Bairro da Sé do Porto - A RUA DA BAINHARIA

A Rua da Bainharia estende-se desde a Cruz do Souto (largo criado pela confluência desta rua com as ruas do Souto e dos Pelames), na parte alta, até ao entroncamento da Rua de S. Crispim com a Rua dos Mercadores, na parte baixa.

No Tombo de 1566 esclarece-se que a Rua da Bainharia ia desde a Cruz do Souto até à Ponte de S. Domingos, o que parece indicar que numa primeira fase a Rua de S. Crispim não estaria individualizada ao nível da toponímia. Tratando-se de uma zona de acentuado declive, a Rua da Bainharia assume um itinerário de envolvência do morro da Pena Ventosa, por forma a minorar o esforço necessário para se vencer a diferença de cotas.

No seu traçado, a Rua da Bainharia acompanha pelo exterior e de forma sensivelmente paralela a Muralha Românica, tratando-se, assim, de um verdadeiro itinerário de circunvalação. Na realidade, associada à Rua dos Mercadores (a jusante) e à Rua Escura (a montante), a Rua da Bainharia constituía um eixo de circulação de vital importância, distribuindo o trafego que da zona ribeirinha pretendia alcançar o velho burgo (através da Porta de Sant'Ana) ou que pretendia atingir as diversas vias medievais que partiam do Porto para os mais importantes centros urbanos de Entre-Douro-e-Minho eTrás-os-Montes. Efectivamente, todo o tráfego que chegava ao Porto por via marítima ou fluvial, e que pretendia seguir por via terrestre para Viana, Barcelos, Ponte de Lima, Braga, Guimarães, Arrifana de Sousa (Penafiel) ou Vila Real, tinha de passar pela Rua da Bainharia até alcançar o início das respectivas vias, Não será de estranhar portanto, que apesar de se situar for a do espaço muralhado, desde muito cedo esta rua tenha sido objecto da atenção dos moradores do Burgo, que aqui devem ter construído desde épocas relativamente remotas. De resto, não será de estranhar que este eixo de circulação tenha as suas origens já no período romano. Trata-se de um aspecto que se deverá ter sempre em atenção quando se fizerem intervenções nesta zona, e que cumpre à Arqueologia esclarecer.
A primeira referência documental conhecida para a Rua da Bainharia remonta, no entanto, apenas a 1247, quando é mencionada no Testamento do Bispo do Porto D. Pedro Salvadores numa altura em que ainda era designada por Rua de Fferrays, Rua de Ferrariis ou Rua de Fabris. Por esse documento ficamos a saber que o Bispo do Porto possuía nesta rua duas casas, uma das quais confinava com outra casa da Confraria de St. Maria: "… tres domos quas comporovj unam quae fuit de Pinione et aliam quae dividit cum domo de conffratriae Beatae Mariae quae sunt in Rua de Fferrays et aliam in Rua de Remolino…".

Ainda encontramos esta rua assim designada - Rua das Ferrarias - em 1296, no Testamento do Bispo portuense D. Vicente Mendes, que também aqui possuía casas. No entanto, segundo Eugénio Andrea da Cunha e Freitas, já em 1327 um documento a refere como Rua da Bainharia. Julgamos que se trata da carta de compra de umas casas na Rua da Bainharia, que Domingos Dinis adquire a Manuel Soares em 1327. O mesmo Domingos Dinis viria a adquirir a Clara Dinis outras casas sitas na mesma Rua da Bainharia em 1341. A mesma designação continua a ser utilizada nas Vereaçoens em meados do séc. XV. Trata-se do Prazo respeitante a umas casas na Rua da Bainharia, no lado Norte, "pelo qual Norte confronta com quintaes do Rio da Vila" que, em 26 de Março de 1445, a Confraria de Rocamador assina.

