Bairro da Sé do Porto - A RUA ESCURA

A Rua Escura partia desde a Cruz do Souto para cima, em direcção à Rua de S. Sebastião (na Idade Média, Rua da Sapataria) e à Porta de Vandoma. Esta artéria completava, assim, a "circunvalação" exterior à muralha românica, garantindo acesso à zona alta da cidade - ao burgo episcopal pela porta de Vandoma, e ao fronteiro morro da Cividade - e aos acessos viários para o interior do país (nomeadamente as vias que partiam da Porta de Cimo de Vila em direcção a Trás-os-Montes, e do Postigo dos Carvalhos do Monte em direcção a Arrifana de Sousa, hoje Penafiel).

Designada primeiramente Rua Nova, passou, desde os inícios do séc. XV, a ser chamada Rua Escura. Encontra-se documentada como Rua Nova pelo menos desde 1301, e como Rua Escura pelo menos desde 1404. Há um documento do Cabido, datado de 1404, que refere as casas "no fim da Rua Escura que antigamente chamavam Rua Nova". Trata-se de um Prazo de umas casas sitas no fim da Rua Escura, que antigamente chamavam Rua Nova, e que o Cabido da Sé do Porto assina a favor de Álvaro Dias. Esta mudança toponómica não pode deixar de ser relacionada com a abertura da Rua Nova (depois Rua Formosa, Rua Nova dos Ingleses e hoje Rua do Infante D. Henrique) por iniciativa de D. João I.

A Rua Escura já se encontrava calcetada nos fins da Idade Média, uma vez que Iria Gonçalves encontrou, entre as despesas da Câmara da segunda metade do séc. XV, verbas destinadas a obras de reparação.

Por decisão camarária de 26 de Junho de 1860, a designação de "Rua Escura" passou a englobar o antigo Largo de S. Sebastião.
Aqui esteve localizado durante algum tempo o Recolhimento de Nª. Sª. do Ferro (depois deslocado para as Escadas do Codeçal, na zona da Lada). Por esse motivo esta artéria foi também designada, em Época Moderna, como Rua de Nª. Sª. do Ferro. Um auto de reconhecimento do foro de casas, organizado pela Misericórdia em 1636, refere: "na rua Escura, abaixo da ermida de S. Sebastião, nas costas da Casas do Coelho, no canto quando descem para a Cruz do Souto, cujas casas se chamavam antigamente as Casas da Porta do Ferro". Um outro documento da Misericórdia, datado de 1743, chama-lhe Rua do Ferro. Sobre as primitivas instalações do Recolhimento de Nª. Sª. do Ferro escreveu Magalhães Basto:

"Na antiga Rua da Senhora do Ferro, actual Rua Escura, à direita de quem desce e antes da travessa de S. Sebastião, antiga Viela dos Gatos, via-se uma fachada de aparência banal, com a data: 1681. Hoje essa fachada e o prédio correspondente estão substituídos pela casa nº 63-A e 63-B. E em ruínas a velha Capela de Nª. Sª. do Ferro, o prédio nº63, até à 2ª metade do Séc. XVIII o Recolhimento. Tinha há duzentos anos esse prédio um andar para a parte da rua, com seu portal onde se podia passar para a Capela contígua; havia para o lado da frente, uma sala "com tribuna e janela rasgada" de talha dourada e grades também douradas. (…) Externamente, via-se "em um nicho uma imagem da mesma Senhora do Ferro", feita de pedra, com "seu lampião" (retirado do prazo que, em 17 de Fevereiro de 1763, a Confraria da Sé do Porto, fez dessa casa e capela a Luís Pereira da Fonseca e Sá - Arq. Distr. do Porto, Po-9-46 (4ª Sér.), fls. 79 v.º e 80 v.º:
"Item humas cazas de hum sobrado para a parte da rua com o seu portal, (…) constão estas cazas de huma salla de hum sobrado para a rua, (…) u huma salla para a parte de tras no primeiro andar, e no andar, e no andar de sima outra caza com suas escadas e serventia para as mesmas cazas, e tem sua logea, tem mais huma caza no andar de baixo para a parte de tras, (…); Ytem hum pedaco de terra que fica para a parte de tras que serue de retiro às mesmas cazas, (…) tem seu Posso com agoa permanente e varias videyras, Ytem huma cosinha; (…) Ytem um pedaco de terra que tem humas cazas que se achão a rendadas de prezente, (..) parte do nascente com a Torre que fica de tras do corpo da guarda; Ytem hum quintal, (..) e tem suas Parreyras, Horta, Larangeira, Platano e Loureiros, confronta do poente com varios moradores da Viella dos Gattos. Ytem a capella de Nossa Senhora do Ferro, (…) e finalmente na mesma sanchristia tem humas colunas de pedra inteiricas para sustentarem e pezo das cazas q. se achão por sima della, e vão medidas no prazo".)"
.

