesar de mais trabalhosa e demorada, tem permitido solucionar este tipo de problemas na identificação do trajecto.

Fig. 1 – As várias rotas possíveis na aproximação a Tomar

Com efeito, a identificação dos pontos onde as milhas seriam vencidas em cada uma das hipóteses, permitiu analisar e identificar qual dos trajectos está mais de acordo com essa contagem. Com efeito a hipótese por Delongo parece ser a única que permite acertar a contagem miliária a partir de Santarém, contando-se exactamente 34 milhas entre a travessia do rio Alviela na base do morro de Scallabis e o local de travessia do rio Nabão, junto à Igreja de Santa Maria do Olival em Tomar (Fig. 2).

Fig. 2 – A antiga proposta por Paialvo e, a azul, a nova proposta passando no miliário de Santa Catarina em Delongo (34 m.p.)

Deste modo, o miliário de Santa Catarina assinalava um ponto estratégico da rede viária, o ponto onde a via proveniente de Santarém bifurcava em duas grandes rotas alternativas rumo à travessia do rio Mondego em Coimbra. A primeira é referida no I.A., seguindo por Tomar, Ceras, Rego da Murta, Barqueiro, Aljazede e Conímbriga. A segunda rota seguia por Paialvo, Fungalvaz, Ansião, Penela e Aljazede até à estação viária de Eira Velha, continuando daqui para Coimbra.

Fig. 3 – Versão final após correcções.

Esta alteração do nó viário de Paialvo para Delongo tem também implicações na possível via que seguia para Tancos que, pelo alinhamento das ruas actuais, parece derivar também deste nó viário. Uma nova versão do mapa será publicada em breve com esta e outras correcções recentes, assim como a actualização das descrições destas rotas em viasromanas.pt

Travessias do Douro entre Régua e Numão

O acidentado terreno das margens do rio Douro não permite a circulação de carros paralelamente ao rio. Assim, por regra, todas as vias na região assumem uma orientação norte-sul, aproveitando as lombadas das encostas que caiem para o rio, e cruzando este (por barca), ascendia na outra margem por nova lombada rumo à zona planáltica.

A imperativa necessidade de cruzar este grande rio da Península, em conjunto com a sua orografia particularmente difícil, moldou uma densa rede de vias norte-sul com inúmeros pontos de travessia não muito distantes entre si. Muitos dos estudos sobre viação antiga no Douro ignoram esta regra, sugerindo ligações paralelas ao rio que apesar de parecerem lógicas no mapa são inviáveis no terreno, com fortes pendente e difíceis travessias dos seus afluentes que se precipitam encosta abaixo para o rio Douro.

Os principais pontos de passagem do rio estão razoavelmente identificados, mas subsistiam muitas dúvidas no troço do rio que medeia entre Peso da Régua e terras de Numão. Os achados arqueológicos e alguns troços de via antiga apontavam para alguns nós viários importantes como Moimenta da Beira, Paredes da Beira, Penedono e São João da Pesqueira. No entanto, os trajectos finais destas vias continuavam incertos tanto para norte como para sul do rio. Deste modo, os achados que apontavam para a existência de um vicus viarum em cada um destes nós, permaneciam descontextualizados do ponto de vista viário.

Uma via anteriormente identificada provinha de Chaves em direcção ao rio Douro passando na região mineira de Trêsminas e junto do Santuário de Panóias, cruzando o rio junto a Covelinhas. Seguia depois próximo do Castro de Goujoim rumo a Moimenta da Beira. Uma derivação desta estrada desviava em Campo de Jales para sudeste por Alto do Pópulo rumo à travessia do rio Tua junto das Caldas de Carlão. Daqui seguia para a travessia do Douro junto do povoado mineiro da Senhora da Ribeira, cruzando depois o território de Numão.

Havia suspeitas da existência de outras vias no espaço que medeia entre Covelinhas e Numão, nomeadamente a via que cruzava Paredes da Beira no concelho de São João da Pesqueira (onde se regista um povoado romano), e um outro troço que ligava as povoações de Longa e Riodades, no concelho de Tabuaço, passando no vicus de Fontelo.

A recente identificação pelo arqueólogo José Carlos Santos de um possível miliário na povoação da Longa foi o factor que veio despoletar um novo estudo da rede viária na área que permitiu resolver finalmente as questões que permaneciam em aberto. Em concreto, toda a bibliografia consultada prolongava o troço da via este-oeste entre Arcos e Longa em direcção à travessia do rio Tedo, junto da actual povoação de Granja do Tejo. Na outra margem, temos o Castro de Coujoim e a via Chaves-Moimenta, sugerindo uma ligação entre estas duas vias.

As dúvidas que se mantinham sobre esta solução resultam das fortes pendentes da descida para o rio Tedo, portanto, incompatíveis com uma via para carros. A identificação do referido miliário em Longa permitiu finalmente esclarecer a questão. Desde logo, o achado de um miliário em Longa vem confirmar a existência de uma rota romana através deste caminho milenar.

Mas o detalhe que apontou em definitivo para a solução foi a informação precisa da sua localização que o colocava junto de um caminho de saída da aldeia para oeste, como seria expectável, sugerindo que estaria in situ (hipótese que se veio posteriormente a confirmar). No entanto, o referido caminho não se dirige para Granja do Tedo, mas para norte, inflectindo portanto o seu trajecto rumo ao rio Douro.

Estava assim levantada a forte possibilidade de o troço de via entre Longa e Arcos integrar uma grande rota romana. Seguindo o trajecto mais provável até ao Douro, verifica-se que a via se dirige à foz do rio Tedo (foz do rio Ceira na outra margem), local onde atravessava o rio Douro. Tal como neste caso, muitas das travessias do Douro são feitas junto da foz dos principais afluentes, evitando assim a necessidade de os cruzar próximo da sua confluência no Douro.

Medindo a distância entre a margem do rio e o marco que está em Longa, contam-se cerca de 12 milhas, mostrando que há acerto da contagem miliária, ainda por cima em torno do valor típico entre estações viárias e o rio, como por exemplo, no caso Panóias, também a 12 milhas do Douro. Resolvido o trajecto da via para norte, havia que estudar a sua continuação na direcção oposta.

Fig.1 – A rede viária cruzando o rio Douro em Covelinhas, Foz do Tedo e Foz do Pinhão.

Partindo da povoação Longa, seguia então o troço de via anteriormente cartografado, passando em Arcos e próximo do vicus do Fontelo em direcção a Riodades, onde cruzava o rio Távora. Daqui seguia por Carapito e Chosendo, onde recentemente apareceu um miliário epigrafado (FE 864, 2023). A via continuava até à povoação de Guilheiro, importante nó viário no planalto, onde se cruzavam diversas rotas da região da Beira Alta.

Depois de Guilheiro, a via continuava para sul por Queiriz e Muxagata (miliário na igreja) rumo à travessia do rio Mondego no sítio da actual Ponte de Juncais. Esta rota seguia depois por Carrapichana e Linhares, e daqui, cruzando a Serra da Estrela, atingia a estação viária de Centum Celas em Belmonte, entroncando na grande rota para Mérida por Igaeditana (Idanha-a-Velha), cruzando o rio Tejo na famosa Ponte Romana de Alcântara.

Fig.2 – Confluência das vias da região no nó viário de Guilheiro

Em síntese, a descoberta do marco de Longa ainda in situ permitiu finalmente identificar esta grande rota que última análise ligava as importantes explorações mineiras da região Flaviense à capital da província, Emerita Augusta. Com efeito, ao prolongar a via para norte a partir do rio Douro, esta rota vai de encontro à via Chaves-Covelinhas referida acima, entroncando nesta junto do Castro de Lamares.

A identificação do trajecto desta rota, levou à resolução dos traçados prováveis de outras vias na região das quais apenas se tinha dados pontuais. De facto, tudo indica que existiam outras travessias do rio Douro a montante da passagem na foz do Tedo. Com efeito, foi também cartografada uma derivação da via que cruzava o Douro junto ao Pinhão, seguindo depois por Paredes da Beira, Penedono e Antas (estes últimos com possíveis miliários) rumo também ao nó viário de Guilheiro, evidenciando ainda mais a importância deste local como uma verdadeira encruzilhada de vias de toda esta região a sul do rio Douro.

Por fim, agradeço a José Carlos Santos a partilha do achamento destes marcos em resultado do seu aturado estudo da região, identificando e interpretando o imenso património arqueológico da região, que em geral continua praticamente desconhecido apesar de se encontrar numa zona turística por excelência como é a Região do Douro.

Ver mais detalhes nas entradas de Setembro e Outubro de 2023 do histórico de alterações em: https://viasromanas.pt/vrhist.html

Ver itinerários em:
https://viasromanas.pt/#tedo_guilheiro
https://viasromanas.pt/#selores_guilheiro
https://viasromanas.pt/#torto_belmonte

SANTOS, J. C. e ENCARNAÇÃO, J. d’ (2023a). Miliário em Chosendo, Sernancelhe. Ficheiro Epigráfico 255 (864).

Passagem por Alenquer

A rota antiga de Lisboa a Santarém seguia por Loures, Alverca, Vila Franca de Xira e Castanheira do Ribatejo, passando assim na base do Povoado dos Castelinhos, onde localizamos Ierabriga (a 30 milhas de Lisboa tal como indicado no Itinerário de Antonino). A partir daqui a via inflecte para o interior, afastando-se da margem do rio Tejo, rumo a Alenquer, de modo a evitar o cruzamento do Paúl de Ota. A sua passagem em Alenquer é atestada por diversos miliários, nomeadamente um exemplar muito danificado na Quinta de Santa Teresa, onde ainda se pode ler o numeral XV (Mantas, 2016), e outro, de Adriano, na Quinta do Bravo (CIL II 4633), actualmente no Museu Arqueológico do Carmo em Lisboa.