Qualquer destas duas designações pode ser explicada pela etimologia das próprias palavras. Na realidade, é possível que nesta zona da cidade se localizassem algumas das ferrarias do Porto, o que explicaria a primeira das designações - Rua de Fferrays ou Rua de Ferrariis. A forma "Rua de Fabris" deve resultar de deficiente leitura de Ferrays. Sublinhemos que a presença de ferraris nesta área, comprimida entre o muro da cidade e o Rio Vila, numa zona extra-muros, obedece bem aos condicionalismos que a Idade Média impôs a este tipo de instalações, não só pelo receio de incêndios mas também pela poluição que acarretavam. Um pouco acima desta Rua encontramos a zona dos aloques e dos pelames (na Rua do Souto e na Rua dos Pelames), outro tipo de indústria urbana poluente que a Idade Média implantou nas periferias dos espaços citadinos. Por outro lado, a designação que lhe sucede, e que chega aos nossos dias - Rua da Bainharia - pode ser explicada pela presença, nesta zona da cidade, de Bainheiros, isto é, de pessoas encarregadas de fazer as baínhas de espadas e punhais. A organização de ruas por mesteres é, como se sabe, bem característica da Idade Média, e os bainheiros encontravam-se, aqui, próximos das suas matérias primas: junto das ferrarias e dos pelames. De resto, não deixa de ser significativo que em 10 de Outubro de 1443 um dos quadrilheiros responsáveis pela vigilância desta Rua ( no seu troço superior) fosse um Bainheiro, de seu nome Afonso Anes, Bainheiro, que as comprou por 6000 reais brancos (sendo uma parte entregue em dinheiro e outra parte paga com taça dourada de dois marcos de peso).

Não sabemos onde se baseou Henrique Duarte e Sousa Reis quando registou que esta rua se havia designado primeiro " Rua de Fundo de Vila", escrevendo:
"(…) Foi primitivamente chamada rua de Funde Villa creio ser fundo ou baixo do Cidade depois derão lhe o da Banharia, por que n'ella se fazião as bainhas das espadas. (…) Há porem quem diga que este nome nasceo de Banho, ou Banharia, sítio aonde no rio do Villa rio do Cidade que lhe passa próximo, se tomavão banhos, ou se lavava, que o fazer se esse uzo das suas agoas, erão por certo então mais límpidas, do que os de hoje.". A segunda explicação, fazendo radicar o nome da Rua da Bainharia em Bainharia=Banhos, não tem fundamento.

Desde relativamente cedo as construções devem ter preenchido as duas faces da rua, encostando-se umas às outras, numa solução que deveria ser quase sistemática, deixando poucos terrenos livres entre as diferentes habitações. Não deixa de ser significativo registarmos que a documentação medieval não regista espaços vagos, por construir nesta artéria, ao contrário do que acontece com tantas outras ruas da cidade. Se de um dos lados as suas casas e respectivos enxidos confrontavam com o "Muro Velho", ou seja com a cerca românica, do outro lado confinavam com as margens do Rio da Vila. A imagem que a documentação medieval nos transmite é a de que quase todas as casas leriam os seus enxidos, quer voltados ao Rio da Vila quer comprimidos contra o Muro Velho. A presença destas pequenas hortas revela-se fundamental no quadro da economia urbana mediévica. De resto, as construções que se adossam à muralha românica, nas traseiras das casas desta rua, serão maioritariamente obra dos séc. XVII ou XVIII.

Pela documentação conhecida, sabemos que a Albergaria de Rocamador a mais importante instituição de assistência do Porto mediévico, possuía aqui umas casas em 1407. Por seu turno, também a Albergaria de Sta. Clara detinha aqui casas em 1451. Mais interessante se afigura o diploma de 30 de Julho de 1444, pelo qual Senhorinha Anes, viúva, entrega uma Torre, um lagar e metade de um pardieiro sitos na Rua da Bainharia, em pagamento de dividas, um diploma que fornece uma boa imagem da diversidade de construções que esta rua possuía. Pela análise do tecido urbano, é possível que essa Torre, certamente uma construção em pedra e de maior vulto, estivesse no terço inferior da Rua da Bainharia, na zona compreendida entre as Ruas da Ponte Nova e de S. Crispim. Efectivamente, é aqui que encontramos lotes urbanos um pouco mais amplos, onde essa Torre se poderia implantar. É possível que sobrevivam vestígios dessas construções mediévicas encobertos pelas actuais construções, o que obriga a um cuidado especial, com possibilidade de intervenção arqueológica.

Nesta Rua havia também um Hospital medieval - o Hospital de Tareija ou Teresa Vaz de Altaro - muito mal caracterizado na documentação medieval. Não se conhece a sua localização exacta, apenas se sabendo que ficaria na rua da Bainharia. Recolhia mulheres pobres, podendo ter sido, como sugeriu Luís de Pina, um hospital-albergaria. Este autor levantou mesmo a possibilidade de ser a mesma instituição que o Hospital Albergaria de Sta Clara, que ficava na parte de cima da Rua dos Mercadores.