Acrescenta Magalhães Basto que em 1729 o Recolhimento de Nª. Sª. do Ferro recebeu a doação de umas casas nas Escadas do Codeçal, que lhes foram doadas por Josefa Maria, "mulher donzela". Para aí se mudou o Recolhimento em 1757, a acreditar nas informações veículadas pelo Pe. Agostinho Rebelo da Costa. Ainda na Planta do Porto de 1892 se registava a localização do Recolhimento de Nª.Sª do Ferro nas Escadas do Codeçal, voltadas à Lada.

O Cárcere da Inquisição no Porto ficava sensivelmente em frente do Recolhimento de Nª.Sª. do Ferro. Efectivamente, a Inquisição, instalada no Porto em 1541 por ordem de D. João III, que disso incumbiu o Bispo D. Fr. Baltasar Limpo, foi instalada num correr de casas na Rua Escura. Aqui ficava o Cárcere, que, em carta de 1542, endereçada ao monarca, Fr. Baltasar Limpo dizia ter já 40 encarcerados. O primeiro auto de Fé ( e ao que parece o único) teve lugar em 11 de Fevereiro de 1543, tendo sido queimados 4 condenados.

As traseiras de algumas casas desta rua davam, na Idade Média, para a "Viela do Aljube", entretanto desaparecida. As casas do seu cimo estavam encostadas à Muralha Românica.

Há também referências ao Hospital dos Clérigos, ou dos Coreiros, que segundo Luís de Pina ficava na Rua Escura e do qual "nada se sabe sobre ele", excepto que também se chamou Hospital de Nª. Sra. Do Ferro. É possível que confrontasse com a Rua Escura e a Viela da Cividade.

Há notícia de umas Casas-torres medievais que se erguiam nas traseiras das casas que faceavam a rua, e que dariam para a Cruz do Souto.

No início da Rua Escura, junto da Cruz do Souto, foi construída na segunda metade do séc. XV, uma Casa-torre propriedade de Diogo Lourenço, Alcaide da cidade do Porto. Isabel Osório refere uma escritura de compra que Vasco Leite fez a João Deniz, em 1472, de metade de uma Casa na Rua Escura, a qual ficava junto da Cruz do Souto e "…por detras testava com hua casa Torre do dito Diogo Lourenço e por diante Rua Pública". Sobre a porta de entrada desta casa-torre foi colocado um lintel, em granito, com as suas Armas ao centro, e uma inscrição em duas regras. Nesta se pode ler em caracteres góticos minúsculos angulosos, como era norma na época, a seguinte legenda:

ESTAS CASAS : FEZEROM : DIEGO : L(ouren)CO
ALCAIDE : E SENHOR(inha) : DIAZ : SUA MOLHER

Demolida a casa, foi este lintel incorporado no espólio do Museu Municipal do Porto, então instalado no Claustro do edifício da Biblioteca Publica Municipal do Porto. Com o seu desaparecimento, passou a integrar o espólio da Câmara Municipal do Porto, encontrando-se confiado à guarda do Museu Nacional Soares dos Reis (CMP, Inv. Nº 46, em depósito no MNSR).

Os diferentes autores que se debruçaram sobre esta inscrição entenderam que se trataria de Diogo Lourenço e de Senhorinha Dias, sempre na esteira da leitura pioneira de J. Gonçalves Coelho, que legendava a pedra no extinto Museu Municipal do Porto. Apenas Eugênio Andrea da Cunha e Freitas entendeu que nele se deveria ler antes LEONOR DIAS:

"Interpreto-a, porém, de outra maneira mais conforme aos documentos que a esta gente se referem:
Estas casas: fe\zerom diego Ico \ alcaide e leanor \ diaz sua molher
O alcaide Diogo Lourenço e sua mulher Leonor Dias são personagens memorados em numerosos estromentos do época"
. No entanto, a análise do original, que se conserva na Cerca do M.N.S.R não confirma esta interpretação, antes parecendo legitimar a primeira versão. Devemos, no entanto, sublinhar que Eugénio Andrea da Cunha e Freitas apresenta, em abono da sua interpretação, diversos documentos onde Diogo Lourenço, Alcaide Menor da cidade do Porto, surge lado a lado com sua mulher, LEONOR DIAS.