Fig. 1 – A antigo e nova proposta de traçado (linha azul) da passagem da via por Alenquer

A proposta inicial de trajecto fazia seguir a via por Quinta da Ferraguda e Pacheca rumo ao lugar de Paredes em Alenquer, passando deste modo junto do miliário da Quinta de Santa Teresa (Fig. 1). No entanto, uma análise mais cuidada do terreno permitiu identificar um caminho alternativo desviando na Quinta da Ferraguda por Carambancha, Estrada do Cemitério, Rua Francisco Ferreira e Rua Joaquim Falé, que segue em direcção à Quinta do Bravo, onde vencia a 33ª milha contadas a partir da margem do Tejo em Lisboa. Este caminho alternativo não provoca alterações significativas na contagem miliária de Lisboa a Santarém dado que as duas variantes têm sensivelmente a mesma distância
(rota azul na Fig. 1) .

O acerto da contagem miliária com a Quinta do Bravo sugere que o miliário estaria muito provavelmente in situ, tendo sido recolhido na quinta. No que resta da epígrafe lê-se a palavra refecit, sinal de que estrada sofreu obras de restauro durante o consulado de Adriano, mas infelizmente não sabemos qual seria a milha indicada. No entanto, pela sua posição é muito provável que indicasse a 33ª milha desde Lisboa (Fig. 2).

Fig. 2 – Mapa corrigido com localização do nó viário junto da Quinta do Bravo.

Há ainda notícia do achamento de vários outros vestígios na quinta, nomeadamente um pavimento em mosaico, uma árula votiva e três epígrafes funerárias, assim como moedas, lucernas, terra sigillata, taças de vidro e outros achados (Costa, 2012), que apontam para a existência de uma estação viária neste local .

Deste modo, é muito provável que o povoado romano se tenha desenvolvido em torno desta paragem (i.e. umvicus viarum), sendo que a maior concentração de vestígios se encontra numa área delimitada pela Quinta do Bravo, Quinta das Sete Pedras, Quinta de Santa Teresa e lugar de Paredes.

Um outro argumento que reforça a localização da estação na Quinta do Bravo, prende-se com a via transversal que cruzava Alenquer rumo ao Tejo. Como antes fazíamos o cruzamento destas vias em Paredes, não havia acerto na marcação miliária, mas ao colocarmos a intersecção das estradas na Quinta do Bravo obtemos um acerto da marcação também nesta via transversal.

De facto, a distância daqui ao Tejo é cerca de cinco milhas, enquanto para oeste, a via seguia até Dois Portos, onde cruzava o Rio Sizandro (a 13 milhas da Quinta do Bravo), seguindo daqui até Runa, onde entroncava na via Lisboa-Óbidos (Olisipo-Eburobrittium). Ora, a povoação de Runa encontra-se a quinze milhas da Quinta do Bravo, o que se somarmos as cinco milhas que levam à margem do Tejo, perfaz um total de 20 milhas, valor típico entre estações na rede viária antiga.

Esta nova configuração da rede viária em Alenquer, permite também equacionar a hipótese do miliário de Santa Teresa poder assinalar, não a via Lisboa-Santarém, mas esta via transversal entre Runa e o rio Tejo passando por Alenquer. Com efeito, as 15 milhas indicadas poderão corresponder à distância entre Runa e Alenquer que é também desse valor.

Esta possibilidade do marco assinalar uma outra via já tinha sido equacionada (Mantas, 2016), embora sem especificar a rota em concreto. Com esta nova proposta, fica assim explicado o facto de aparecer um miliário com este numeral num local que está a 33 milhas de Lisboa e a 29 de Santarém.

Bibliografia citada:
COSTA, M. C. (2010). Redes viárias de Alenquer e suas dinâmicas. Um estudo de arqueogeografia. Coimbra: Diss. de Mestrado FLUC.
COSTA, M. C. (2012). Apontamentos sobre a presença romana no Concelho de Alenquer. Vila Franca de Xira: Atas da Mesa Redonda “De Olisipo a Scallabis”, 115-130
MANTAS, Vasco G. (2016). O Miliário da Quinta de Santa Teresa (Alenquer) e outros problemas viários associados. Revista Cira Arqueologia nº 5, 76-85.

Transformações na orla costeira II – Costa Algarvia

As transformações do sistema portuário desde a antiguidade até à atualidade são particularmente evidentes na costa algarvia, onde muitos dos portos da antiguidade estão hoje completamente inutilizados. À partida, poderíamos pensar que estas alterações se devem a um lento e progressivo assoreamento das desembocaduras dos rios, num processo similar à costa ocidental, no entanto, há fortes sinais de que estas grandes alterações geomorfológicas da costa algarvia podem antes resultar de eventos sísmicos como foi o caso do famoso Terramoto de Lisboa de 1755.

A hipótese de algumas das alterações da costa terem ocorrido de forma repentina em resultado de eventos sísmicos que periodicamente afectam a região é reforçada pelas “cicatrizes” deixadas na paisagem de toda a orla costeira algarvia. Os impactos do terramoto e consequente maremoto de 1755 na costa algarvia foram bem documentados na época, mostrando consequências catastróficas para  pessoas, edifícios e estruturas portuárias (Hindson et al., 1996; Chester, 2010). 

No entanto, este evento mais recente está longe de ser um caso isolado, dado que há fortes indícios da ocorrência de eventos de grande energia muito similares ao de 1755, havendo indicadores arqueológicos e geofísicos que apontam para uma sucessão de três grandes eventos, um século III a.C. (Gómez et al., 2015: 68), outro no século I e ainda outro no século III d.C. (Roth et al., 2015). O impacto destes sucessivos tsunami terão afectado  importantes portos da antiguidade, outrora florescentes, como seja Baesuris, Balsa e Ossonoba (respectivamente Castro Marim, Tavira e Faro). A perda da função portuária parece estar na origem também do abandono dos portos de Vila Velha de Alvor, Vilamoura e Cacela Velha.

O caso da foz do rio Gilão, é particularmente interessante porque, ao contrário de Faro, Tavira  apresenta uma descontinuidade de ocupação que parece alinhar com este fenómenos naturais. Com efeito, a cidade assenta sobre uma povoação proto-histórico que recua até ao período Fenício, mas surpreendentemente o povoado é abandonado por volta do século III a.C, portanto, ainda antes da ocupação romana, facto que pode estar relacionado com o grande evento sísmico ocorrido em 218-209 a.C (Gómez et al., 2015: 68). 

Fig. 1 – O povoado pré-romano de Tavira e a cidade romana de Balsa na actualidade.

Os sinais de presença romana apontam para a ocupação do “Cerro do Cavaco”, um alto a montante do rio, durante o período Republicano. No entanto, por volta do século I, a administração romana decide construir uma uma nova cidade portuária, a cerca de quatro milhas a oeste de Tavira, a cidade de Balsa (Fabião, 1992-93: 233-234; Mantas, 2003: 85-94). No entanto, também esta viria a ser abandonada pelos finais do século III d.C., mais uma vez com paralelo temporal com o tsunami responsável pela destruição da cidade costeira de Baelo Claudia (localiza a cerca de 22 km oeste de Tarifa), dado que todas as colunas da cidade jaziam deitadas na mesma direcção, sinal que tinham sido derrubadas por acção de uma grandes onda (Silva et alli, 2005). 

O mesmo acontece no rio Guadiana, cuja geomorfologia na antiguidade era muito diferente da atual com base numa descrição detalhada em “Ora Marítima”, obra escrita pelo poeta latino Rúfio Avieno no século IV d.C., apesar da viagem nela relatada referir fatos ocorridos no século VI a.C. 

Ana amnis illic per Cynetas effluit sulcatque glaebam. panditur rursus sinus cavusque caespes in meridiem patet. memorato ab amni gemina sese flumina scindunt repente perque praedicti sinus crassum liquorem (quippe pinguescit luto omne hic profundum) lenta trudunt agmina. hic insularum semet alte subrigit vertex duarum. nominis minor indiga est, aliam vocavit mos tenax Agonida.
(Avieno, “Ora Marítima”, versos 201-211)

Segundo o texto de Avieno, o rio Ana dividia-se de repente em dois braços navegáveis antes de desaguar no mar, correndo para o mar em suas águas espessas (“flumina scindunt repente perque praedicti sinus crassum liquorem“), especificando que de facto em toda a sua profundidade era aqui carregada de lodo (quippe pinguescit luto omne hic profundum) onde há duas ilhas (“hic insularum semet alte subrigit“), possivelmente as atuais Isla Canela e Isla del Moral (fig. 1)

Fig. 2 – A orla costeira do tempo (A) romano e (B) na actualidade; Coastal Engineering, 1992 “The Punta Úmbria (Huelva) spit”, António Lechuga e José María Villaverde) https://icce-ojs-tamu.tdl.org/icce/index.php/icce/article/download/4849/4530

A foz do Guadiana era um local estratégico para a rota marítima do Mediterrâneo pois o rio é   navegável daqui até Mértola,  importante porto fluvial da antiguidade  (antiga Myrtilis) situado a 60 Km para interior, posição que oferecia excelentes condições para escoamento de produtos do hinterland alentejano. O acesso a partir do mar era dominado pelo povoado proto-histórico de Castro Marim, local onde apareceram muitos materiais de importação, sinal de uma pujante atividade comercial. Os materiais mais antigos foram datados do século V a.C. (Arruda, 1996: 97), no entanto, o registo arqueológico aponta para o abandono do povoado por volta do século III a.C., sendo novamente ocupado muito mais tarde, já em período romano Republicano (Arruda, 1984; 2002). 