Encontramos, ainda, referências a pelo menos uma azenha no Rio da Vila

Acrescentemos que em 1558 o Cabido da Sé do Porto fez um prazo de umas casas localizadas por trás da Rua da Bainharia, junto com a Ponte Nova, a favor de Pantaleão Ferreira.

Em 11 de Abril de 1788 encontramos uma Curiosa referência documental que revela algumas das estruturas construídas na Rua da Bainharia. Nesse dia, a Câmara do Porto adquiriu ao Capitão Manuel Barros Pereira uma casa sita na parte alta da Rua da Bainharia, ao chegar à Cruz do Souto - "na Rua da Bainharia que confronta do Norte com o arco que ia para os Pelames e ficavão sobre o arco que vai da Rua da Bainharia para a Rua Nova do Pateo"- porque necessitava de a mandar demolir.

A degradação do parque habitacional da Rua da Bainharia começa a ser claramente espelhada na documentação moderna, dos séc. XVIII e XIX. Na realidade, datado de 29 de Outubro de 1770 conhece-se um Auto de Vistoria para demolição de umas casas que ficavam na esquina da Rua da Bainharia com a Rua da Ponte Nova, e que eram de Ana de Sta. Maria, religiosa de Monchique, e que se encontravam em ruína. Em 18 de Maio de 1840 seria vistoriada a casa Nº 121 e 122 da Rua da Bainharia, por se encontrar em ruína no 3° Andar, bem como a casa Nº 57 a 59 da mesma Rua, cuja fachada já se encontrava escorada. Em 3 de Março de 1843 era a vez de serem vistoriadas as casas Nº 40 (que fazia esquina da Rua da Bainharia com a Rua da Ponte Nova), Nº 50 e Nº 109, todas em estado de ruína. E, finalmente, em 30 de Outubro de 1856 o director dos zeladores da Câmara faria uma participação do estado ruinoso das casas Nº 79 a 100 da Rua da Bainharia, sendo em 12 de Fevereiro de 1857 feita uma intimação relativa aos Nºs 80 e 81 e em 17 de junho de 1857 aos Nºs 78, 79 e 80 certamente por se considerarem os lotes em situação mais gravosa.

De entre as casas que hoje se podem observar na Rua da Bainharia, salientamos a construção Nº 77-79, correspondente ao prédio que leva o Nº 6 da Viela do Anjo, que apresenta elementos antigos, dos fins da Idade Média ou inícios da Época Moderna, e que importa respeitar e preservar.

A Rua da Bainharia já era calcetada nos fins da Idade Média, uma vez que Iria Gonçalves encontrou, entre as despesas da Câmara da segunda metade do séc. XV verbas destinadas a obras de reparação.

Por fim, salientamos que para além da Rua da Bainharia, há ainda referências medievais a uma Travessa da Bainharia e a uma Viela da Bainharia, que surgem mencionadas nas Vereações medievais portuenses. Efectivamente, em 1443, na sessão da Vereação camarária de 10 de Outubro, quando se decidiram os "Item na Banharya da Escadaa das Alldas taa Vjella da Banharia Afomso Gonçallvez çapateiro. Item da dicta Vjella Afonso Anes bainhaero ataa cruz do Souto."

Esta passagem, que se tem prestado a diferentes interpretações, parece-nos ser clara: Afonso Gonçalves, sapateiro, ficava encarregado da vigilância do troço inferior da Rua da Bainharia, na sua parte compreendida entre as Escadas das Aldas e a viela da Bainharia até à Cruz do Souto. É, portanto, previsível que essas duas partes da rua tivessem dimensões sensivelmente idênticas. E assim parece ser. As escadas das Aldas eram uns degraus que ficavam junto da porta de Sant'Ana, na então designada Rua das Aldas (hoje rua de Santana). Deste modo, a Viela da Bainharia deve corresponder á hoje designada Viela do Anjo, a qual enigmaticamente passa em silêncio na documentação mediévica do Porto ou, quando muito, ao troço superior da hoje chamada Rua da Ponte Nova. Parece-nos, no entanto, mais plausível a primeira solução. Ora, se analisarmos a planta do burgo, verificamos que as dimensões das duas partes da Rua da Bainharia, tomando a Viela da Bainharia ( quer ela fosse a Viela do Anjo ou a Rua da Ponte Nova) como eixo, são sensivelmente idênticas. Portanto, o trabalho dos dois quadrilheiros era sensivelmente idêntico e nenhum saía particularmente beneficiado.