Na Casa nº 17 da Rua Escura encontra-se um Brasão do Séc. XVII, esquartelado, apresentando, segundo Armando de Mattos, no primeiro quadrante as armas dos Correias, no segundo quadrante as armas dos Coutinhos, no terceiro as dos Pintos e no quarto as da familia Correão.

Sousa Reis registou o aparecimento de vestígios arqueológicos da Idade Média na zona da Rua Escura, em 1839:

"(…) à embocadura do rua Escura, e debaixo do calcetamento do caminho estão enterrados ainda huns prefeitos arcos de cantaria, que bem provão terem sido levantados para formar huma ponte, o qual decerto ligava com o muralha, que corria na direcção das trazeiras das cazas e Capelinha do Senhora do Ferro, que estão assentes ao lado Norte dessa mesma rua, cuja muralha ainda se conserva em pé com as ameias, e logo inferiores lhe ficão duas frestas com formas ogivaes, que suficientemente mostrão terem ficado estes restos ao cimo dos entulhos, que para essa parte forão levados, e produzirão o aterro que cobria aquelles arcos. Tive ocasião de ver esta obra, quando se abria hum aqueducto publico pelo anno de 1839.".

Na Rua Escura, nº 76/78 encontrava-se sediada em 1867 uma oficina de funileiro, de Augusto José da Cunha, a qual vendia igualmente gás líquido.

Na documentação camarária do Séc. XIX regista-se o estado ruinoso das casas Nº 1 a 5 da Rua Escura, em 19 de Julho de 1875, e das casas nº 41 e 42, em 30 de Junho de 1837.

A Fonte de S. Sebastião ou da Rua Escura, que se erguia próximo dos antigos Paços do Concelho ou Casa dos Vinte e Quatro, e fronteira ao Aljube ou Cárcere dos Clérigos seria, nas palavras de Horácio Marçal, uma das primeiras a ter sido construída na cidade [Sic]. É possível que não tivesse sido esta a sua primeira implantação. Na realidade, em 10 de Janeiro de 1636 Domingos da Fonseca, pedreiro morador na rua dos Canos, arrematou a empreitada de transferência do chafariz que estava à porta da "casa do Pena" para o Muro de S. Sebastião: "Mudar-se-á o Chafariz que está feito e encostado à parede de Manuel de Pena, e do mesmo modo e traça por que está feito se há-de assentar encostado a parede do socalco que vai para S. Sebastião e Almazem do Cidade,". Em 1940, aquando das remodelações urbanas da zona do Terreiro da Sé, esta fonte seria de novo transferida, agora para a parte superior do Largo Dr: Pedro Vitorino, tendo sido reconstruída encostada à base do Terreiro da Sé, voltada ao portal do Seminário Maior: Está classificada como Imóvel de Interesse Público por decreto de 22 de Março de 1938 (Dec. nº 28536 de 22-3- 1938).

Também a Capela do Senhor dos Passos, que ainda hoje se ergue na Rua Escura, um pouco a montante da Casa da Câmara, foi objecto de classificação, como Imóvel de Interesse Público (Edital no 6/76 de 21 de Julho de 1976).

Isabel Osório entende que as Escadas da Rainha ficariam na zona da Rua Escura: "não sabemos ao certo a origem deste acesso que ligava uma das ruas novas de trezentos, a partir do séc. XIV conhecida por R. Escura, ao interior da muralha, mas a existência desta escadaria pétrea é uma realidade que ultrapassa o mero servidão de um caminho a pé.". Parece-nos, no entanto, ser mais provável que as Escadas da Rainha sejam as escadas que, embora sem serventia ainda hoje se podem ver junto das ruínas da Casa da Câmara, na Rua de S. Sebastião, e que outrora garantiam o acesso à zona do adro da Sé. De resto, Sousa Reis, no séc. passado, referia "o local do Aljube, aonde vem ter as escadas chamadas da Rainha, as quaes partem do Largo da Sé junto á caza das Vereações do Senado da Camara".

Na realidade, as escadas que saiam da Rua Escura para a Sé eram conhecidas como Escadas da Sé (vd., por exemplo, Carta Topográfica da Cidade do Porto, de 1892). Devem, no entanto, ser obra relativamente moderna, já que a sua existência obrigou à demolição de parte da muralha românica, sendo impensável nos tempos mediévicos. Era aqui, ao fundo das Escadas da Sé, que se localizava a Picota do Bispo, "pelourinho eclesiástico', que foi mudado do "Castelo Velho" para a nova localização antes de 1422.

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