Posteriormente, durante o Alto-Império há sinais de uma renovada atividade, dado o aparecimento de grande quantidade de terra sigillata desse período, após o qual se assiste a novo declínio (Viegas, 2011: 437). Com efeito, os materiais de importação cessam por completo pelos finais do século I, inícios do II d.C., sinal do acentuado declínio da atividade comercial (Fabião, 1992-93: 233; Viegas, 2006: 415; 2011: 518), eventualmente substituído pelo fundeadouro romano da Punta del Moral  (Encinas e Teyssandier, 2013).

Fig. 3 – Reconstituição paleogeográfica do estuário do Guadiana, mostrando a amarelo as áreas arenosas entretanto formadas e a vermelho os pontos de povoamento romano. Poster del “El Fondeadero Romano de Punta del Moral”, B. Cabaco Encinas y E. García Teyssandier; ArqueoGuadiana, 2012). https://www.academia.edu/19483918

O local só volta a ser ocupado já na Idade Média. Actualmente todo o cerro onde assenta o castelo (e o antigo povoado pré-romano) está rodeado de terra firme e zonas de sapal, mas no século XVI as águas ainda chegavam perto das muralhas do castelo, havendo referência à acostagem de “naus de 100 toneladas a tomar o sal que ali há” apesar das crescentes dificuldades de navegação nos esteiros (Garcia, 1996: 68).

Esta descontinuidade de ocupação de Castro Marim poderá assim também estar relacionada com estes fenómenos naturais, promovendo as grandes alterações geomorfológicas registadas no estuário do Guadiana, o que permite estabelecer uma relação causal (ver Quadro 1) entre estes dados arqueológicos e geofísicos (Gómez et al., 2015: 67).


Evento
Castro Marim Tavira
III a.CAbandono do povoado pré-romanoAbandono do povoado pré-romano
I d.CAbandono e estabelecimento do fundeadouro romano na Punta del Moral  Abandono e fundação da cidade romana de Balsa
III d.C.Castro Marim permanece deserto; abandono da Punta del MoralAbandono de Balsa e do seu porto de mar
1755Devastação do povoado medieval; sedimentação da orla costeira; abandono de Cacela Velha e fundação de Vila Real de Santo AntónioDevastação do povoado medieval; sedimentação da orla costeira

Quadro 1 – Tabela comparativa entre eventos sísmicos e históricos em Tavira e Castro Marim.

À medida que avançamos para nascente, já no território espanhol, este padrão repete-se nos restantes portos desta faixa costeira virada a sudoeste e portanto sujeita também aos impactos dos referidos fenómenos.  Por exemplo, na foz do rio Odiel, a cidade de Huelva foi muito afetada pelo terramoto de 1755, contando-se na época mais de 1000 mortos e inúmeros edifícios destruídos (Lima et al., 2010; 146). Na antiguidade esta povoação era designada por Onuba e constituía um porto importante desta rota marítima, mas que terá perdido a sua relevância à medida que o canal de acesso ao mar se ia estreitando, conforme é representado na reconstituição paleográfica da Fig. 2.

O mesmo acontece na foz do Guadalquivir que na antiguidade formava uma vasto estuário navegável que permitia o acesso aos portos abrigados e â via fluvial pelo Guadalquivir acima até Sevilha (antiga Hispalis), importante porto comercial da antiguidade que ainda no século XVI constituía a principal base de apoio às explorações marítimas espanholas. Atualmente este  estuário apresenta-se totalmente assoreado e o acesso a Sevilha é apenas possível com pequenas embarcações (Fig. 4).

Fig. 4 – Os portos de Onuba e Hispalis – a vermelho as vias antigas contornando o vasto paleo-estuário do Guadalquivir e a azul a via fluvial até Sevilha.
Fig. 5 – Pormenor das formações arenosas do Parque Doñana evidenciam o impacto de grandes ondas.

Em imagens de satélite desta parte da orla costeira (2022) é facilmente observável as grandes dimensões do paleo-estuário, hoje totalmente assoreado e que constitui em grande parte a área protegida do actual Parque Nacional de Doñana  (Ruiz et al., 2010), apresentando ainda sinais bem vincados do impacto de uma grande onda (ver fig. 5).

Síntese:
As transformações sofridas pela orla costeira portuguesa nos últimos dois milénios têm alterado dinâmicas portuárias, forçado as populações a abandonar povoados costeiros, procurando novos locais de ancoragem. Surpreende que algumas destas transformações surgem de forma muito repentina e bem vincada num determinado período temporal o que permite estabelecer uma relação entre esses eventos e acontecimentos históricos comprovados pela arqueologia, coincidência temporal que permite estabelecer uma relação causa-efeito entre estes dados.

Bibliografia:
Arruda, A.M. (1984) – “Escavações arqueológicas no Castelo de Castro Marim”. Clio/Arqueologia, 1, 1983-1984, 245-254.
Arruda, A.M. (1996) – “O Castelo de Castro Marim”. «De Ulisses a Viriato, O Primeiro Milénio a.C.» Lisboa: Museu Nacional de Arqueologia. 95-100.
Blot, M. (2003) – “Os portos na origem dos centros urbanos“. Lisboa: IPA, Trabalhos de Arqueologia, 46.
Chester, D.K. (2010) – “The impact of eighteenth century earthquakes on the Algarve region, southern Portugal”. Article in Geographical Journal 176(4):350 – 370
Encinas, B.C. ; Teyssandier, E. G. (2013) – “El fondeadero romano de Punta del Moral (Ayamonte, Huelva)”.  I Congreso de Arqueología Náutica y Subacuática Española – Cartagena, Maio, 2013.
Fabião, C. (1992-93) – “Garum na Lusitania rural? Alguns comentários sobre o povoamento romano do Algarve”. «Studia Historica, Historia Antigua». Salamanca, 10-11, 227-252.
Garcia, J.C. (1996) – “A navegação no baixo Guadiana durante o ciclo de minério : 1857-1917“. FLUP, Diss. de Doutoramento em Geografia Humana, Vol. I.
Gómez, F. et al. (2015) – “High-energy marine events and traumatic changes in coastal settlements from the Southwestern Iberian Peninsula”. Cuaternario y Geomorfología, ISSN: 0214-1744, doi:10.17735/cyg.v29i1-2.31699
Hindson, R. A., Andrade, C. e Dawson, A. (1996) – “Sedimentary processes associated with the tsunami generated by the 1755 Lisbon Eartquake on the Algarve Coast”, Physics and Chemistry of the Earth, 21, 12: 57-63
Justo, J.L.; Salwa, C. (1998) – “The 1531 Lisbon earthquake”. Bulletin of the Seismological Society of America (1998) 88 (2): 319–328.
Lima, V. V.; Miranda, J. M.; Baptista, M. A.; Catalão,  J.; Gonzalez, M.; Otero, L.; Olabarrieta, Alvarez-Gómez, M.J. A.; Carreno, E. (2010) – “Impact of a 1755-like tsunami in Huelva, Spain”. Nat. Hazards Earth Syst. Sci., 10, 139–148.
Mantas, V.G. (2003) – “A cidade de Balsa”. in Tavira. Território e Poder, 8-14.
Mantas, V.G. (2016) – “Navegação e Portos no Algarve Romano”. Al-úlyá, 16,  25-51.
Roth, J., et al. (2015) – “The Baelo Claudia tsunami hypothesis…”. 6th International INQUA, Pescina.
Ruiz, F.;  et al.(2010). “Birth, Evolution and Death of a Lagoon: Late Pleistocene to Holocene Palaeoenvironmental Reconstruction of the Doñana National Park (Sw Spain)”. in Lagoons: Biology, Management and Environmental Impact (A.G. Friedman, ed.). Nova Science Publishers, Inc. Nueva York, 1-26.
Silva, P.G., et alli (2005) – Archaeoseismic record at the ancient Roman city of Baelo Claudia (Cadiz, south Spain). Tectonophysics, 408(1-4), 129-146.
Terrinha, P.A.; Pinheiro, L.; Henriet, J.P.; Matias, L.; Ivanov, M.K.; Monteiro, J.H.; Azhmetzhanov, A.; Volkonskaya, A.; Cunha, T.; Shaskin, P.; Rovere, M. (2003). “Tsunamigenic-seismogenic structures, neotectonics, sedimentary process and slope instability on the southwest Portuguese margin”. Marine Geology, 195, 55-73.
Viegas, C. (2006) – “A ocupação romana de Castro Marim”. in Xelb 6, Vol. I (2005), 241-260.
Viegas, C. (2011) – “A ocupação romana do Algarve. Estudo do povoamento e economia do Algarve central e oriental no período romano”. Lisboa, UNIARQ.

Transformações na orla costeira I – Costa Ocidental

Durante o estudo da viação romana chocamos com o facto de a linha de costa em
período romano ser muito diferente da actualidade. Com efeito, a conjugação dos dados históricos com a investigação geofísica mostra que a linha de costa era bem mais recortada do que na atualidade, formando grandes estuários que permitiam a navegação costa adentro até portos abrigados no interior. O progressivo assoreamento dos estuários, em particular a partir da Idade Média, acabou por inutilizar algumas destas rotas marítimas, resultando em grandes mudanças quer do sistema portuário quer das vias terrestres às quais estavam ligados.

As estruturas portuárias da antiguidade estavam articuladas com uma rede viária que permitia a circulação das mercadorias de e para o hinterland. O principal eixo viário interliga os dois maiores portos em território português, respectivamente a foz do rio Douro no Porto com a foz do rio Tejo em Lisboa. O percurso da estrada é sensivelmente paralelo à linha de costa, mas relativamente afastada desta. Este trajecto mais interior esconde, no entanto, a vocação portuária desta estrada, criando uma “rede simultaneamente marítima e terrestre que permitia o abastecimento do hinterland a partir de portos praticáveis no remanso de águas fluviais, ou estuarinas, cujas bacias estavam ainda livres dos grandes assoreamentos medievais e pós-medievais” (Blot, 200, 143).