São relativamente escassas as informações conhecidas para a Rua da Bainharia em Época Moderna, um sintoma de como esta zona já estaria toda urbanizada nos finais da Idade Média e de como, quando se introduzem as grandes novidades urbanas na cidade, as zonas novas, a urbanizar, estão arredadas do centro histórico da cidade. Efectivamente, as grandes inovações do séc. XV protagonizam-se na zona da Ribeira (com a abertura da Rua Nova, no tempo de D. João I, o primeiro exemplo de Urbanismo Criado ou Planeado na cidade do Porto), as inovações do Séc. XVI tomam a zona das Hortas de S. Domingos (onde rasga a Rua de Stª Catarina das Flores), e as inovações do Porto Barroco também lhe passam ao lado. Assim, não será de estranhar as escassas informações conhecidas.

Em Janeiro de 1570 regista Francisco Dias o seguinte episódio:
"…uiuja em Bainharia desta cidade hum cuttilleir(o) por nome Gaspar Gonçalvez; estando trabalhando Em a tenda e tendo hum filho de hum anno e meo andando em cima no sobrado tomou hum espeto e por hum buraco o lancou em baixo deu em a cabeca ao paj, uiueo dois dias."
Ainda no Século XVIII, em 1730 e 1731, moravam na Rua da Bainharia diversos latoeiros.

Segundo o testemunho de Ramalhão Ortigão. 1850 a antiga Bainharia era ainda quase exclusivamente habitada por latoeiros e "Tinha toda ella um tom doirado produzido pela refracção da luz nas bacias. Nos tachos, nos candieiros de tres bicos, em cobre polido, pendurados às portas". Uma permanência no tempo que vem desde pelo menos os meados da segunda metade do Séc. XVI, que não pode deixar de ser sublinhada.

Nos fins do Séc. XVIII (1795), a Rua da Bainharia era habitada por diversos violeiros, alguns dos quais de certa nomeada, como por exemplo o Sevilhano, ou os Sanhudos da Bainharia (1795). Armando Leça refere que em 1861 havia um «António Joaquim Sanhudo, artista de rabeca, violoncelo, contrabasso e violão francês, de tripa e arco» cuja oficina se localizava na Rua da Bainharia, Nº 50, que foi premiado na Exposição Industrial do Porto, de 1861, com a Medalha de Cobre. Acrescenta Armando Leça que "…Trabalhavam, sentados no banco, à porta caseira, como ainda hoje se vêem os torneiros. Em 1869, José sucedia ao irmão António. Deste, conheci uma idosa moradora da Bainharia que se lembrava de o ver à porta, no banco a trabalhar, com óculos e asmático. Essa ex-oficina tem hoje o número 50, na Bainharia". A dinastia dos violeiros da Bainharia terminara já no nosso século, pois em 1937 ainda sobrevivia o último, António Ferreira, discípulo do último Sanhudo, que fornecia os barraqueiros das feiras e romarias.

Em 1840 foi realizado um "Plano Topográfico … para se aprovar o alinhamento que deve tomar a Rua da Bainharia, pelos seus dois lados Sul e Norte". O processo, no entanto, não foi desde logo encetado. Efectivamente, catorze anos mais tarde, em 1854, seria realizada uma "Cópia exacta da planta que existe archivada no archivo da Exma. Camara, e que foi aprovada em sessão de 12 de Agosto de 1840; traçada com o fim de designar nella o novo alinhamento que tem de seguir a Rua da Bainharia…", realizada por Joaquim da Costa Lima Junior, e que seria aprovada em 1855.

No segundo semestre de 1857 a 1858 foi refeito o piso da Rua da Bainharia pelo "sistema de calçada com cubos de canelas".

Na Rua da Bainharia, Nº 65, esquina com a Rua da Ponte Nova, estava localizada em meados do séc. XIX uma Drogaria - a Drogaria - que anunciava os mais diversos produtos nos jornais da época, desde "tinta roxa para escrever" até aos "Rebuçados do Cantor" e a sementes.

Pela mesma altura, na Rua da Bainharia Nºs 77 a 79 estava sediada a Pharmacia Ferreira & Irmão.

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