Esta estrada cruzava o rio Douro junto do importante entreposto comercial de Cale cuja actividade portuária se estendeu até ao século XVIII apesar das crescentes dificuldades criadas pelo assoreamento da barra do Douro face aos novos desafios de navegação à época, com navios maiores e maior intensidade de tráfego, limitando o alcance da ação económica da própria cidade do Porto, levando à construção de uma nova estrutura portuária na foz do rio Leça, o Porto de de Leixões (Alves e Dias, 2001: 94), estrutura apenas concluída já no século XX.

Depois de cruzar o rio, a estrada seguia por Santo Ovídeo, Canelas, Carvalhos, Fiães, São João da Madeira, Oliveira de Azeméis e Albergaria-a-Velha, de modo a evitar a vasta zona lagunar formada pela Ria de Aveiro que se estende entre Esmoriz e Vagos. No entanto, o cruzamento do rio Vouga fazia-se (tal como a antiga EN1) entre Serém e Lamas, na base do importante povoado romanizado do Cabeço do Vouga, local hoje muito afastado da costa (Fig. 1), mas que teria acesso ao mar através do rio Vouga, nomeadamente ligando ao seu porto de mar, localizado com toda a probabilidade na Torre da Marinha Baixa (Cacia), onde há forte evidências de actividade comercial portuária durante o período romano (Sarrazola, 2003: 160).

Fig. 1 – A foz do Vouga na actualidade e localização do porto romano da Marinha Baixa (Cacia)

Continuando o percurso, a estrada cruzando o vale da Mealhada rumo à travessia do rio Mondego junto a Coimbra, a antiga Aeminium,. Em ambas as margens do curso terminal deste rio há evidências de ancoradouros, nomeadamente uma possível feitoria fenícia junto do povoado de Santa Olaia, dominando visualmente o paleo-estuário do Mondego (Alarcão, 2004: 13-14). Aqui apareceu também um barco naufragado cujo espólio está em exposição na Sala de Arqueologia do Museu Municipal Santos Rocha na Figueira da Foz.

Fig. 2 – Povoamento e rede viária romana no curso terminal do Mondego.

Na margem esquerda há também vestígios de povoamento romano em Taveiro e Ameal, cuja proximidade ao rio, permite também estabelecer uma relação com a actividade fluvial. O mesmo poderá acontecer no caso de Soure, que apesar de integrar a via terrestre que ligava Conimbriga a Collipo (c. Leiria), poderia também funcionar como cais fluvial dado o seu posicionamento na confluência no Mondego dos rios Arunca e Anços, apesar da ausência de vestígios concludentes.

A estrada seguia até Leiria onde cruzava o rio Lis, na base do castelo medieval. O rio deveria permitir a ligação ao porto do período medieval localizado na foz deste rio (Blot, 2003: 145). O porto marítimo durante o período romano deveria localizar-se em Paredes, actualmente ocupado pelas grandes formações arenosas que formam o grande Pinhal de Leiria. Mais uma vez a posição aparentemente interior de Leiria encobre a vocação marítima desta estrada. De Leiria, a estrada seguia até Alcobaça, e daqui ascendia ao Castro de Parreitas, grande povoado romanizado com domínio visual sobre a paleo-lagoa da Pederneira (Valado de Frades).

Fig. 3 – Reconstituição dos limites aproximados da paleo-lagoa da Pederneira (linha branca), com o castro romanizado de Parreitas e passagem da via para Lisboa contornando este obstáculo natural.

No período romano este braço de mar era navegável, entrando bem para o interior, sendo possível estimar a antiga linha de costa pelos sítios romanos de Pederneira, Póvoa, Cós, Maiorga, Fervença, Parreitas, Cela Velha e Famalicão, rodeando a paleo-lagoa (Blot, 2003: 212-213).

Fig. 4 – Povoamento antigo em torno da paleo-lagoa da Pederneira (in Alarcão, 2008, fig. 3)

A via continuava até Alfeizerão (miliário de Adriano), onde temos novamente vestígios de um possível vicus portuário no sítio das Ramalheiras, sobranceiro à paleo-baía de São Martinho do Porto (Blot, 2003, 217-218) . Logo depois atingia Eburobrittium (actual Óbidos), cuja localização apenas foi confirmada em 2008 em resultado da construção da auto-estrada A8. De facto, no sopé da vila medieval, surgiram abundantes vestígios de um vicus portuário no limite da zona inundável da Lagoa de Óbidos que pela sua posição deverá corresponder à enigmática Eburobrittium referida por Plínio e no epitáfio de um duúnviro Eborobritiensis chamado Maximino, que apareceu na Igreja Paroquial de Ns. de Aboboriz em Amoreira de Óbidos (AE 1936, 106).

Aliás, o povoado romano terá crescido em torno da actividade comercial deste porto que apesar de estar bem para o interior tinha acesso facilitado à rota oceânica através deste braço de mar (Blot, 2003, 220-223). O progressivo assoreamento da lagoa durante a Idade Média e a consequente inutilização deste acesso terá ditado o seu posterior declínio, cristalizando no tempo a antiga povoação medieval no cimo do morro de Óbidos que hoje conhecemos. Daqui a estrada seguia até Lisboa, povoado que pela sua posição absolutamente estratégica na desembocadura do rio Tejo, oferecia um porto abrigado na base do morro onde hoje assenta o Castelo de São Jorge.

Em síntese, estas estradas tocavam em pontos-chave de acesso aos principais portos marítimos permitindo a formação de uma rede de rotas comerciais na antiguidade. Este modelo repete-se a sul do Tejo, com as ligações viárias aos importantes portos do estuário do Sado, Caetobriga (Setúbal) e Salacia (Alcácer do Sal) (Mantas. 2010: 205) . Enquanto o primeiro está localizado na foz do rio Sado (tendo defronte a importante fábrica de salga de peixe da então ilha de Troia), o segundo encontra-se bem mais para o interior (a cerca de 30 km), aproveitando a navegabilidade do rio Sado até Alcácer do Sal (Blot, 2003, 259-269).

A antiga Salacia manteve o seu carácter de urbe portuária até à Idade Média, mas o posterior declínio desta rota fluvial poderá estar relacionada com a diminuição das condições de navegabilidade do rio como se verifica atualmente. A povoação mantém no entanto o importante papel de nó viário até à atualidade (e.g. local de passagem da auto-estrada para o Algarve), constituindo uma das principais portas de acesso às regiões do Alentejo e Algarve. De facto, do porto de Salacia partiam três importantes eixos viários, um ligando ao porto de Lisboa, outro ao porto de Mértola (via Beja), outro para Mérida (capital da Lusitânia, via Évora) e, finalmente, a rota para sul rumo ao Algarve.

Fig. 5 – Portos e rede viária no estuário do rio Sado

Destaque para a estrada para o Algarve que servia também os ancoradouros ao longo da costa alentejana. O trajecto desta via antiga partia de Alcácer do Sal em direcção a Alvalade, Garvão e Castro da Cola, rumo a Faro. No nó viário de Alvalade, a via cruzava uma outra via que corria transversal a esta e que ligava o porto marítimo de Sines ao porto fluvial de Mértola, estrada que passa na cidade romana de Mirobriga (c. Santiago de Cacém). O achado de âncoras romanas e outros vestígios na área de Sines atestam uma importante actividade deste porto comercial em período romano (Blot, 2003, 269-272), explicando a grande prosperidade atingida pela urbe romana ainda hoje visível através das suas estruturas monumentais ainda subsistentes.

Além do eixo principal para o Algarve rumo a Faro, parece existir uma variante desta estrada correndo mais próximo do litoral passando por Miróbriga rumo ao Cabo de São Vicente no barlavento algarvio. O trajecto inicial entre Alcácer do Sal e Grândola poderia ser por via fluvial, dado que a área é ainda hoje ocupada por vastas formações arenosas sem qualquer vestígio de povoamento romano. No centro de Grândola existem importantes vestígios de um grande estabelecimento romano que poderia servir esta rota. Ao longo do seu percurso, a via passava próximo dos diversos fundeadouros dispostos ao longo da Costa Alentejana, nomeadamente em Vila Nova de Mil Fontes, Sines, Porto Covo e Ilha do Pessegueiro, tocando depois nos portos fluviais de Odemira, Odeceixe e Aljezur até atingir a costa virada a sul.

As principais rotas comerciais na costa ocidental portuguesa eram suportadas numa eficaz articulação entre portos e rede viária. Alguns destes portos permanecem ainda hoje com grande vitalidade económica, como são os casos dos portos de Lisboa, Porto, Setúbal e Sines, no entanto, outros acabaram por perder a sua pujança económica em resultado destas sucessivas alterações da orla costeira que levaram à inutilização dos seus portos e consequente declínio económico.

Bibliografia:
ALARCÃO, J. de (2004) – “In territorio Colimbrie: lugares velhos (e alguns deles, deslembrados) do Mondego”. Trabalhos de Arqueologia. N° 38. Lisboa: IPA.
ALARCÃO , J. de (2008) – “Notas de arqueologia, epigrafia e toponímia V“. In RPA 11, 103-121.
ALVES, J.F.; DIAS, E.B. (2001) – “O fio de água : o Porto e as obras portuárias (Douro-Leixões)” Revista da FLUP, III Série, Vol. 2, 93-106.
BLOT, M. (2003) – “Os portos na origem dos centros urbanos”. Lisboa: IPA, Trabalhos de Arqueologia, 46.
MANTAS, V. G. (2010) – “Atlântico e Mediterrâneo nos portos romanos do Sado”. Coimbra: Revista Portuguesa de História, 41. 195-221
SARRAZOLA, A. (2003).- “Tentativa de enquadramento histórico dos contextos de abandono da Marinha Baixa/Torre (Cacia, Aveiro) – séc. V-VI”. Era Arqueologia 5: 150-163.

Parte 6 || Cale

Concluímos esta viagem pelo Itinerário XVI com algumas notas sobre a sua passagem por Cale, estação seguramente associada à travessia do rio Douro, apesar de permanecer a dúvida na sua exacta localização, oscilando entre os dois povoados proto-históricos que dominavam esta passagem, ou seja, o Morro da Pena Ventosa (Sé) e o Castelo de Gaia, dúvida que, no entanto, não afecta a contagem miliária que segundo o Itinerário era a seguinte:

Langobriga
Cale m.p. XIII
Bracara m.p. XXXV

Como referido no artigo anterior, a distância de 13 milhas de Langobriga a Cale é coerente com o percurso entre Vendas Novas (Fiães/Castro Redondo) e o Douro, seguindo paralela ou coincidente com a EN1, que em muitas troços ainda é designada por “Rua da Via Romana”. O trajecto fazia-se (e faz-se) por Vergada, Picoto, Vendas de Grijó (8 m.p.), Carvalhos (6 m.p.), Canelas (4 m.p.), Santo Ovídio (2 m.p.), Jardim de Soares dos Reis (1 m.p.) e finalmente, descendo talvez pela Rua Direita, atingia o cais de Gaia.

Fig. 1 – Via Langobriga – Cale com estação a 8 milhas do Douro

Depois de cruzar o rio, a via dirigia-se para Bracara, seguindo aproximadamente a rota da EN14, percorrendo cerca de 35 milhas, tal como indicado no Itinerário, trajecto já analisado em artigo anterior. A parte inicial do percurso continua em utilização como ruas da cidade. Partindo da Porta do Olival, junto do Jardim da Cordoaria, seguia pela lateral do edifício da Universidade do Porto, antiga «Calçada dos Órfans» e actual Rua Dr. Ferreira da Silva, cortava a Praça dos Leões em direcção ao Largo do Moinho de Vento, continuava pela Rua Mártires da Liberdade até à Praça da República e daqui pela Rua Antero de Quental rumo à travessia do rio Leça na Ponte da Pedra (São Mamede de Infesta). Daqui seguia para a travessia do rio Ave na Trofa, passando em Pinta (Maia) e Forca (8 m.p.), percurso recentemente (re)confirmado pelo descoberta de um miliário numa casa do lugar da Barca, indicando precisamente 27 milhas a Braga, ou seja, oito milhas a Cale.

Fig. 2 – Rede viária a norte do rio Douro com pontos focais Cale e Bracara Augusta.

Do mesmo modo, os trajectos das outras vias que partiam de Cale continuam em utilização pelos séculos seguintes, sendo progressivamente absorvidos pela expansão urbana da cidade. Apesar de estas vias não serem mencionados nos Itinerários de Antonino e da ausência de miliários, não há qualquer dúvida sobre a sua utilização já nesse período (e mesmo em períodos anteriores), formando a rede principal de estradas que partiam de Cale.

Uma destas vias é designada na documentação medieval por «karraria vetera», «via publica» e «estrada mourisca» em diferentes pontos do seu percurso e que hoje está assinalado como «Caminho de Santiago». Partindo do mesmo local da estrada para Braga, Campo do Olival, seguia pela Rua de Cedofeita (antiga «Cacarreira») até ao Padrão da Légua (4 m.p.), e daqui à Ponte Romana de Barreiros sobre o Leça (Maia).

Daqui poderia ligar por uma ramal ao nó viário da Forca (8 m.p.) na via para Bracara (onde apareceu miliário), mas é provável que a «karraria» seguisse para noroeste por Vilar do Pinheiro e pela base do Castro de Boi (15 m.p.), rumo à travessia do rio Ave junto do Castro de Santagões.

Daqui seguia para a Igreja de São Pedro de Rates (23 m.p.), provável estação viária onde a via bifurcava em dois trajectos, um seguindo para noroeste rumo à travessia do rio Cávado na Barca do Lago (ligando a Viana do Castelo), e outro seguia para nordeste rumo à travessia do mesmo rio em Barcelos (o chamado «Caminho de Santiago Central»), continuando depois até Ponte de Lima. (ver https://viasromanas.pt/#porto_barcelos).

Admite-se uma variante a este trajecto mais próxima do litoral, desviando da «karraria vetera» no Padrão da Légua, seguindo na direcção do Castro de São João em Vila do Conde, local de cruzamento do rio Ave. Daqui seguia próximo dos castros de Terroso e Laúndos rumo à travessia do rio Cávado na Barca do Lago, reunindo com a «karraria» cerca de três milhas antes de atingir esta passagem. (ver viasromanas.pt/#porto_caminha).

As restantes vias seguiam na direcção nordeste. A primeira delas partia de Cale rumo a Guimarães, seguindo junto do Castro de Águas Santas (6 m.p.), Castro do Monte Padrão (18 m.p.), Citânia de Sanfins (22 m.p.) e Castro da Polvoreira/ Santo Amaro (30 m.p.). (ver viasromanas.pt/#via_vimaranes).

A segunda via para nordeste, ligava Cale a Tongóbriga, seguindo próximo do Castro de Vandoma (15 m.p.) e do Castro de Quires (26 m.p.), de onde descia à travessia do rio Tâmega, a trinta milhas de Cale. Daqui ascendia por Marco de Canaveses à cidade romana de Tongóbriga, da qual subsistem importantes vestígios, mas como vimos ao longo do Itinerário XVI, assenta ela própria sobre um antigo povoado da Idade do Ferro do qual teria herdado o nome.

A parte inicial do trajecto desta via subsiste ainda hoje, partindo da antiga Porta de Vandoma e seguindo pela Rua Cimo de Vila, percursos que mantém a tipologia antiga, ascendendo a ladeira por patamares suaves até à actual Praça da Batalha. Daqui seguia por St. Ildefonso, Bonfim (1 m.p.), Corujeira/ Campanhã (2 m.p.), São Roque da Lameira (3 m.p.), continuando pelos topónimos viários, Cavada, Ferraria, Carreira e Vale de Ferreiro até Valongo, provável estação viária a oito milhas de Cale, relacionada com a exploração mineira identificada nas proximidades. (ver viasromanas.pt/#porto_freixo)

Notar que esta distância de oito milhas à primeira estação já tinha sido identificada nas outras vias que partiam de Cale, nomeadamente em Vendas de Grijó e Barca, sugerindo que o seu estabelecimento não foi arbitrário. Notar também a grande resiliência destes trajectos apesar das enormes transformações sofridas pela cidade nos últimos séculos.

Fig. 3 – Vias antigas na actual área urbana da cidade do Porto.

Na ausência de factores externos como terramotos ou grandes planos urbanísticos (felizmente) as principais vias que partiam da cidade do Porto acabaram por permanecer em utilização até aos nossos dias. Seria interessante um dia fazer um roteiro destas vias pela cidade.

Com este artigo sobre Cale termina esta série de seis artigos sobre o itinerário de Olisipo a Bracara ou Itinerário XVI. No próximo post será abordada a problemática das alterações da orla costeira e as suas implicações na rede viária antiga.

Parte 5 || Talábriga

Neste percurso pelo Itinerário XVI chegamos agora a uma das questões mais discutidas na historiografia nacional, a problemática localização de Talábriga. Pela sequência de estações não há qualquer dúvida que esta se deveria localizar nas proximidades do Rio Vouga que constitui o maior obstáculo entre Aeminium e Cale. No entanto, o seu exacto posicionamento é alvo de grande controvérsia entre investigadores.

Segundo o Itinerário XVI, teríamos:
Aeminium m.p. X
Talabriga m.p. XL
Langobriga m.p. XVIII
Cale m.p. XIII

Como é habitual, as primeiras tentativas de localização surgem no século XVI, tendo os iluministas portugueses proposto a sua identificação com Cacia (Barreiros, 1561) e Aveiro (Brito, 1597). A hipótese Cacia era baseada no achado de vestígios romanos na Torre da Marinha Baixa. No entanto, a passagem neste local é inviável dado que aqui era a antiga linha de costa em período romano, podendo corresponder a um vicus portuário. Aliás, toda a área de Aveiro estaria submersa, inviabilizando portanto a hipótese lançada por Brito.

A questão só é retomada no início do século XX, com diversos autores tentando compatibilizar as distâncias medidas no terreno com a informação contida no Itinerário. Entre eles, destaca-se Félix Alves Pereira que publica em 1907 um seminal artigo intitulado “Situação Conjectural de Talábriga”, onde alerta para a necessidade de posicionar Talábriga a norte do Vouga, dado que as 40 milhas indicadas são superiores à distância entre o Mondego e o Vouga (c. 34 milhas).

Com base na distância indicada a Langobriga (18 m.p.), equaciona a hipótese de Talabriga estar na área da povoação de Branca, apontando como possíveis localizações o Castro de São Julião e o vicus de Cristelo, hipótese seguida por autores posteriores (Souto, 1941; Vaz, 1983: 32-38).

Fig. 1 – Esboço do trajecto entre Coimbra e o Porto elaborado em 1941 por Alberto Souto

O problema desta proposta é que não acerta com o Itinerário dado que este local não está a 40 milhas de Aeminium. De facto a distância deste local ao Vouga é de cerca de 10 milhas perfazendo um total de 44 milhas a Aeminium (34+10) quando o Itinerário indica 40.

Admitindo que está distância está correcta (não havendo razões objectivas para duvidar deste valor), então Talabriga teria de estar 6 milhas a norte do Vouga, distância que permite associar esta estação ao povoado castrejo da Ns. do Socorro em Albergaria a Velha. Aliás, na Carta do Couto de Osseloa do ano 1117 (DMP DR 49) é referida a «strada que currit de Portugal in directo de Petra de Aquila», sendo que a generalidade dos autores identificam a “Pedra de Águia” com o actual Bico do Monte no Santuário da Ns. do Socorro (Ribeiro, 1810:243-246, Oliveira, 1943), sinal evidente que a via corria por ali. O Monte da Sra. do Socorro é mencionado em documentos medievais como «Albergarie veteris de Meigonfrio», topómimo com possível origem no termo latino mansio (Oliveira, 1943). João de Almeida refere a existência no local de uma antiquíssima fortaleza de um possícel castro “luso-romano” (Almeida, 1948:46), mas até hoje não há registo de qualquer vestígio de povoamento no local.

Esta hipótese não é inteiramente nova, tendo sido sugerida inicialmente pelo Tenente-Coronel Costa Veiga em 1943, ao contestar a sua identificação com Branca, proposta por Félix Pereira. Com efeito, com base nas distâncias medidas no terreno, este investigador propôs a localização de Talábriga no Monte da Ns. do Socorro dada a concordância das distâncias (Veiga, 1943). No entanto, o Padre Miguel de Oliveira publicava no mesmo ano uma súmula destas hipóteses, avidando prudentemente que o problema da localização de Talábriga permanecia tal como Félix Pereira o tinha deixado, isto é, por resolver (Oliveira, 1943: 61-62).

Entretanto, uma segunda hipótese foi lançada por Amorim Girão no início do século XX, a sua identificação com as ruínas que emergiam no chamado Cabeço do Vouga (Girão, 1922) , proposta entretanto reforçada pelos sucessivos achados arqueológicos no topo deste outeiro sobranceiro ao local de travessia do Vouga, levando autores posteriores, como Jorge de Alarcão e Seabra Lopes, a subscreverem esta proposta (Alarcão, 1988; Lopes, 1995, 2000), apesar do evidente desacerto com a informação do Itinerário (Mantas, 2018: 44).

Apesar do seu relativo esquecimento, a hipótese de identificação de Talabriga com o povoado fortificado da Ns. do Socorro, tem vindo a ser recuperada (Mantas, 2014: 247) atendendo à concordância com a distância indicada de 40 milhas a Coimbra. Apesar da notícia de achados arqueológicos no local (que foram enquadrados no Bronze Final), pouco sabemos sobre a ocupação deste povoado dado que este foi totalmente arrasado com a construção do actual santuário.

Seguindo esta hipótese, foi criado um percurso alterativo à “Estrada Real” (que passa no vale, junto a Branca e Albergaria-a-Nova), o verdadeiro percurso da via poderia ser pelo alto da serra, em altitude, tocando nos referidos povoados proto-históricos e que está representado no mapa abaixo (linha azul).

Fig. 2 – Nova proposta de traçado da via entre Albergaria-a-Velha e Oliveira de Azeméis seguindo junto dos povoados castrejos de Ns. do Socorro, São Julião e Lações.

Esta proposta de trajecto apresenta pouca variação de cota e acerta a marcação miliária com os referidos povoados, com Ns. do Socorro na milha 6, São Julião na milha 10 e Lações a 17 milhas do Vouga, outro povoado fortificado que daria origem a Oliveira de Azeméis e que foi destruído com a construção do Santuário de Ns. de La Salete.

A etapa seguinte ligava Talábriga a Langóbriga que tem sido identificada com o Castro do Monte Redondo em Fiães com base no vasto espólio recolhido no local (Corrêa, 1925; Almeida e Santos, 1971). De facto, a sua posição é compatível com as 13 milhas indicadas a Cale. No entanto, as 18 milhas indicadas são claramente insuficientes para cumprir a distância entre Monte Redondo e o Castro da Ns. Socorro, percurso que ronda as 23 milhas. Poderá tratar-se de um erro do copista medieval pois não seria difícil haver confundir os numerais “XXIII” e “XVIII”, bastando a troca do segundo “X” por um “V”, explicando deste modo, o diferencial de 5 milhas encontrado no trajecto até Cale.

Corrigindo este valor obtemos acerto da marcação miliária, isto é, somando as distâncias intermédias entre o Vouga e o Douro (6 + 23 + 13) obtemos um total de 42 milhas que é a distância que separa os dois rios. Esta divisão pouco usual entre etapas resulta do posicionamento dos povoados indígenas ao longo da via. No entanto, verifica-se que as estações romanas viriam a instalar-se num módulo mais regular de 4 milhas (1 légua) com
Albergaria-a-Velha (a 4 milhas do Vouga), a Albergaria de Souto Redondo (a 16 milhas de Cale), com outra estação a meio percurso, ou seja, a oito milhas do rio Douro, em Vendas de Grijó, nó viário de onde partia a via para Viseu, situado na base do maior povoado desta região, o Castro do Monte Murado (Carvalhos).

Assim o Itinerário corrigido seria o seguinte:
AEMINIUM X
TALABRIGA XL
LANGOBRIGA XXIII
CALEM XIII

Naturalmente de que não dispomos de provas conclusivas, nomeadamente de ordem epigráfica, que possam fechar a discussão, mas a concordância com as distâncias medidas no terreno pelo percurso proposto constitui um forte argumento para a sua validação. Os dados arqueológicos conhecidos também parecem apontar para esta hipótese com a via a passar junto dos principais povoados castrejos, denunciando mais uma vez a origem pré-romana destas rotas.

Por último, admitindo que Talabriga corresponde ao assentamento da Ns. do Socorro, então o Cabeço do Vouga teria outra designação, o que obriga a reconsiderar a antiga hipótese lançada por Brito de que ali se encontrava o antigo Oppidum Vacca (Brito, 1597). De facto, Plínio refere o flumen Vacca (NH, IV, 113) , mas segundo Gaspar Barreiros, num manuscrito de Toledo podia ler-se oppidum et flumen Vacca, do mesmo modo que no mesmo trecho Plínio menciona o oppidum et flumen Aeminium (Barreiros, 1561).

A existir o povoado de Vacca (Vacua em Estrabão; Geo. I, 3, 4), este poderia corresponder ao Cabeço do Vouga, explicando o miliário que Brito refere junto do Castro de S. Julião (S. Gião no original), indicando 12 milhas a «VAC», abreviatura que desdobrou em VACCA ou VACUA. Em suporte à veracidade desta notícia, notar que tanto o miliário da Vimieira (Mealhada) como de Úl (Oliveira de Azeméis) indicam 12 milhas, um valor típico entre estações viárias.

Neste nova proposta de traçado, o miliário em Úl fica algo afastado da via. No entanto, este miliário poderia ter um carácter mais territorial, definindo o limite sul da Civitas Langobrigensis, aliás, em concordância com o terminus augustalis, actualmente encastrado na parede traseira da Igreja Paroquial de Úl, indicando a distância de doze milhas a Langobriga (Castro de Fiães).

Como é visível pelos argumentos enunciados acima, estamos ainda longe de resolver o problema de localização de Talabriga. A ausência de provas epigráficas torna o Itinerário a única fonte primária para a localização destas estações apesar de eventuais erros e omissões. O que não podemos é pura e simplesmente descartar a informação nele contida quando esta não se adequa a uma outra proposta de localização.

O sexto e último artigo desta série abordará a travessia do Douro e as vias que daqui partiam de Cale

Bibliografia:
ALARCÃO, Jorge de (1988) – “Roman Portugal”. Warminster: Aris & Phillips, 3 Vols.
ALMEIDA, C.A.F.; SANTOS, E. (1971) – “O Castro de Fiães”. Revista da Faculdade de Letras. Série de História. II., 147-168.
ALMEIDA, Fernando de (1956) – “Marcos miliários da via romana «Aeminium-Cale»”. OAP, 2ª Série, Vol. III, 111-116.
ALMEIDA, João de (1948). Roteiro dos Monumentos Militares Portugueses. Lisboa
BARREIROS, Gaspar (1561) – “Chorographia de alguns lugares que stam em hum caminho que fez Gaspar Barreiros”. Coimbra: João Aluarez.
BRITO, Bernardo de (1597) – “Monarchia Lusytana”. Lisboa: Mosteiro de São Bernardo. Vol. I.
CORRÊA, A. A. Mendes (1925) – “Nótulas Arqueológicas. Estação luso-romana em Fiães”. Revista de Estudos Históricos.
GIRÃO, Amorim (1922) – “A Bacia do Vouga. Estudo Geográfico”. Diss. de Doutoramento em Geografia.
LOPES, Luís Seabra (1995) – “Talábriga – Situação e limites aproximados”. In Portugália, Vol. XVI, Instituto de Arqueologia, Porto, 331-343.
LOPES, Luís Seabra (2000) – “A Estrada Emínio-Talabriga-Cale”. In «Conimbriga», 39, 191-258.
MANTAS, Vasco G. (2014) – “As estações viárias lusitanas nas fontes itinerárias da antiguidade”. In Humanitas 66, 231-256.
MANTAS, Vasco G. (2018) – “As cidades romanas de Portugal: problemática histórica e arqueológica”. In “As cidades romanas de Portugal. problemática histórica e arqueológica” Imprensa da Universidade de Coimbra, 23-51.
OLIVEIRA, Pa. Miguel de (1943) – “De Talabriga a Lancobriga pela Via Militar Romana”. Arquivo do Distrito de Aveiro, Vol. IX.
PEREIRA, Félix A. (1907) – “Situação Conjectural de Talabriga”. OAP Vol. XII, 129-158.
SOUTO, A. (1941) – “Romanização no Baixo-Vouga (Novo Oppidum na Zona de Talábriga)”. Trabalhos de Antropologia e Etnologia, vol. 9 (1939), 4, 283-328.
VAZ, J. L. da Inês (1983) – “Escavações no Cristelo da Branca”, Munda 5: 32-38.
VEIGA, A. B. da Costa (1943) – “Algumas estradas romanas e medievais”. Estudos de História Militar Portuguesa. Vol. I. Lisboa: Imp. Tip. Torres

Parte 4 || Conímbriga

Continuando a descrição do Itinerário XVI, vamos agora analisar a sua passagem por Conimbriga, seguramente localizada nas ruínas romanas junto de Condeixa-a-Velha, subsistem ainda dúvidas sobre qual seria o trajecto da via. A indicação de 10 milhas a Aeminium, actual Coimbra, é também coerente com esta identificação.

Itinerário XVI
Seilium
Conimbriga m.p. XXXIIII
Aeminium m.p. X
Talabriga m.p. XL

A aproximação à cidade fazia-se sem dúvida pelo lugar de Tamazinhos, onde apareceu um miliário indicando oito milhas, valor compatível com a distância a Conímbriga, no entanto, subsistem dúvidas sobre o trajecto seguido até à cidade romana que, tal como as restantes estações deste itinerário, assenta sobre um povoado anterior pré-romano (Correia, 1993).

O primeiro traçado proposto seguia um trajecto directo à cidade, passando por Fonte Coberta e lugar do Poço. No entanto, este percurso era suspeito e avesso à normal tipologia da viação antiga dado que obriga a uma dupla travessia do Rio de Mouros.

Tentou-se assim uma alternativa que evitasse esse obstáculo, fazendo seguir a via mais a nascente, por Alcabideque, local onde subsiste o sistema romano de captação da água que alimentava a cidade por um aqueduto. Se por um lado, esta hipótese permitia um trajecto menos acidentado e mais directo Coimbra, por outro lado, não havia maneira de acertar a marcação miliária com as 10 milhas indicadas a Coimbra nem com as 8 milhas indicadas no miliário de Tamazinhos.

Fig. 1 – A vermelho as anteriores propostas e a azul o nova proposta de traçado da via cortando por Castelo/Ns. da Piedade (8 m.p), Ponte de Atadôa (9 m.p.) e Portela de Alfarda (10 m.p.).

Deste modo, procuramos uma alternativa que cumprisse com esses critérios. Depois de vários hipóteses, consideramos que o traçado mais provável seria aquele que vinha de Coimbra pela Venda do Cego, Eira Pedrinha e Ponte de Atadôa. Aliás, Gaspar Barreiros (com base num manuscrito de Acurcio) refere a existência de inscrições junto desta ponte, uma das quais mencionando um tal Valerius Avitus nascido em Conimbrica, o que permitiu associar este topónimo às ruínas junto a Condeixa-a-Velha (Barreiros, 1565: fl. 49-50; CIL II 391).

Fig. 2 – O nó viário de Conímbriga, cruzamento da Itinerário Olisipo-Bracara com o itinerário transversal de Collipo a Bobadela.

Ora, esta hipótese é reforçada pelo facto de Eira Pedrinha se encontrar a oito milhas de Coimbra, apontando para a existência de uma mutatio neste local. De facto, em torno da Capela da Sra. da Piedade apareceram vestígios romanos, nomeadamente tijolos de coluna e um pavimento de opus signinum. Por outro lado, no morro adjacente regista-se o topónimo “Castelo” que corresponde a um povoado do Bronze Final (Vilaça, 2012: 21). Apareceram também algumas pedras visigóticas, actualmente no Museu Machado de Castro, tendo uma delas sido reutilizada no arco cruzeiro (Gaspar, 1983: 189).

Continuando o percurso para sul, a nona milha era vencida junto da Capela de Atadôa, de onde partiria um ramal de acesso a Conímbriga perfazendo as 10 milhas indicadas no Itinerário. No entanto, para quem seguia para Olisipo poderia evitar a cidade seguindo em direcção à Portela da Mata da Alfarda, ponto que por sua vez está a 10 milhas de Coimbra e a 34 de Ceras como indicado no Itinerário (ver post anterior) .

O restante trajecto rumo à travessia do Rio Mondego não oferece grandes dificuldades, sendo a marcação miliária assinalada por vários sítios romanos que seguramente teriam uma função viária.

Fig. 3 – A via para Aeminium indicando a sequência de sítios romanos de acordo com a marcação miliária – Portela das Alfarda (10 m.p.), Atadôa (9 m.p.), Castelo (8 m.p.), Orelhudo (7 m.p.), Escoural (6 m.p.), Picoto/Malga (5 m.p.), Antanhol (4 m.p.), Ladeira da Paula (3 m.p.), Cruz dos Morouços (2 m.p.) e Carrascal (1 m.p.).

A meio percurso entre Eira Pedrinha e o Mondego viria a estabelecer-se um acampamento romano em Antanhol (destruído pela construção do aeródromo), permitindo exercer controlo sobre esta importante passagem.

Proposta de correção do trajecto a norte de Coimbra por um percurso mais directo a Sargento Mor, evitando o terreno acidentado de Cioga do Monte.

Depois de cruzar o rio, a via continuava para norte em direcção a Sargento Mor. Antes fazia-se passar a via por Cioga do Monte, mas o acidentado do terreno sugere uma ligação mais directa seguindo a rota da actual EN. A via seguia em direcção à povoação da Vimieira (Mealhada), local onde apareceu um miliário indicando doze milhas, ou seja, a distância daqui a Coimbra, indiciando a possível existência de uma estação viária neste local, possivelmente no sítio romano conhecido por «Cidade das Areias».

A via seguia depois por Anadia e Águeda rumo a Talabriga, estação que deverá estar relacionada com a travessia do Rio Vouga. No entanto, a sua localização continua a dividir os investigadores dado que o Itinerário indica 40 milhas entre Aeminium e Talabriga quando a distância entre o Mondego e o Vouga não ultrapassa as 34 milhas, problema que será abordado no próximo artigo centrado em Talabriga.

Bibliografia:
BARREIROS, Gaspar (1561) – “Chorographia de alguns lugares que stam em hum caminho que fez Gaspar Barreiros”. Coimbra: João Aluarez.
GASPAR, J.M. (1983) — “Condeixa‑a‑Nova de Augusto dos Santos Conceição”. Porto.
CORREIA, V.H. (1993) — “Os materiais pré‑romanos de Conímbriga e a presença fenícia no Baixo vale do Mondego”. Estudos Orientais [Os Fenícios no
Território Português]. Lisboa IV, p. 229‑283.
VILAÇA, R. (2012) – “Arqueologia do Bronze no Centro-Sul da Beira Litoral e Alta Estremadura (II-I milénios a.C.)”. Junta de Freguesia de Vila Nova: 16-32.

Parte 3 || Seilium

Continuando a série de artigos sobre a rota de Lisboa a Braga, chegamos agora à terceira estação mencionada no Itinerário XVI que, na maioria dos códices medievais é designada por «SELLIUM» ou «CELLIUM». A descoberta de duas inscrições de emigrantes Seilienses, uma encontrada perto de Porto do Son, Galiza (CIL II 2562) e outra dentro do Mosteiro de Lorvão (HEp 9, 1999, 743), sugere que a grafia correcta seria «SEILIUM». Estas divergências resultam muito provavelmente do facto do Itinerário que conhecemos hoje é o resultado de sucessivas cópias medievais produzidas desde a Alta Idade Média sobre o título de Itinerarium Antonini Augusti, acrescentando distorções ao documento original quer nos topónimos quer nas distâncias assinaladas. A sua identificação com Tomar reúne actualmente um grande consenso entre investigadores, no entanto, esta localização apresenta ainda algumas questões por resolver como veremos a seguir.

A primeira tentativa de localização desta estação deve-se a Gaspar Barreiros que no século XVI propunha a sua identificação com “a vila de Ceice, junto a Tomar” (Barreiros, 1561: fl. 48; actualmente designada por Seiça, Ourém) seguindo a similitude fonética com Ceilium. Esta proposta foi seguida por André de Resende no seu “Antiguidades…”, acabando por cristalizar na historiografia portuguesa. Só nos alvores do século XX é que alguns autores retomariam a questão, em particular o trabalho pioneiro de Vieira de Guimarães, alertando para os inúmeros vestígios romanos que iam aparecendo na cidade de Tomar, assim como a provável passagem da via romana nesta importante travessia do rio Nabão (Guimarães, 1927: 13-27). Vieira de Guimarães combatia assim os mitos e lendas que vinham associando esta povoação à antiga Nabância (seguramente guiados pelo hidrónimo Nabão) e ao martírio de Santa Iria, teses que viriam a revelar-se infundadas (Amendoeira e Martins, 2020: 109).

Do pouco que sabemos sobre este povoado, supõe-se que teria atingido estatuto municipal com base numa inscrição votiva dedicada ao Genio / municipi(i) que apareceu reutilizada na construção da torre de menagem do castelo templário (AE 1993, 881; RAP 256). Em concordância com esta hipótese, a marca de oficina “R. p. S.” registada em dois tijolos (HEp 11, 2001, 703 e 704) que apareceram próximo da cidade foi desdobrada em R(es) p(ublica) S(eiliensis) (Fernandes e Ferreira, 2002) Este estatuto administrativo parece ter continuidade na Alta Idade Média com base no Paroquial Suevo que menciona Selio como uma das sete paróquias que integravam a diocese Conimbricensis. Segundo um documento de 1317, transcrito por Pedro Alvares Seco da Ordem de Cristo, «Santa Maria de Thomar» (possivelmente a actual igreja templária de Santa Maria do Olival) seria anteriormente designada por «Santa Maria de Selio» (Guimarães, 1927: 103-107), mas a partir daí o topónimo entra na penumbra.

Apesar da escassez de informação é muito provável que toda esta área integrasse o território da Civitas Seilienis durante o período romano. A posterior identificação de estruturas romanas nas traseiras do quartel dos bombeiros, associadas a um possível forum, parecia vir confirmar esta localização (Ponte, 1995). No entanto, continuam a existir dúvidas entre os investigadores quanto à tipologia e funcionalidade dos edifícios que ali existiam. Nesse sentido, também seria possível associar estes vestígios à estação viária que aqui certamente existia, atendendo à importância desta travessia e ao achado de miliários (ver viasromanas.pt#tomar).

As dúvidas na identificação de Seilium com Tomar estão também relacionadas com a aparente incompatibilidade desta localização com a informação constante no Itinerário. De facto, é impossível ir de Tomar a Conímbriga percorrendo apenas as 34 milhas indicadas no Itinerário, seja qual for o percurso escolhido, dado que no terreno contam-se cerca de 42 milhas, havendo portanto um défice de oito milhas. Na maioria das edições esta parte do Itinerário XVI é transcrita da seguinte maneira:

SCALLABIN
SEILIUM XXXII (32)
CONIMBRIGA XXXIIII (34)

De facto, percorrendo oito milhas em direcção a norte partindo de Tomar, seguindo a proposta de traçado lançada por Vieira de Guimarães (hoje praticamente consensual), o trajecto por Calçadas, Freixo, Ceras, Portela de Vila Verde e Rego da Murta, rumo a Conímbriga (Guimarães, 1927: 13-27; Mantas, 1996), atingimos a oitava milha junto da travessia da ribeira de Ceras, local por sua vez a 34 milhas de Conímbriga conforme é indicado no Itinerário. Junto da ponte medieval que ali existe, Vieira de Guimarães fotografou um mais que provável miliário (entretanto perdido), apontando para a existência de uma estação viária neste local.

No entanto, a sua identificação com Seilium do Itinerário revela-se problemática. Desde logo, não há registo de vestígios romanos na área de Ceras (para além do miliário) que possam corroborar esta hipótese , nem evidências seguras do “castrum quod dicitur Cera“, referido no documento de doação do Termo de Cera de 1159, povoado a que Vieira de Guimarães chama de “castrum romano” sem precisar a sua localização. Para Salete Ponte esta fortificação estaria no Monte do Alqueidão, seguindo proposta anterior de Amorim Rosa (Ponte, 1995: 292). Por seu lado, João Romão apontou para o monte das Castelhanas, onde identificou um possível recinto amuralhado, ainda bem visível nas fotografias de satélite (Romão, 2012: 99).

Fig. 1 – Trajeto da via romana na área de Ceras e a possível localização de Seilium no Monte das Castelhanas (representando o eventual recinto amuralhado (com base em Romão, 2012: 99 )

A única referência a este local é do ano 1542 quando Pedro Álvares Seco refere a existência de vestígios de uma fortificação que associa ao “Castelo de Ceras”, mas cerca de dois séculos depois, em 1799, Viterbo já nada viu de relevante (Barroca, 1997: 178). Para Carlos Batata (coordenador da Carta Arqueológica da região), não há evidências materiais que suportem qualquer uma destas localizações (Batata, 1997). Este autor sugeriu a sua localização no Castro da Pena, a sudoeste de Ceras (Batata, 2023), onde há vestígios de um povoado romanizado. A distância de cerca de duas milhas que separam este povoado do trajecto da via não seria caso inédito (por ex.: Langóbriga), mas também fragiliza esta hipótese é neste caso . Como nenhum destes locais foi até hoje convenientemente escavado e estudado, a questão permanece em aberto.

Apesar desta dúvida na localização da sua sede, tudo indica que a Civitas Seiliensis cobria um território que deverá corresponder grosso-modo ao termo medieval de Cera. De facto, em diploma régio de 1159, D. Afonso Henriques doa o Termo de Cera aos templários, com a obrigação de estes reconstruirem a antiga fortaleza que é designada no documento por “castrum quod dicitur Cera” (DMP, DR I, doc. 271). Esta acção do primeiro rei de Portugal visava restabelecer o controlo do território recentemente conquistado aos “mouros” através de doações à ordem do templo com a obrigação destes reconstruirem as fortalezas entretanto arrasadas pelo conflito. Para isso escolhe pontos estratégicos da rede viária que permitiam consolidar o poder cristão nestes territórios. Porém, no caso do Castelo de Ceras isso não viria a acontecer, dado que cerca de um ano depois, Gualdim Pais abandona o projecto de construção do castelo sobre as ruínas do castrum antigo e inicia a sua construção em Tomar, futura sede templária em Portugal, por ter “melhor cabeço e melhores águas” (Barroca, 1997: 178).

Fig. 2 – Limites aproximados do Termo de Cera (amarelo) e rede viária antiga. Traçado da via Aeminium-Scallabis com estações em Rego da Murta, Ceras, Tomar e Paialvo.

Apesar de não haver dúvida de que o núcleo urbano romano viria a desenvolver-se em Tomar, local de cruzamento do Nabão, nada obsta a que o Itinerário refira a antiga cabeça de território, eventualmente localizada em Ceras. De resto, todas as estações do Itinerário XVI correspondem a povoados proto-históricos, muitas vezes remontando às antigas “chefaturas” do Bronze Final, o que é bem revelador da ancestralidade desta rota. A favor da sua localização no Monte das Castelhanas é o facto de este servir actualmente de quadrifinio entre as freguesias de Areias, Chãos, Casais e Alviobeira (sendo que Ceras integra esta última), mostrando que este local é de há muito utilizado como referencial geográfico.

Deste modo, tanto Ceras como Tomar apresentam argumentos favoráveis à sua identificação com Seilium, mas em ambos os casos, haveria que corrigir o Itinerário, possivelmente em resultado de um erro introduzido pelos copistas medievais na marcação miliária. Se, por um lado, admitirmos a sua localização em Ceras, temos conformidade com a distância a Conímbriga (34 m.p.), mas haveria que corrigir a distância de Seilium a Scallabis de 32 para 42 milhas, a distância aproximada entre Ceras e Santarém. Eventualmente houve troca entre os numerais “XXXXII” (42) e “XXXII” (32, omitindo o primeiro “X”) dado que esta forma de representar quatro dezenas surge em outras rotas do Itinerário (“XXXXX” em vez de “XL”).

Se por outro lado posicionarmos esta estação em Tomar, haveria que corrigir a distância de Seilium a Conimbriga, passando neste caso de 34 para 42 milhas, o que poderia ser explicado por eventual troca entre os numerais “XXXXII” (42) e “XXXIIII” (34), confundindo o terceiro “X” por dois traços verticais “II”.

Assim, haveria duas hipóteses de correcção:
Correcção com Seilium em Ceras
SCALLABIN
SEILIUM XXXXII (42)
CONIMBRIGA XXXIIII (34)

Correcção com Seilium em Tomar
SCALLABIN
SEILIUM XXXIIII (34)
CONIMBRIGA XXXXII (42)

Em síntese, a localização de Seilium em Tomar está longe de estar fechada e nada nos dados disponíveis permite descartar a hipótese da sua identificação com a arruinada fortificação referida na Carta de Doação do Termo de Cera à Ordem de Cristo. Acima de tudo, mais que resolver a questão, pretendemos alertar para as incertezas que ainda rodeiam a identificação de muitos destes topónimos, cujas localizações são por vezes dadas como seguras, quando na verdade estamos bem longe dessas supostas certezas. No próximo artigo analisaremos a passagem da via por Conímbriga.

Bibliografia citada:
AMENDOEIRA, J. ; MARTINS, A. C. (2020) – “Vieira Guimarães (1864-1939) e a arqueologia em Tomar: uma abordagem sobre o território e as gentes”. In J. M. Arnaud, C. Neves, & A. Martins (Eds.), Arqueologia em Portugal: 2020 – Estado da Questão (pp. 101-112). Associação dos Arqueólogos Portugueses | CITCEM.
BARREIROS, Gaspar (1561) – “Chorographia de alguns lugares que stam em hum caminho que fez Gaspar Barreiros”. Coimbra: João Aluarez.
BATATA, C. (1997) – “As origens de Tomar: a carta arqueológica do concelho”. Tomar: Centro de Estudos e Protecção do Património da Região de Tomar.
BATATA, C. (2023) – “O termo de Cera, os Templários e o povoamento do espaço”. Tomar: II Colóquio Internacional da Rota Templária Europeia. Cadernos Culturais Nabantinos, Vol. 3, 127-133.
BARROCA, M. J. (1997) – “A Ordem do Templo e a arquitectura militar portuguesa”. Portvgália, Nova Série, Vols. XVII-XVIII (1996-1997), 171-209.
FERNANDES, L. S.; FERREIRA, R. (2002) – “Marcas de oficina em tijolos romanos de Seilium. Conimbriga, 41, 257-267.
GUIMARÃES, Vieira (1927) – “Thomar. Sta. Iria”. Lisboa: Livraria Coelho.
MANTAS, Vasco G. (1996) – “A Rede Viária Romana da Faixa Atlântica entre Lisboa e Braga”. Dissertação de doutoramento (policopiada), Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
PONTE, Salete da (1995) – “Achegas para a Carta Arqueológica – Tomar”. Porto: in Portugália, Vol. XVI, 291-309.
ROMÃO, João M. (2012) – “No encalço do passo do Homem medieval: as vias de comunicação do antigo termo e atual concelho de Tomar”. Dissertação de Mestrado em Arqueologia – FCSH.